GRILHÕES PARTIDOS
DIVALDO PEREIRA FRANCO
DITADO PELO ESPÍRITO MANOEL PHILOMENO DE MIRANDA
GRILHÕES PARTIDOS – 1º
No báratro das perturbações que inquietam o homem moderno a alienação obsessiva ocupa lugar de relevo.
Estigmatizados por inenarráveis tormentos íntimos, que procedem dos refolhos da alma, os obsidiados por Espíritos têm padecido lamentável abandono por parte dos respeitáveis estudiosos das ciências da mente, que, aferrados a vigoroso materialismo, negam, drasticamente, a interferência dos desencarnados — na condição de personalidades intrusas — na etiopatogenia de algumas enfermidades mentais.
Por outro lado, cristãos decididos, clarificados pela fé espírita, no afã de ajudar pelos múltiplos processos fluídoterápicos e da doutrinação, enquadram os alienados na sua quase generalidade como obsidiados, sem a indispensável atenção para com as enfermidades de caráter psiquiátrico.
Não são verdadeiros os postulados extremistas negativos dos primeiros, nem tampouco os exageros dos segundos.
Indubitavelmente, nas matrizes do processo evolutivo, cada um traz as causas que produzem as distonias e desarranjos, físicos como psíquicos e simultaneamente.
Sendo a dor um processo de burilamento, o sofrimento decorre do mau uso perpetrado pelo ser em relação aos recursos múltiplos, concedidos pelos desígnios superiores que regem a vida em todas as suas manifestações, para a ascensão de cada um.
O homem está, porém, destinado à perfeição.
Todos os atrasos a que se impõe e desvarios a que se permite constituem-lhe impedimentos ao avanço, tornando-se elos retentivos na retaguarda.
Os códigos divinos estabelecem que somente através do amor se pode haurir paz, colimar metas felizes.
De essência salutar, o amor é a base da vida, ao mesmo tempo a força que impele o ser para as realizações de enobrecimento.
Toda vez que as paixões vis o desgovernam, enlouquecem-no, e dele fazem cárcere de sombra, de aflição demorada.
Por esta razão, ao lado das terapêuticas mais preciosas, o amor junto aos pacientes de qualquer enfermidade produz resultados insuspeitados.
Da mesma forma, enquanto se teime em perseverar na sistemática da revolta ou nos escabrosos Sítios da ilusão que favorece o ódio, o ciúme, a mentira, a soberba, a concupiscência, a avareza, a mesquinhez — todos asseclas insidiosos que se locupletam na sanha nefasta do egoísmo, — a dor jungirá o faltoso ao carro da aflição reparadora e do ressarcimento impostergável.
Ninguém em regime de exceção na Terra.
Desculpismo nenhum, face aos imperiosos compromissos para com a vida.
Em cada padecente se encontra um espírito em prova redentora, convidando-nos à reflexão e à caridade.
*
Na imensa mole humana dos que sofrem a loucura, conforme os cânones das classificações psiquiátricas, transita um sem número de obsidiados que expungem faltas e crimes cometidos antes e não alcançados pela humana justiça na oportunidade.
São defraudadores dos dons da vida que retornam jungidos àqueles que infelicitaram, enganaram, abandonaram, mas dos quais não se conseguiram libertar...
Morreram, sim, porém não se aniquilaram. Trocaram de vestes, todavia, permaneceram os mesmos.
As conjunturas da lei os surpreenderam onde se alojaram e as imposições que criaram ligaram-nos, vítimas a algozes, credores a devedores em graves processos de reparação compulsória.
Atados mentalmente aos gravames cometidos, construíram as algemas a que se aprisionam, em vinculação com os que supunham ter destruído...
Debatem-se presos nos mesmos elos, lutando em contínuo desgaste de vitalidade com que enlouquecem, até que as claridades do amor, do perdão — forças sublimes da vida — consigam partir as cadeias e libertá-los, facultando que se ajudem reciprocamente.
Enquanto o amor não se sobreponha ao ódio e o perdão à ofensa, marcharão em renhida luta, perseguindo e auto-afligindo-se sem termo, pelos dédalos de horror em que se brutalizam até a selvageria mais torpe...
*
Muito maior do que se pode supor é o número dos obsidiados na Terra. Estão em soledade, em grupos e em coletividades inteiras...
Estes são dias graves para o destino do homem e da Humanidade.
Ao Espiritismo compete gigantesca missão: restaurar o Evangelho de Jesus para as criaturas, clarificar o pensamento filosófico da Humanidade e ajudar a ciência, concitando-a ao estudo das causas nos recessos do espírito, antes que nos seus efeitos.
Consolador, cumpre-lhe não somente enxugar as lágrimas e os suores, mas erradicar em definitivo os fulcros do sofrimento onde se encontrem.
Não é de origem divina a dor, portanto, possui caráter transitório com função específica e de fácil superação, desde que o homem se obstine atingir as finalidades legítimas da existência.
No trato, Portanto, com obsidiados e ante as obsessões, armemo-nos com os recursos do amor, a fim de que consigamos o êxito de ver os grilhões partidos e os espíritos livres para os cometimentos da felicidade.
*
Antes de cada capítulo da presente história, tivemos o cuidado de citar um conceito retirado da nobre Codificação Kardequiana fonte inexaurível de salutares informações e base segura para os estudos em torno das questões palpitantes do ser, do destino, da vida.. (*)
Demonstramos, assim, a estuante atualidade da Obra colossal de que se fez ímpar realizador o eminente lionês Allan Kardec, a quem devemos luminosas lições de sabedoria e de Vivência cristã.
Suplicando a Jesus, o “Senhor dos Espíritos”, que nos ampare na trilha redentora, damos por concluída a nossa tarefa, na condição de “servo inútil” que sabemos ser.
Manoel Philomeno de Miranda
Salvador, 18-04.74
(*) Recorremos às edições da FEB, a saber: O LIVRO DOS ESPÍRITOS — 29ª O LIVRO DOS MÉDIUNS — 28ª; O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO — 52ª. e “A GÊNESE” — 14ª.
Nota do Autor espiritual.
GRILHÕES PARTIDOS – 2º
Não há coração tão perverso que, mesmo a seu mau grado, não se mostre sensível ao bom proceder. Mediante o bom procedimento, tira-se, pelo menos, todo pretexto às represálias, podendo-se até fazer de um inimigo um amigo, antes e depois de sua morte. Com um mau proceder, o homem irrita o seu inimigo, que então se constitui instrumento de que a justiça de Deus se serve para punir aquele que não perdoou.”
“O Evangelho Segundo o Espiritismo” — Capítulo 12º — Item 5.
*
“Os meios de se combater a obsessão variam, de acordo com o caráter que ela reveste. Não existe realmente perigo para o médium que se ache bem convencido de que está a haver-se com um Espírito mentiroso, como sucede na obsessão simples...”
“Além disso, portanto, deve o médium dirigir um apelo fervoroso ao seu anjo bom, assim como aos bons Espíritos que lhe são simpáticos, pedindo-lhes que o assistam. Quanto ao Espírito obsessor, por mau que seja, deve tratá-lo com severidade, mas com benevolência e vencê-lo pelos bons processos, orando por ele. Se for realmente perverso, a princípio zombará desses meios; porém, moralizado com perseverança, acabará por emendar-se. Ë uma conversão a empreender, tarefa muitas vezes penosa, ingrata, mesmo desagradável, mas cujo mérito está na dificuldade que ofereça e que, se bem desempenhada, dá sempre a satisfação de se ter cumprido um dever de caridade e, quase sempre, a de ter-se reconduzido ao bom caminho uma alma perdida.”
L.M. — Capítulo 23º — Item 249.
PROLUSÃO
Tendo em vista o grave problema da obsessão, que aflige multidões e as infelicita, o grupo que se afeiçoe a esse ministério de socorro a obsidiados e obsessores deve observar, pelo menos, os seguintes requisitos mínimos:
1) A equipe de trabalho
Toda e qualquer tarefa, especialmente a que se destina ao socorro, exige equipe hábil, adredemente preparada para o ministério a que se dedica.
O operário siderúrgico, a fim de poder executar o trabalho junto às fornalhas de alta temperatura, resguarda-se, objetivando a sobrevivência, e adestra-se, a benefício de resultados vantajosos.
O tecelão preserva o aparelho respiratório com máscaras próprias e articula habilidades que desdobra, de modo a atender aos caprichos de padronagem, cor e confecção com os fios que lhe são entregues.
O agricultor apreende os cuidados especiais de que necessitam o solo, a semente, a planta, a floração e o fruto, com o fito de recolher lucros no labor que enceta.
O mestre, o cirurgião, o artista, o engenheiro, o expositor, o escrevente, todos os que exercem atividades, modestas ou não, se dedicam com carinho e especializam-se, adquirindo competência e distinção com o que se capacitam às compensações disso decorrentes.
No que tange às tarefas da desobsessão, não menos relevantes são os valores e qualidades especiais exigíveis, para que se logre êxitOs.
Nos primeiros casos, necessita-se de fatores materiais, intelectivos e artísticos, inerentes a cada indivíduo que se dedica ao mister, seguindo a linha vocacional que lhe é própria ou estimulado pelas vantagens imediatas, através das quais espera rendas e estipêndios materiais.
No último caso, deve-se examinar a transcendência do material em uso — sutil, impalpável, incorpóreo — a começar desde a organização mediúnica até as expressões de caráter moral das Entidades comunicantes.
A equipe que se dedica à desobsessão — e tal ministério somente é credor de fé, possuidor de valor, quando realizado em equipe, —que a seu turno se submete à orientação das Equipes Espirituais Superiores — deve estribar-se numa série incontroversa de itens, de cuja observância decorrem os resultados da tarefa a desenvolver.
O “milagre” tão amplamente desejado é interpretação caótica e absurda de fatos coerentes, cuja mecânica escapa ao observador apressado. Não ocorre, portanto, uma vez que tudo transcorre sob a determinação de leis de superior contextura e de sábia execução.
Assim, faz-se imprescindível, na desobsessão, quando se pretende laborar em equipe:
a) harmonia de conjunto, que se consegue pelo exercício da cordialidade entre os diversos membros que se conhecem e se ajudam na esfera do quotidiano;
b) elevação de propósitos, sob cujo programa cada um se entrega, em regime de abnegação, às finalidades superiores da prática medianímica, do que decorrem os resultados de natureza espiritual, moral e física dos encarnados e dos desencarnados em socorro;
c) conhecimento doutrinário, que capacita os médiuns e os doutrinadores, assistentes e participantes do grupo a uma perfeita identificação, mediante a qual se podem resolver os problemas e dificuldades que surgem, a cada instante, no exercício das tarefas desobsessivas;
d) concentração, por meio de cujo comportamento se dilatam os registros dos instrumentos mediúnicos, facultando sintonia com os comunicantes, adredemente trazidos aos recintos próprios para a assistência espiritual;
e) conduta moral sadia, em cujas bases estejam insculpidas as instruções evangélicas, de forma que as emanações psíquicas, sem miasmas infelizes, possam constituir plasma de sustentação daqueles que, em intercâmbio, necessitam dos valiosos recursos de vitalização para o êxito do tentame;
f) equilíbrio interior dos médiuns e doutrinadores, uma vez que, somente aqueles que se encontram com a saúde equilibrada estão capacitados para o trabalho em equipe. Pessoas nervosas, versáteis, susceptíveis, bem se depreende, são carecentes de auxílio, não se encontrando habilitadas para mais altas realízações, quais as que exigem recolhimento, paciência, afetividade, clima de prece, em esfera de lucidez mental. Não raro, em pleno serviço de socorro aos desencarnados, soam alarmes solicitando atendimento aos membros da esfera física, que se desequilibram facilmente, deixando-se anestesiar pelos tóxicos do sono fisiológico ou pelas interferências da hipnose espiritual inferior, quando não derrapam pelos desvios mentais das conjecturas perniciosas a que se aclimataram e em que se comprazem.
Alegam muitos colaboradores que experimentam dificuldades quando se dispõem à concentração. No entanto, fixam-se com facilidade surpreendente nos pensamentos depressivos, lascivos, vulgares, graças a uma natural acomodação a que se condicionam, como hábito irreversível e predisposição favorável.
Parece-nos que, em tais casos, a dificuldade em concentrar-se se refere às idéias superiores, aos pensamentos nobres, cujo tempo mental para estes reservado, é constituído de pequenos períodos, em que não conseguem criar um clima de adaptação e continuidade, suficientes para a elaboração de um estado natural de elevação espiritual;
g) confiança, disposição física e moral, que são decorrentes da certeza de que os Espíritos, não obstante, invisíveis para alguns, se encontram presentes, atuantes, a eles se vinculando, mentalmente, cm intercâmbio psíquico eficiente, de cujos diálogos conseguem haurir estímulos e encorajamento para o trabalho em execução. Outrossim, as disposições físicas, mediante uma máquina orgânica sem sobrepeso de repastos de digestão difícil, relativamente repousada, pois não é possível manter-se uma equipe de trabalho dessa natureza, utilizando-se companheiros desgastados, sobrecarregados, em agitação;
h) circunspeção, que não expressa catadura, mas responsabilidade, conscientização de labor, embora a face desanuviada, descontraída, cordial;
i) médiuns adestrados, atenciosos, que não se facultem perturbar nem perturbem os demais membros do conjunto, o que significa adicionar, serem disciplinados, a fim de que a erupção de esgares, pancadas, gritarias não transforme o intercâmbio santificante em algaravia desconcertante e embaraçosa. Ter em mente que a psicofonia é sempre de ordem psíquica, mediante a concessão consciente(*) do médium, através do seu perispírito, pelo qual o agente do além-túmulo consegue comunicar-se, o que oferece ao sensitivo possibilidade de frenar todo e qualquer abuso do paciente que o utiliza, especialmente quando este é portador de alucinações, desequilíbrios e descontroles de vária ordem, que devem, de logo, ser corrigidos ou pelo menos diminuídos, aplicando-se a terapêutica de reeducação;
j) lucidez do preposto para os diálogos, cujo campo mental harmonizado deve oferecer possibilidades de fácil comunicação com os Instrutores Desencarnados, a fim de cooperar eficazmente com o programa em pauta, evitando discussão infrutífera, controvérsia irrelevante, debate dispensável ou informação precipitada e maléfica ao
(*) Referimo-nos à lucidez da auto-doação do médium para o intercâmbio e não à memória, velada ou não, durante o transe.
Nota do Autor espiritual.
atormentado que ignora o transe grave de que é vítima, em cujas teias dormita semi-hebetado, apesar da ferocidade que demonstre ou da agressividade •de que se revista;
1) pontualidade, a fim de que todos os membros possam ler e comentar em esfera de conversação edificante, com que se desencharcam dos tóxicos físicos e psíquicos que carregam, em conseqüência das atividades normais; e procurarem todos, como leciona Allan Kardec, ser cada dia melhor do que no anterior, e de cujo esforço se credenciam a maior campo de sintonia elevada, com méritos para si próprios e para o trabalho no qual se empenham...
Claro está que não exaramos aqui todas as cláusulas exigíveis a uma tarefa superior de desobsessão, todavia, a sincera e honesta observância destas darão qualidade ao esforço envidado, numa tentativa de cooperação com o Plano Espiritual interessado na libertação do homem, que ainda se demora atado às rédeas da retaguarda, em lento processo de renovação(*).
2) O obsessor
O Espírito perseguidor, genericamente denominado obsessor, em verdade é alguém colhido pela própria aflição. Ex-transeunte do veículo somático, experimentou injunções que o tornaram revel, fazendo que guardasse nos recessos da alma as aflições acumuladas, de que não se conseguiu liberar sequer após o decesso celular. Sem dúvida, vítima de si mesmo, da própria incúria e invigilância, transferiu a responsabilidade do seu insucesso a outra pessoa que, por circunstância qualquer, interferiu decerto negativamente na mecânica dos seus malogros, por ser mais fácil encontrar razões de desdita em mãos de algozes imaginários, a reconhecer a pesada canga da responsabilidade que deve repousar sobre os ombros pessoais, como conseqüência das atitudes infelizes a que cada um se faz solidário. Perdendo a indumentária fisiológica mas, não o uso da razão — embora
(*) Sugerimos a leitura dos Prolegômenos da Obra “Nos Bastidores da Obsessão”, de nossa autoria.
Nota do Autor espiritual.
normalmente deambulando na névoa da inconsciência, com os centros do discernimento superior anestesiados pelos vapores das dissipações e loucuras a que se entregou — imanta-se por processo de sintonia psíquica ao aparente verdugo, conservando no íntimo as matrizes da culpa, que constituem verdadeiros “plugs” para a sincronização perfeita entre a mente de quem se crê dilapidado e a consciência dilapidadora, gerando, então, os pródromos do que mais tarde se transformará em psicopatia obsessiva, a crescer na direção infamante de conjugação irreversível.
Ocorrências há, de agressão violenta, pertinaz, dominadora, pela mesma mecânica psíquica, em que o enfermo tomba inerme sob a dominação mental e física do subjugador.
Pacientemente atendidos, nos abençoados trabalhos de desobsessão, nos quais se lhes desperta a lucidez perturbada, concitando-os ao avanço no rumo da felicidade que supõem perdida, faculta-se-lhes entender os desígnios sublimes da Criação, convidando-os a entregarem os que se lhes fizeram razão de sofrimento à Consciência Universal, de que ninguém se evade, e tratando de reabilitar-se, eles mesmos, ante as oportunidades ditosas que fluem e refluem através do tempo, esse grandioso companheiro de todos.
Em outros casos, — quando a fixação da idéia venenosa produziu dilacerações nos tecidos muito sutis do perispírito, comprometendo o reequilíbrio que se faria necessário para a libertação voluntária do processo obsessivo, o que ocorre com freqüência, — os Instrutores Espirituais, durante o transe psicofônico, operam nos centros correspondentes da Entidade, produzindo estados de demorada hibernação pela sonoterapia ou utilizando-se de outros processos não menos eficientes, para ensejarem a recomposição dos centros lesados, após o que despertam para as cogitações enobrecedoras.
Na maioria dos labores de elucidação, podem-se aplicar as técnicas de regressão da memória no paciente espiritual, fazendo-se que reveja os fatos a que se vincula, mostrando-lhe a legítima responsabilidade dele mesmo, nos acontecimentos de que se diz molesto, após o que percebe o erro em que moureja, complicando a atualidade espiritual que deve ser aproveitada para reparo e ascensão, jamais para repetições de sandices, pretextos de desídia, ensejos de desgraças...
Obsessores, sim, os há, transitoriamente, que se entregam àfascinação da maldade, de que se fazem cultores, enceguecidos e alucinados pelos tormentosos desesperos a que se permitiram, detendo-se nos eitos de demorada loucura, em que a consciência açulada pelos propósitos infelizes desvia o rumo das cogitações para reter-se, apenas, na angulação defeituosa do sicário — verdugo impiedoso de si mesmo — pois todo o mal sempre termina por infelicitar aquele que lhe presta culto de subserviência. Tais Entidades — que oportunamente são colhidas pelas sutis injunções da Lei Divina — governam redutos de sombra e viciação, com sede nas Regiões Tenebrosas da Erraticidade Inferior, donde se espraiam na direção de muitos antros de sofrimento e perturbação na Terra, atingindo, também, vezes muitas, as mentes ociosas, os espíritos calcetas, os renitentes, revoltados, cômodos e inúteis, por cujo comércio dão início a processos muito graves de obsessão de longo curso, que se estende em conúbio estreito, cada vez mais coercitivo, inclusive após a morte física dos tecidos orgânicos, quando o comensal terreno desencarna.
Reunidos em magotes, momentaneamente ferozes, se disputam primazia como sói acontecer entre os homens de instintos primitivos da Terra, nos combates de extermínio, em que os próprios comparsas se encarregam de autodestruir-se, estimulados por ambições que culminam na vanglória da ilusão que se acaba, estando sempre atormentados pelas lucubrações de domínio impossível, face à carência de forças para se dominarem a si mesmos.
Exibindo multiface de horror, com que aparvalham aqueles com os quais se homiziam moral e espiritualmente, acreditam-se, por vezes, tal a aberração a que se entregam, pequenos deuses em competição de força para assumirem o lugar de Deus. Trazendo no substrato da consciência as velhas lendas religiosas do Inferno eterno, das personificações demoníacas e diabólicas, crêem-se tais deidades irremediavelmente caídas, estertorando, em teimosa crueldade, por assumirlhes os lugares...
Expressivo número deles, esses irmãos marginalizados por si mesmos do caminho redentor — que são, todavia, inconscientes instrumentos da Justiça Divina, que ignoram e pensam desrespeitar — obsidiam outros desencarnados que se convertem em obsessores, a seu turno, dos viajantes terrenos, em processo muito complexo de convivência e exploração físio-psíquica.
Todos, porém, todos eles, nossos irmãos da retaguarda espiritual, — onde possivelmente já estivemos também, — são necessitados de compaixão e misericórdia, de intercessão pela prece e oferenda dos pensamentos salutares de todos os que se encontram nas lídimas colméias espiritistas de socorro desobsessivo, ofertando-lhes o pábulo da renovação e a rota luminescente para a nova marcha, como claro sol de discernimento íntimo para a libertação dos gravames sob os quais expungem os erros em que incidiram.
3) O obsidiado
Somente há obsidiados e obsessões porque há endívidados espirituais, facultando a urgência da reparação das dívidas.
Todo problema, pois, de obsessão, redunda em problema de moralidade, em cuja realização o Espírito se permitiu enredar, por desrespeito ético, legal, espiritual. Como ninguém se libera da conjuntura da consciência culpada, já que onde esteja o devedor aí se encontram a dívida e, logo depois, o cobrador. É da lei!
No fulcro de toda obsessão estão inerentes os impositivos do reajustamento entre devedor e cobrador. Indubitavelmente o Estatuto Divino dispõe de muitos meios para alcançar os que lhe estão incursos nos códigos soberanos. Não é, portanto, condição única de que o defraudador seja sempre defrontado pelo fraudado, que lhe aplicará o necessário corretivo. Se assim fora, inverter-se-ia a ordem natural, e o círculo repetitivo das injunções de dívida-cobrança-dívida culminaria pela desagregação do equilíbrio moral entre os Espíritos.
Como todo atentado é sempre dirigido à ordem geral, embora através dos que estão mais próximos dos agressores, à ordem mesma são convocados os transgressores. Normalmente, porém, graças às condições que facultam ligações recíprocas entre os envolvidos na trama das dívidas, estes retornam ao mesmo sítio, reencontram-se, para que, através do perdão e do amor, refaçam a estrada interrompida, oferecendo-se reciprocamente recursos de reparação para a felicidade de ambos. Porque transitam nas emanações primitivas que lhes parecem mais agradáveis, facultam-se perturbar, enredando-se na idéia falsa de procurar aplicar a própria justiça, em face do que, infalivelmente, caem, necessitados, por sua vez, da Justiça Divina.
Quando o Espírito é encaminhado à reencarnação traz, em forma de “matrizes” vigorosas no perispírito, o de que necessita para a evolução. Imprimem-se, então, tais fulcros nos tecidos em formação da estrutura material de que se utilizará para as provações e expiações necessárias. Se se volta para o bem e adquire títulos de valor moral, desarticula os condicionamentos que lhe são impostos para o sofrimento e restabelece a harmonia nos centros psicossomáticos, que passam, então, a gerar novas vibrações aglutinantes de equilíbrio, a se fixarem no corpo físico em forma de saúde, de paz, de júbilo.
Se, todavia, por indiferença ou por prazer, jornadeia na frivolidade ou se encontra adormecido na indolência, no momento próprio desperta automaticamente o mecanismo de advertência, desorganizando-lhe a saúde e surgindo, por sintonia psíquica, em conseqüência do desajustamento molecular no corpo físico, as condições favoráveis a que os germens-vacina que se encontram no organismo proliferem, dando lugar às enfermidades desta ou daquela natureza. Outras vezes, como os recursos trazidos para a reencarnação, em forma de energia vitalizadora, não foram renovados, ou, pelo contrário, foram gastos em exagèros, explodem as reservas e, pela queda vibratória, que atira o invigilante noutra faixa de evolução, a sintonia com Entidades viciadas, perseguidoras e perversas, se faz mais fácil, dando início aos demorados processos obsessivos. No caso de outras enfermidades mentais, a distonia que tem início desde os primórdios da reencarnação vai, a pouco e pouco, desgastando os depósitos de forças específicas e predispondo-o para a crise que dá início à neurose, à psicose ou às múltiplas formas de desequilíbrio que passa a sofrer, no corredor cruel e estreito da loucura.
Através de experiências realizadas pelo dr. Ladislaus von Meduna, no Centro Interacadêmico de Pesquisas Psiquiátricas de Budapeste, foram constatadas diferenças fundamentais entre os cérebros dos epilépticos e dos esquizofrênicos, verificando-se que a presença de uma dessas enfermidades constitui impedimento à presença da outra. Assim, desde o berço, o espírito imprime no encéfalo as condições cármicas, para o resgate das dívidas perante a Consciência Cósmica, podendo, sem dúvida, a esforço de renovação interior —já que do interior procedem as condições boas e más da existência física e mental — recompor as paisagens celulares onde se manifestam os impositivos reabilitadores, exceção feita às problemáticas expiatórias..
Quando a loucura se alastra em alguém, é que o próprio espírito possui os requisitos que lhe facultam a manifestação. A predisposição a este ou àquele estado é-lhe inerente, e os fatores externos, que a fazem irromper, tais os traumatismos morais de vária nomenclatura, os complexos, bem como os recalques já se encontram em gérmen, na constituição fisiológica ou psicológica do indivíduo, a fim de que o cumprimento do dever, em toda a sua plenitude, se faça impostergável. Há, sem dúvida, outros e mais complexos fatores causais da loucura, todos, porém, englobados nas “leis de causa e efeito”.
Daí a excelência dos ensinos cristãos consubstanciados na Doutrina dos Espíritos e vazados na mais eloqüente psicoterapia preventiva, mediante os conceitos otimistas, valiosos, conclamando à harmonia e à cordialidade, do que decorrem conseqüentemente, equilíbrio e renovação naquele que os vive, em cuja experiência realiza o objetivo essencial da reencarnação: produzir para a felicidade!
No que diz respeito ao problema das obsessões espirituais, o paciente é, também, o agente da própria cura. É óbvio que, para lográ-la, necessita do concurso do cireneu da caridade que o ajude sob a cruz do sofrimento, através da diretriz de segurança e esclarecimento que o desperte para maior e melhor visão das coisas e da vida, em cujo curso se encontra progredindo. Não se transfere, por tanto, para os passistas, doutrinadores e médiuns, a total responsabilidade dos resultados, nos tratamentos das obsessões. Ë certo que ocorrem amiúde curas temporárias, recuperações imediatas sem o concurso do enfermo. Sem dúvida são concessões de acréscimo da Divindade. O problema, porém, retomará mais tarde, quando o devedor menos o espere, já que, a esse tempo, deverá estar melhor preparado para fazer o seu reajustamento moral e espiritual com a Lei Divina.
Esclareça-se, portanto, o portador das obsessões, mesmo aquele que se encontra no estágio mais grave da subjugação, através de mensagens esclarecedoras ao subconsciente, pela doutrinação eficaz, conclamando-o ao despertamento, do que dependerá sua renovação. Por outro lado doutrine-se o invasor, o parasita espiritual; entrementes, elucide-se o hospedeiro, o suporte da invasão, de modo que ele ofereça valores compensadores, eleve-se moral e espiritualmente, a fim de alcançar maior círculo de vibração, com que se erguerá acima e além das conjunturas, podendo, melhormente, ajudar-se e ajudar aqueles que deixou na estrada do sofrimento, marchando com eles na condição de irmão reconhecido e generoso, portador das bênçãos da saúde e da esperança.
4) O grupo familial
Vinculados os Espíritos no agrupamento familial pelas necessidades da evolução em reajustamentos recíprocos, no problema, da obsessão, os que acompanham o paciente estão fortemente ligados ao fator predisponente, caso não hajam sido os responsáveis pelo insucesso do passado, agora convocados à cooperação no ajustamento das contas.
Afirma-se que aqueles Espíritos que acompanham os psicopatas sofrem, muito mais do que eles mesmos. Não é verdade. Sofrem, sim, por necessidade evolutiva, já que têm responsabilidade no insucesso de que ora participam, devendo, por isso, envidar esforços para a liberação dos sofredores, libertando-se, igualmente.
São comuns os abandonos a que se relegam os alienados, quando os deixam nas Casas de Saúde, através de endereços falsos fornecidos pelos familiares, que se precatam contra a futura recuperação do familiar, impedindo, desse modo, o seu retorno ao lar. Não poucos os que atiram, imediatamente, os seres, mesmo os amados, nos Sanatorios de qualquer aparência, desejando, assim, libertar-se da carga, que supõem pesada, incidindo, a seu turno, em responsabilidades mui graves, de que não poderão fugir agora ou depois.
Sem dúvida, quando alguns pacientes, especialmente nos casos de obsessão, se afastam do lar, melhoram, porque diminuem os fatores incidentes do grupo endívidado com o dos cobradores desencarnados, o que não impede retomem os desequilíbrios, ao voltarem ao seio da família, que por sua vez não se renovou, nem se elevou, a fim de liberar-se das viciações que favorecem a presença da perturbação obsessiva.
Por isso, torna-se imprescindível, nos processos de desobsessão, seja a família do paciente alertada para as responsabilidades que lhe dizem respeito, de modo a não transferir ao enfermo toda a culpa ou dele não se desejar libertar, como se a Sabedoria Celeste, ao convocar o calceta ao refazimento, estivesse laborando em erro, produzindo sofrimento naqueles que nada teriam a ver com a problemática do que padece.
Tudo é muito sábio nos Códigos Superiores da Vida. Ninguém os desrespeitará impunemente.
1
A AGRESSÃO
“As imperfeições morais do obsidiado constituem, freqüentemente, um obstáculo à sua libertação.”
L.M. — Capítulo 23º — Item 252.
Não obstante a noite coruscante de astros estelares, o ar pesava. Era o apogeu do verão carioca. No elegante apartamento “duplex”, em pleno coração da Avenida Atlântica, a longa expectativa cedia lugar ao relax da satisfação.
A festa fora programada nos mínimos detalhes, há mais de um mês, com requinte e carinho. Os convites foram dirigidos a pessoas gradas, recatadas, que evitavam o tumulto do denominado café-society, no entanto, realmente raffinée, pertencentes aos tradicionais clãs da família brasileira e de outras nacionalidades.
O apartamento fora decorado especialmente para o evento e o seleto bullet seria servido por distinta Casa, cuja tradição se firmava na excelência da qualidade dos repastos opíparos e dos funcionários discretos. A bebida, em abundância, obedecia à exigência do cardápio cuidadosamente selecionado.
O mestre de cerimônias e recepcionistas de uniforme postavam-se desde a porta do elevador social, que se abria no hall privado, segui-dos dos anfitriões em traje de gala.
A pouco e pouco, o luxo e a elegância disputavam primazia entre as damas adereçadas por jóias de alto preço e toilettes custosas.
Os vários grupos, unidos por afinidades, espalhavam-se pelas diversas dependências da elegante residência, em cujos tapetes persas desapareciam os ruídos dos movimentos incessantes.
Canapés servidos habilmente e bebidas conduzidas por garçons distintamente enfarpelados eram distribuídos em abundância, entusiasmando os convidados risonhos, que se disputavam chamar a atenção, como acontecer em circunstâncias que tais.
O Coronel e senhora Constâncio Medeiros de Santamaria exultavam, não sopitando a felicidade de conseguirem tão seleto convívio, na oportunidade em que deveriam apresentar a filha à sociedade do Rio de Janeiro, na data em que completava quinze anos.
Comedido e austero, o sr. Coronel recusara o convite de renomado cronista social, que pretendia incluí-la na lista de debutantes, com a qual anualmente provocava sensação e comentários demorados, após o desfile nos elegantes salões de luxuoso Hotel de categoria internacional, quando não conseguia fazê-lo em memoráveis apresentações no Palácio do Itamarati ou noutros equivalentes.
Preferira, porém, receber alguns amigos, como dissera, na intimidade do lar, ocasião em que desejava maior convivência e mais demorada emoção, perfeitamente compreensíveis.
Encaminharam antes a filha a uma Casa de Modas e boas maneiras, onde a jovem candidata recebera instrução e orientação própria para momento de tal envergadura, naqueles dias em que determinadas profissões, como as de mannequin, modelos para poses de fotografias e modas, eram mal vistas pelas famílias tradicionais. Todavia, fazia-se mister preparar a jovem para os grandes cometimentos sociais, exatamente no momento em que se destacavam já as vantagens das citações nas colunas especializadas dos jornais de grande circulação, como primeiro passo para promoção entre as classes abastadas da capital do país.
A moçoila freqüentava o Curso Clássico de excelente Colégio, onde se preparava para a Faculdade de Filosofia, que ambicionava.
Às 21 horas e 30 minutos, notificado pela esposa ansiosa, o sr. Coronel avisou que a filha seria trazida à sala imensa, preparada para o desfile pessoal da jovem, enquanto um grupo de violinistas, colocados em palco improvisado, dava início formalmente à recepção.
Vestindo delicado longo de tulle e mousseline franceses, esvoaçantes, como se fora uma fada mitológica, saída de algum recanto paradisíaco, apareceu a debutante.
Delgada e jovial estampava sorriso de júbilo nos lábios bem delineados; as faces levemente coradas contrastavam com os olhos transparentes, azulados; e a cabeleira bem trabalhada, cingida por delicado diadema de brilhantes, caía artisticamente sobre os ombros no vestido branco, alvinitente.
Dir-se-ia uma visão de sonho.
A música enchia a sala de amplas janelas abertas na direção do mar imenso, à frente, e o ruidoso aplauso dos felizes convivas se misturavam, efusivos.
Todos eram unânimes em ressaltar a beleza diáfana da menina-mulher, enquanto os pais exultavam incontidamente com essa felicidade que todos perseguem, enquanto na Terra, mas que é transitória, passando sempre breve e deixando sulcos profundos, não poucas vezes de amargura inexplicável.
Logo após, removida a passarela, o genitor tomou a filha pelo braço e, sob ovação generalizada, dançou a primeira valsa.
Os violinos, artisticamente modulados, entonteciam de emoção os dois valsantes, que, atingidos pela dúlcida alegria do momento, voavam pela imaginação aos diversos sítios dos próprios interesses. Ele, evocando a juventude, os sonhos da mocidade, as ambições de militar honesto e dedicado, o primeiro amor, o matrimônio, a guerra de que participara — sim, a guerra adveio-lhe à memória, que procurou expulsar, — a realidade, a vida... Ela, na primavera dos dias, sentia a vida estuar e sonhava, sonhava naquele instante, que desejava se perpetuasse por todo o sempre, numa perene promessa de felicidade.
Outros pares se juntaram e a festa tomou corpo entre júbilos e rios de cognac, licores finos, bebidas e acepipes vários.
Ao momento próprio o mâitre anunciou que a ceia estaria servida dentro de poucos, rápidos momentos.
Nesse instante, o sr. Coronel convidou a filha a um solo ao piano, como homenagem aos convidados.
— Bravos! — gritaram todos.
Foram colocadas cadeiras em volta do Pleyel brilhante. Após as damas tomarem lugar, acolitadas pelos cavalheiros, a jovem Ester sentou-se e, tomada pela tranqüilidade da segurança pessoal, começou a dedilhar suave melodia de Brahms, delicada música de câmara, envolvente e enternecedora. O teclado submisso fazia que o poema dos sons cantasse festivo, dominando as atenções.
O casal de anfitriões não cabia de felicidade, de indizível júbilo. O semblante aberto, em sorriso tranqüilo, parecia oferecer excesso de prazer.
Àquela hora, suave brisa vinha do mar, diminuindo o calor, até então desagradável.
De repente, tudo mudou.
Foi um impacto, qual um golpe inusitado, aplicado à face de todos.
Ester se perturbou momentaneamente, o corpo delicado pareceu vergar sob inesperado choque elétrico. Ela se voltou, de inopino, e fixou os olhos muito abertos, quase além das órbitas, no genitor. Estava desfigurada: palidez marmórea cobria-lhe o semblante. Na testa maquilada e por todo o rosto, o suor começou a porejar abundante. Ergueu-se algo cambaleante, fez-se rígida. O fácies era de tresloucada.
As pessoas, tomadas pela surpresa, ficaram sufocadas, inermes.
A adolescente avançou na direção do pai aparvalhado, sem ânimo de a acudir, e, sem maior preâmbulo, acercou-se dele, estrugindo-lhe na face ruidosa bofetada. Este se ergueu, congestionado, ao tempo em que a filha novamente o agrediu por segunda vez.
Armou-se tremendo escândalo. Algumas damas mais sensíveis puseram-se a gritar, e o senhor Coronel, atoleimado, revidou o golpe automaticamente, surpreendendo-se a si mesmo, ante gesto tão infeliz. A menina, alucinada, pôs-se a gritar, sendo, à força, conduzida àalcova.
Um médico presente prontificou-se atendê-la. Foram tomadas as primeiras providências e se lhe aplicou um sedativo injetável de quase nenhum efeito imediato. Nova dose de calmante foi providenciada e, enquanto a festa se desmanchava de forma dolorosa, surpreendente, a família mergulhou em abissal mundo de aflições sem nome.
O desequilíbrio de pronto assumira proporções alarmantes.
Agitada, Ester blasfemava, esbordoando moralmente o genitor, mediante expressões lamentáveis. Os verbetes infamantes escorriam-lhe dos lábios, insultuosos, ferintes, desconexos. A presença do pai mais a exaltava, como se fora acometida de loucura total, na qual se evidenciava rancor acentuado, de longo curso, retido a custo por muito tempo e que espocava voluptuoso, assustador.
Somente pela madrugada, em estado de cansaço extenuante, caiu em torpor agitado, sacudida de quando em quando por convulsões muito dolorosas.
A estranha agressão sombreou de pesados crepes a família surpreendida, transformando em quase tragédia os festivos júbilos da noite requintada.
São as surpresas que convocam a acuradas meditações e inevitáveis buscas espirituais.
Os últimos convidados desde logo se afastaram discretos uns, tumultuados outros. Acompanhados apenas pelo médico da família, os anfitriões se recolheram ao leito, profundamente macerados no moral e físicamente abatidos, em desfalecimento, sem compreenderem o ocorrido.
2
A LOUCURA
“No segundo caso (subjugação corporal), o Espírito atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos involuntários.”
L.M. — Capítulo 23º — Item 240.
O dia imediato surgiu penumbroso, apesar da pujança do Sol e do calor que assolava a cidade. No apartamento do Coronel Santa-maria, a dor se dobrava em sucessivos esgares, destroçando os que lhe caíram nas malhas.
Ester não recobrou a lucidez. Embora a prostração que a dominara, após os sedativos, as crises voltaram terrificantes, enquanto a dêbil mocinha, transfigurada, tornou-se o espëcime legítimo da desequilibrada. Palavras obscenas e gestos vis repetiam-se ininterruptamente; gritos e gargalhadas constantes terminaram por enrouquecê-la. Muito pálida, com olheiras arroxeadas e manchas nas faces, tinha os lábios escuros e a expressão de olhar dura, sem luminosidade. Sacudida a cada momento por convulsões torturantes, traduzia no rosto conturbado as dores inextricáveis que experimentava.
Saindo desse estado, por instantes, parecia recobrar a claridade da razão, desvairando de imediato, a elucidar que alguém a lapidava com longo relho de que não se conseguia evadir. Nesse comenos tornava-se rubra e, se fosse observada mais detidamente, poder-se-ia verificar que alguns vergalhões lhe intumesciam a pele delicada e marcavam a face em congestão.
Logo retornava ao desequilíbrio, ao sarcasmo, e as ofensas se sucediam mordazes como se as Fúrias a estivessem cavalgando.
O clínico, facultativo de larga experiência, durante a primeira crise ocorrida à noite, elucidara que, se houvesse recidiva, seria de todo conveniente convidar um especialista em doenças nervosas, pois tudo indicava tratar-se de uma crise histeropata, com agravantes para um longo curso. Aquele, dissera, era o período da transição, em que se fixam os caracteres da personalidade e nos quais desbordam as expressões da sexualidade, em maior intensidade. E, como bom discípulo das doutrinas freudianas, teceu considerações sobre a libido e sua ação enérgica nas engrenagens da emotividade.
Os pais, alarmados, não sabiam exatamente como proceder. Convidado, porém, o médico da família, este confirmou literalmente a diagnose do colega: tratava-se de um problema histérico com alarmantes sinais tendentes a complicações mais graves, O psiquiatra se fazia necessário.
Indicada eminente autoridade em Psiquiatria, o tratamento teve início no próprio lar, sem que diminuíssem os sintomas do desequilíbrio ou se modificasse o quadro patológico como de desejar.
O estado da enferma se tornava cada vez pior, enquanto se lhe minavam as resistências físicas, pois que recusava qualquer alimentação, sistematicamente, sendo necessário aplicar-lhe indispensáveis medicações tônicas, de sustentação orgânica, à força.
Transcorridos três dias sob carinhosa assistência especializada e familial, sem que qualquer resultado fosse lobrigado, o psiquiatra aconselhou internamento em Casa de Saúde relevante, onde poderia aplicar técnicas próprias, a par de isolamento do grupo doméstico, em que, certamente, estavam as causas inconscientes dos traumas e distonias que a impediam retornar ao campo da lucidez.
Inconsoláveis, os pais, aflitos, aquiesceram. Sob forte sedativo, Ester deu entrada no Sanatório, localizado em recanto bucólico e praieiro do Rio de Janeiro, onde as perspectivas de recuperação da saúde pareciam auspiciosas.
Sem embargo, a utilização dos melhores recursos da moderna Psiquiatria, a jovem paciente reagia negativamente em alucinação demorada, irreversível. Dia a dia registravam-se distúrbios novos e, no monólogo da distonia, não cessava de referir-se à vingança, à imperiosa necessidade de lavar a desonra com o sangue da imolação de uma vítima, à justiça demorada mas sempre oportuna, ao desforço pessoal.
Um mês transcorrido e a psicopata era frangalhos.
O tratamento a que sempre resistia se lhe oferecia um aspecto de vitalidade superficial já que com o corpo volumoso, graças às drogas que lhe eram ministradas, a realidade expressava a insânia que dela se apossara totalmente. Não mais voltara à lucidez, por mais amplas fossem as tentativas experimentadas. A técnica do eletrochoque não produziu, na primeira série, qualquer resultado. Pelo contrário, fê-la hebetada, o que poderia parecer um recuo da loucura, quando, em verdade, ante a impossibilidade de reações nervosas, em face das pesadas cargas assimiladas, frenava, temporariamente, o desalinho psíquico.
Os genitores desesperados não sabiam para que apelar.
Sem formação religiosa segura, acostumados à tradição e ao convencionalismo da fé, entregaram-se a orações formuladas por palavras que redundavam em exorbitantes exigências à Divindade, sem que conseguissem lenir o coração na prece confortadora, no intercâmbio salutar com as Fontes Geradoras da Vida. Objetivando apenas a cura da filha, mediante o concurso da oração, de que se utilizavam, como alguém que, através da prece, paga um imposto a Deus e de tal mister desagradável se desobriga. Infelizmente, não possuíam o hábito superior do dulçuroso convívio da meditação, em que se haurem expressões de vida e paz indispensáveis ao equilíbrio no carro somático, retornando das experiências e vilegiaturas religiosas com o espírito ressequido e o sentimento revoltado. Surda mágoa contra tudo e todos aumentava-lhes o aniquilamento íntimo. Feridos no orgulho e esma gados na suscetibilidade a que se dão apreço na Terra das frivolidades, passaram a experimentar sentimentos controvertidos em relação à própria filha, motivo da aflição que os compungia.
Enquanto o tempo se dobava, uma aceitação mórbida, parasitária, indolente, foi criando situação apática no lar, como já ocorria entre os facultativos que assistiam a jovem, no Sanatório. Dos cuidados iniciais, insistentes e imediatos, a uma tácita compreensão de que tudo se estava a fazer, veio o diagnóstico alarmante, irreversível:
Esquizofrenia!
A simples palavra ainda hoje constitui aparvalhante libelo.
*
Não obstante as excelentes experiências realizadas pelo eminente psiquiatra americano, dr. Sakel, em Viena, nos idos de 1933, cujos resultados apresentou a três de novembro daquele ano, através da convulsoterapia em que aplicara o metrazol, depois a insulina, abrindo as portas ao eletrochoque, a partir de 1937, após um Congresso Psiquiátrico em Roma, ocasião em que os preeminentes drs. Bini, Kalinowski e Cerlletti chegaram à conclusão da excelência do método do choque controlável, capaz de produzir anoxemia sem qualquer perturbação para o aparelho circulatório, particularmente a bomba cardíaca, do que resultaram admiráveis contribuições à saúde de diversos psicopatas esquizóides. A distonia esquizofrênica, porém, prossegue, sendo dos mais complexos quadros da patologia mental, revelando-se nas quatro fases cíclicas e graves do Autismo, Hebefrenia, Catatonia e Paranóia...
Assim, a loucura, apesar das avançadas conquistas Psiquiátricas e Psicoanalíticas, continua desafiador enigma para as mais cultivadas inteligências. Classificada na sua patologia clínica e mapeada carinhosamente, os métodos exitosos nuns pacientes redundam perniciosos noutros ou absolutamente inócuos, inexpressivos. Isto, porque, a terapia aplicada, apesar de dirigida ao espírito (psiquê), não é conduzida, em verdade, às fontes geratrizes da loucura: o espírito reencarnado e aqueles Espíritos infelizes que o martirizam, no caso das obsessões.
Fixados, no entanto, aos princípios materialistas que esposam, muitos cultores da Ciência fecham, propositadamente, os ouvidos e os olhos às experiências valiosas que ocorrem a cada instante fora dos seus limites, como a desdenhar de tudo que lhes não traga a chancela vaidosa da Academia, que não poucas vezes se utilizou do resultado dos fatos observados fora dos seus muros e fronteiras, para elaborar as bases de muitas das afirmações que ora são aceitas por legítimas.
A psicoterapia e os métodos admiráveis psicoanalíticos, como as orientações psicológicas hão logrado, como seria de esperar, resultados favoráveis algumas vezes, especialmente quando as causas da loucura, do desequilíbrio psíquico ou emocional são individuais ou gerais (conforme a classificação de alguns expoentes da doutrina psiquiátrica), psíquicas e físicas. Nestas últimas, se examinadas sob o ponto de vista da importância endógena ou exógena (no caso do abuso do fumo, barbitúricos, alucinógenos, álcool e outros), como das infecções e traumatismos, possivelmente se conseguem expressivos êxitos na aplicação clássica do tratamento.
Merece, porém, considerar, o a que denominamos de causas cármicas, aquelas que precedem à vida atual e que vêm impressas no psicossoma (ou perispírito) do enfermo, vinculado pelos débitos transatos àqueles a quem usurpou, abusou, prejudicou e que, ainda que mortos, não se aniquilaram na vida, havendo apenas perdido a forma tangível, sempre transitória e renovável.
Na atualidade, graças ao empenho do Espiritismo, a alma humana, o Espírito, já não pertence à velha conceituação de “sombra trágica”, de Homero ou “o enigmático e transcendente hóspede da glândula pineal”, de Descartes, antes é um ser perfeitamente identificável, com características e constituição própria, que se movimenta à vontade, edificador do seu destino, graças às realizações em que se empenha. Conseqüentemente, a vida espiritual deixou de ser imaginária, concepção ingênua dos antigos pensadores éticos que recorriam ao fantasioso para traduzir o que não conseguiam compreender.
Estruturada em realidades que escapam às denominações convencionais, a vida prossegue em mundos que se interpenetram ao mundo físico, ou se desdobram além da esfera meramente humana, ou se fixam a outros centros de força de atração, no Sistema Solar e fora dele, a multiplicar-se pelas incontáveis galáxias do Universo. E o ser, na sua viagem incessante, evolute de experiência a experiência, de mundo a mundo, de esfera a esfera, até libertar-se das baixas faixas da sensação, donde proveio, na busca da angelitude a que aspira.
Ante a terapêutica da Psiquiatria Moderna, que desdenha a contribuição dos conceitos filosóficos e religiosos, merece evoquemos o pensamento do dr. Felipe Pinel, o eminente mestre e diretor de L’Hospice de la Bicêtre, a cuja audácia muito deve a ciência psiquiátrica: “L’hygiene remonte jusqu’au temps des plus anciens philosophes” (*)• Isto, porque, da observação empírica à racional, nasceram as experiências de laboratório que, a princípio estribada em conceitos ético-filosóficos, resultantes do acúmulo dos fatos, passou ao campo científico como estruturação da realidade.
Entretanto, aferrados ao ceticismo, esses estudiosos da Ciência, mesmo diante dos fatos relevantes, permanecem fixados aos conceitos em que se comprazem, sem avançar, realizando conotações, comparações com outros resultados procedentes de outros campos.
Não há muito, por exemplo, o dr. Wilde Penfield, no Instituto Neurológico de Montreal, realizando uma cirurgia cerebral com anestesia local, percebeu que, estimulando eletricamente determinados centros do encéfalo, fazia que a paciente recordasse lembranças mortas, como se as estivesse vivendo outra vez.
Ao invés de logicar face à possibilidade de estar diante dos depósitos da memória que o Espírito guarda, consubstanciou a velha teoria de que aquela retém as lembranças por um mecanismo de impulsos elétricos encarregados de registrar todas as ocorrências... Como mais tarde outros pesquisadores encontrassem compostos químicos nas células dos nervos encarregadas de tal mister, conceberam a teoria de que tais arquivamentos são fruto da presença desses compostos,
(*) “A higiene remonta exatamente aos tempos dos mais antigos filósofos.”
Nota do Autor espiritual.
já que os modestos impulsos elétricos, que se descarregam com facilidade, não poderiam possuir durabilidade para conservar evocações de longa distância desde o tempo em que as mesmas ocorreram. E ninguém verificou a possibilidade das lembranças de outras vidas, igualmente impressas no cérebro, hoje largamente evocadas através da hipnose provocada como da recordação espontânea, testadas em diversos laboratórios de Parapsicologia.
Dia surgirá, porém, em que a Doutrina Espírita, conforme no-la apresentou Allan Kardec, se adentrará pelos Sanatórios, Frenocômios, Casas de Saúde e Universidades, libertando da ignorância os que jazem nos elos estreitos da escravidão de uma ou de outra natureza. À semelhança do dr. Pinel, que libertou das algemas os pacientes de Bicêtre, em 1793, e logo depois Esquirol que fez o mesmo, ensejando uma nova era à terapia psiquiátrica, o Espiritismo, também, a seu turno, penetrará nos velhos arcabouços e nas catedrais da cultura e de lá arrancará os padecentes algemados à loucura, à obsessão, projetando luz meridiana e pujante, sugerindo e aplicando a terapêutica espiritual de que todos precisamos para elucidar o próprio ser atribulado nos diversos departamentos da vida por onde jornadeia.
3
PENOSAS REFLEXÕES
“Ora, ao efeito precedendo sempre a causa, se esta não se encontra na vida atual, há-de ser anterior a essa vida, isto é, há-de estar numa existência precedente”.
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 5º — Item 6.
Sem dúvida, para o Coronel Constâncio e Senhora, o desequilíbrio que vítimava Éster significava inominável tragédia.
Logo passados os terríveis primeiros dias, em que a surpresa conseguira obliterar a lógica do raciocínio ante os acontecimentos, adveio a intolerável adaptação à realidade: Éster enlouquecera e o processo que a aturdia se caracterizava por parcas possibilidades de recuperação. O fantasma do desespero rondava, portanto, a família vencida, em prostração moral indescritível.
O tempo transcorria lento, traumatizante, desanimador. O especialista encarregado de assistir a jovem não ocultava a estranheza, face ao comportamento inusitado da enferma. O quadro clínico era desalentador, tal o desgaste orgânico de que se via objeto.
Atendida pelo eletrochoque, após a convulsão e o repouso, não retornava à lucidez, como seria de desejar, por um momento sequer. À prostração sucedia, surpreendentemente, maior tresvario.
A jovem, de lábios de mínio, jamais proferira expressões obscetas, pois fora educada com refinamento, sem maior condicionamento inconsciente de vis palavras, agora estorcegava, maquinal, verbetes infelizes para esbordoar moralmente o genitor, qual se estivesse dominada por ignominiosa força inteligente que a governava, desgovernando-a.
Na literatura psiquiátrica que compulsara — refletia o esculápio — a paciente não tinha menecma, era especial, porqüanto mudava de características a todo instante, como se voltivoando em personalidades estranhas.
Reagia à convulsoterapia de forma negativa, e a terapêutica do sono não conseguira o êxito cobiçado. Recusava-se à alimentação como se estivesse com a boca impedida, fazendo-se mister obrigá-la a alimentar-se contra sua vontade.
As terapias várias naquele primeiro mês foram inócuas, quando não se fizeram perniciosas.
Após conferenciar com eminente colega, terminou por confessar ao senhor Coronel o próprio embaraço que, todavia, não significava receio ou fracasso. Pacientes havia que somente apresentavam os primeiros sinais de melhora depois de longo tratamento realizado através dos meses.
A providência em apresentar honestas informações, justificava como salutar medida para impedir a inquietação crescente e a vã expectativa dos genitores por uma pronta, imediata recuperação da enferma, o que estava sendo improvável.
A realidade é que o problema psíquico de Ester se enquadrava noutra diagnose, dificilmente constatada pelos métodos tradicionais do agrado puro e simples do academicismo dos que se permitem a fatuidade, evitando o aprofundamento nas questões que dizem respeito à vida espiritual, à sobrevivência ao túmulo, à obsessão!
Com esse adicionar de preocupações e sob a torpe desventura da incerteza quanto à restauração mental da filha, o senhor Coronel fez-se taciturno, arredio, transformando-se em inditoso sofredor.
Intimamente não podia aceitar a conjuntura que o alcançava, absurda sob qualquer ângulo que examinada.
Homem íntegro, sua vida era uma excelente folha de serviços à Pátria e à Arma a que se dedicara, aliás com excessivos zelo e pudicícia.
Desde jovem cursara a Academia Militar, onde formara com rigidez a personalidade, o caráter, disciplinando a vontade com férreo esforço. Amante da verdade, tornara-se defensor do direito, da justiça, da lealdade.
Cultor das amizades relevantes, sabia distinguir afeições e deveres, sem perturbar-se com as questões de pequena monta.
Aos cinqüenta e seis anos de idade podia considerar-se feliz, até à data do infortúnio que o propelira de chofre ao desar... Consorciado em segundas núpcias com dona Margarida Sepúlveda de Santamaria, de tradicional família fluminense, reencontrara a dita que a morte lhe arrebatara, ao falecer a primeira esposa, que lhe não dera filhos, depois da breve enfermidade que a vítimara.
Senhora formosa e sensível poetisa, fora educada em elegante e primoroso colégio carioca, onde auferira invejável cultura. Dedicada aos bons livros, aprimorara aptidões na convivência com a literatura francesa de Montaigne a Molière, a Sartre, de Rousseau, Hugo, Balzac, Saint-Exupéry, de Lammartine, Sainte-Beuve, a Flaubert... Cultuava os seus autores prediletos e os poetas românticos no original. Desde que se consorciara, fizera do lar o agradável tabernáculo dos saraus culturais entre amigos e admiradores do Romantismo, da literatura refinada.
O transe que a vencia dilacerava-a mortalmente. Por mais que reflexionasse não alcançava as matrizes patológicas que justificassem o tormento que excruciava a filha.
Nenhum membro da sua família, até onde alcançava as linhas da árvore genealógica, fora portador de alienação mental de qualquer natureza. O lar sustentava-se sobre admiráveis bases de equilíbrio moral, emocional, econômico, e Ester jamais revelara qualquer traço de desequilíbrio, insegurança, nevrose... Filha extremosa, possuía excelentes qualidades intelectuais de que dava mostras na Escola onde era modelo: amada por todos — mestres e colegas — e cumpridora responsável das tarefas que lhe diziam respeito.
Visitando-a mais de uma vez, não obstante a negativa dos especialistas, alcançara o tentame, apelando para o receio de não suportar a vida sem rever a filha. Assim pudera, a distância, contemplá-la durante a hibernação, desfigurada, sem conseguir deter as lágrimas. Uma dor moral de tal monta convertera-se numa inqualificável dor física que a estiolava de dentro para fora.
Na sua mudez, refletia o Coronel, a seu turno, revoltado, ante a cruel vicissitude em que se sentia emaranhado irreversivelmente.
Um pesadelo! Sim, um pesadelo, considerava a desdita. Acordaria de inopino e reveria o sol dos sorrisos no firmamento do seu lar. Quando se conseguia evadir das férreas garras do sofrimento que se insculpira à brasa no seu cérebro, experimentava ligeira ilusão de que tudo aquilo era irreal.
A filha adorada, sonho transfigurado em fada de perfeição, não poderia estar encarcerada num hospício. Sim, num hospício, embora de alto preço. A vergonha, a hediondez da doença que transforma um ser inteligente num asqueroso animal — isto era inaceitável haver acontecido consigo, pior, com o querubim diretor do céu das suas venturas: a filha!
O homem, que raras vezes umedecera os olhos no fragor da guerra, naqueles tumultuados dias do inverno de 1944 e da primavera de 1945, agora se surpreendia com as lágrimas abundantes, que extravasavam da ânfora do coração sob camarteladas contínuas.
Não poucas vezes, abraçado à esposa, naqueles terríveis silêncios, caminhando pela Avenida, em frente ao mar e sob o zimbório salpicado de estrelas, evadia-se na direção da cela em que delirava, transtornada, a carne da sua carne, o rebento querido da sua vida. Que não daria, por poupá-la a tais sofrimentos!
Enlaçados na mesma dor e braços unidos, caminhavam a sós, vencendo o tempo, soturnamente, e apesar da agitação trepidante da larga e decantada orla perolada em lâmpadas feéricas de Copacabana, estavam sozinhos, fundidos na hedionda sortida da amargura aniquilante.
— Deus não existe! — resmungava, por fim, após as inúteis peregrinações mentais, pelos meandros da lógica materialista.
Todavia, o sabor da ira mal contida e do desespero revoltado mais lhe açodavam o ser extremunhado, na via do combalimento.
O que lhe representava pior, em toda a tresloucada investida da jovem alucinada, é que ele surgia na condição de algoz impenitente, odiento, aterrador...
Desejou vê-la uma única vez para lenir-se um pouco e luarizar a saudade. Ao formular o desejo ao médico, que não aquiesceu como compreensível, veio a saber, a posteriori, que ela lhe adivinhava a cogitação, apresentando-se, então, mais transtornada, mais agressiva... A agitação que a espezinhava não tinha termo. Era lancinante.
— Se ela morrer — arrematava, a concluir os raciocínios intérminos — suicidar-me-ei.
Aliviava-se com esse pensamento pernicioso, acalentando a vã idéia de, na morte, encontrar a cessação da vida e, na desorganização dos tecidos, perder a razão, a lucidez, desagregar o pensamento.
O infortúnio, porém, é mais sombrio e truanesco quando se faz acompanhar dos sorvos contínuos do ácido da revolta; principalmente dessa mal contida aversão ao fato afugente que faz oscilar da apatia à agressividade, gerando um estado de surda, permanente mágoa que é a desatreladora dos corcéis da desgraça real.
O orgulho penetrado pela verruma das Leis inescrutáveis reage, cercando-se de espículos envenenados pelo desconforto que a realidade lhe impõe, para colimar no simplismo do autocídio, o cobarde delinqüír que traça a linha inicial das hórridas paisagens que aguardam o infrator que se torna seu sequaz.
O homem forte nos embates externos somente afere as potencialidades quando luta sem quartel nos campos morais em que se consagra vencedor. Para tais cometimentos, a humildade e a fé constituem os mais hábeis valores de que se pode dispor com êxito, porqüanto portadores da fortaleza indispensável para qualquer situação.
Acostumado às alturas do prestígio e da bajulação requintada, o matrimônio Santamaria não dispusera do imprescindível tempo para as reflexões em torno do sofrimento, que não constitui patrimônio exclusivo da ralé, dos habitantes dos pardieiros imundos onde rebolcam os esquecidos da Terra...
A religião deveria ter-lhe dito que a sua não era uma existência de exceção, na qual somente a glória e o riso possuíssem o condão mágico para o regime permanente. As meditações que não foram experimentadas antes faziam-se indispensáveis, agora, enquanto esperavam sem a convivência da resignação e da paciência.
4
ANGÚSTIAS DA OBSESSÃO
“Quando é mau o Espírito possessor, as coisas se passam de outro modo. Ele não toma moderadamente o corpo do encarnado, arrebata-o, se este não possui bastante força moral para lhe resistir. Fá-lo por maldade para com este, a quem tortura e martiriza de todas as formas, indo ao extremo de tentar exterminá-lo, já por estrangulação, já atirando-o ao fogo ou a outros lugares perigosos. Servindo-se dos órgãos e dos membros do infeliz paciente, blasfema, injuria e maltrata os que o cercam; entrega-se a excentricidades e a atos que apresentam todos os caracteres da loucura furiosa”.
“A GÊNESE” — Capítulo 14º — Item 48.
Os meses amontoavam-se, lúgubres, sem que Ester recobrasse a razão. Os olhos garços, brilhantes doutrora, possuíam agora expressão asselvajada num rosto pálido-cinéreo sem vida, despido da auréola dos cabelos, então cortados à escovinha, transmudada num verdadeiro espectro que sobrevive, quizilento, animado por ignota vitalidade.
O desvario tornara-se-lhe condição normal. Relegada aos maus tratos de funcionários inescrupulosos, que se diziam cansados, como se não houvessem elegido na profissão de que se desincumbiam a penates de arrogância, inépcia e indiferença, as velutíneas mãos da misericórdia, da paciência e da compaixão para se utilizarem delas no momento próprio. Porque agressiva, não poucas vezes, tais servidores selecionados mais pela força física do que por qualquer outra condição, no suposto de que iriam lutar contra feras, feras também que se sentiam, escorraçavam-na com bordoadas homéricas, com que supunham acalmá-la, mais ainda enfraquecendo-a. As equimoses e a falta de alguns dentes, decorrência natural das repetidas cenas de pugilato, mais a caracterizavam megera.
Impedida a família de visitá-la, pela impossibilidade de qualquer diálogo e porque mais se lhe exaçerbava o delírio, especialmente quando de referência ao pai, fora rotulada como “incurável” e propositalmente esquecida, por ser mais trabalhosa.
De Casas de Saúde que tais a dignidade profissional e a humana se evadiram desde há muito e, ao fazê-lo, a ética arrastou consigo os sentimentos do amor, da piedade, do dever, da caridade... Mantêm-se ali pacientes pelo que representam na receita orçamentária, e quando liberam alguns clientes semi-hebetados pela compulsão, hoje, de drogas condicionantes, sabe-se que voltarão, logo mais, piorados, num círculo vicioso sem limite. Extorquem, sem dar quase nada ou preocupar-se ao menos em dar.
Quem se locupleta, todavia, com tais mercantilismos da saúde, da vida e da alma humana, volverá aos mesmos sítios, a expiar nas suas celas, regougando impropérios, esgrouvinhado, em aturdimento inominável.
Todavia, terapêutica indispensável em qualquer tratamento, o amor consegue, não raro, o que muitos medicamentos não produzem, ajudando a visualizar causas e efeitos, doando segurança, melhorando comportamentos e reações em toda a gama necessária aos resultados eficazes. Raros procuram a inspiração divina ante a nebulosa das enfermidades complexas, quer pela oração, ou pela sintonia mental com Deus. Diz-se, porém, que nos tratados médicos não existem as palavras Deus, oração e, todavia, Seu providencial socorro é que liberta e encaminha os padecentes da amargura para as trilhas da saúde, da paz...
Quando a sombra mais se adensa e as esperanças são flébeis, um raio jalne de luz rompe tudo e brilha nos escaninhos do horror, modificando a estrutura da área desolada, por impositivo divino.
Rosângela, igualmente jovem, recém-admitida na condição de auxiliar de enfermagem, na primeira visita pelo pavilhão dos desesperados, sentiu-se tocada por Ester, atirada a recanto lôbrego, atada
à camisa-de-força, no desvario habitual. Automaticamente se interessou pela esquálida paciente, inscrevendo-a na mente, como daquelas a quem daria maior dose de assistência e carinho.
Estava sendo introduzida para tratamento psiquiátrico a Rawfolvia serpentina, difundida como Serpasil, que não tinha os inconvenientes dos barbitúricos em geral, possuindo excelentes qualidades tranqüilizantes (*) Embora estudada há mais de 40 anos, somente, então, estava sendo usada para terapêutica psíquica.
Rosângela, que ouvira ardentes opiniões sobre a nova droga, pensou em examinar o prontuário da demente, calculando fazer alguma coisa por ela.
*
Ester, no entanto, caminhando pelo insidioso corredor estreito e fantasmagórico da loucura, padecia incalculáveis aflições, que sequer conseguia exteriorizar. Impossibilitada de controlar a casa mental, que já apresentava os primeiros distúrbios de funcionamento, após a constrição demorada do fluído morbífico do Espírito que a subjugava, era dominada por agonias inenarráveis.
Ela própria não se dera conta do sucesso que a acometera. Experimentara superlativa angústia, seguida de álgido suor e a sensação de que fora arrojada num abismo sem fundo, caindo sem cessar... O coração deslocara-se do lugar, pulsando em descompasso; todas as fibras do corpo, adormentadas, produziam dores lancinantes, e a cabeça, em redemoinho, impedia que o cérebro raciocinasse com a lucidez capaz de coordenar idéias. Gritou por socorro e surpreendeu-se com as cordas vocais em turgimento, espocando palavras chocantes que não podia controlar. Ouvia-se a distância, confusa, no som de sua voz alterada e era uma emoção odienta que não a sua.
(*) Segundo se acredita, a substância atua sobre o tálamo, realizando uma lobotomia de natureza química, por meio da qual diminui a capacidade emocional da usina elétrica ali sediada. procedendo a vitalização do cérebro com produto químico de que este se ressente para a manutenção do equilíbrio mental.
Nota do Autor espiritual.
Chorava em contorções, mas as lágrimas queimavam-se nas pupilas dilatadas e, sentindo febre, tremia em arrebatamentos de louca.
Via-se fora do corpo e, ao mesmo tempo, via-o agitado, num estado dúplice, sem anotar os circunstantes, chocados, na sua festa de apresentação social..
Após esse período, foi a luta em que se empenhou e continuava sem termo contra o gigante que a submetia.
Estava expulsa do organismo físico sem dele estar liberta.
A princípio sofria impressões confusas que a perturbavam. Vezes outras deparava-se com o estranho possessor, furibundo, em esgares de demente... Agredida por ele, procurava tornar à realidade anterior, como se perseguida em pesadelo soez desejasse acordar para dele livrar-se.
Todavia, não atingia o ponto ideal, porqüanto era impedida no intento, logo se renovando os paroxismos. À mente alcançavam as idéias vertidas pelo cérebro e ali aninhadas, mortificando-a por não serem esses os seus pensamentos; quando se esforçava por emitir os desejos, estavam os centros de registro bloqueados tenaz-mente...
Os sentimentos da afetividade estraçalharam-se no pélago do abandono e da solidão, na batalha impossível que travava, enquanto o pavor hórrido, crescente, não tinha lenitivo, em considerando auxílio algum.
Durante o tratamento face à convulsão produzida pelo uso do eletrochoque, impossível seria avaliar o insuportável que a estertorava em mil contorções até o desfalecimento. Ao despertar, fruindo o calor orgânico, defrontava-o, asqueroso, senhorial, e fugia, aparvalhada, cedendo-lhe o lugar... Minado o corpo pelo desgaste de largo porte, sucessivos desmaios expulsavam o usurpador que se deleitava, então, ameaçando-a, grosseiro, arrebatando-a para lugares povoados por espectros impossíveis de descritos. Nesses sítios, onde nenhuma claridade lucila, a asfixia pastosa domina; impossibilitada de qualquer ação, tornava-se mais fácil presa, arrastada aos trambolhões. Supunha-se, nessas situações, encontrava-se em cemitério infinito, de sepulturas abertas e cadáveres exumados ante a contemplação dos furiosos mortos-vivos, desejosos uns de os reconduzirem aos movimentos, deles reapossando-se; lamentosos, outros, por havê-los perdido irremissivelmente; lutadores diversos, a defenderem as vestes apodrecidas de animais que nelas se locupletavam; e o sem-número dos tristes, chorosos, em procissão intérmina... Sempre noite, lamentos, exacerbações, gritos ensurdecedores — o inferno!
Não suportando o vexame que se repetia com freqüência, perdia os sentidos ou desvairava, para depois despertar sem forças no çorpo mortificado. À pausa cedia lugar a nova e intensa disputa em que pelejava com axe na alma lúrida, exausta.
Com as reservas de forças físicas e as resistências psíquicas esgotadas, o tumulto que sofria em espírito dementava-a a pouco e pouco, produzindo-lhe não menor martírio, uma vez que lutava menos e atoleimava-se mais.
Onde o amor dos pais, sua proteção e socorro! — Gritava até a perda das resistências.
Gargalhadas zombeteiras e agressões obscenas eram as respostas que lhe chegavam aos ouvidos, através de rostos patibulares uns e deformados, agressivos, outros.
Exorava o socorro de Deus, mas, ao fazê-lo, tal era a desdita que a excruciava, perdia a concatenação, a ordem das súplicas, o que não impedia chegar-lhe a resposta divina, à semelhança de brisa refrescante, em aragem amena, vertida sobre a ardência das febres.
Recordava os mestres, as amigas, as famílias queridas que a cercavam de mimos e quinquilharias, agora, tredas, a distância.
— Estás morta ou quase morta — ouvia, aturdida, em blasfema acusação. — Logo mais culminarei este processo de vingança, extorquindo-te a vida, desforçando-me dele. Morrerás, como eu morri, a fim de que ele morra, também. Cá o espero.
— Deliro, Deus meu! — exclamava, apavorada. Mãe Santíssima. Sou inocente e sofro nas geenas infernais.
Lágrimas pungentes rasgavam os canalículos e escorriam como chuva abundante em terra escaldante, sem o milagre de refrigerar as ardências íntimas.
— Sim, és inocente em relação a mim, no entanto, odeio-te, por odiá-lo, desgraço-te para desgraçá-lo, venço-te para vencê-lo.
— Quem és, demônio destruidor? Compadece-te de mim. Sou uma adolescente, piedade!
— Sou o demônio da justiça, não o anjo da compaixão. — Arrematava, sardônico. — Encerremos a discussão inútil e passemos àguerra...
Aplausos e doestos sucediam-se, intempestivos, em pandemônio macabro.
Recomeçavam os torpes desforços, e o Espírito encarnado, menina no corpo, experimentava incríveis dilacerações morais... E era Inocente! tão-só na atual reencarnação...
A família cuidara-lhe da educação, instruindo-a, aformoseando-a, porém, não a preparando para as verdades espirituais. O Catolicismo, viciado pelas fórmulas e cultos extravagantes, desertara do Cristianismo, tornando-se pedagogo incapaz para a preparação espiritual das criaturas, por haver banido a revelação das suas lições, supondo-se os seus clérigos capazes de conceder céus e paraísos, através de inócuas palavras e atitudes vãs.
Em decorrência disso, muitos pais supõem, mesmo hoje, em cômoda atitude moral, que as dissertações sobre a vida no além-túmulo não devem ser ministradas aos filhos, que os têm como imaturos para os ministérios superiores, para as reflexões da verdade, não, porém, para as paixões dissolventes, os arremedos de masculinidade ou feminilidade em que, espezinhando o amor, se convertem em vasos de sensações sexuais de teor primitivo e descambam para as aventuras do domínio pelo egoísmo, pelo orgulho ou pela astúcia com que os armam e de que eles logo se apropriam, com facilidade espantosa. Para as imperecíveis mensagens morais do espírito imortal, os jovens sempre lhes parecem jovens demais... Juventude que, aliás, devera ser melhor aproveitada, com vistas à maturidade digna e à velhice feliz...
Ester, assim subjugada pelo possessor em comburência - de ódio, sucumbia, inerme, lentamente, quase vencida.
5
INTERFERÊNCIA ESPIRITUAL
“Imaginamos erradamente que aos Espíritos só caiba manifestar sua ação por fenômenos extraordinários. Quiséramos que nos viessem auxiliar por meio de milagres e os figuramos sempre armados de uma varinha mágica. Por não ser assim é que oculta nos parece a intervenção que tem nas coisas deste mundo e muito natural o que se executa com o concurso deles.
Assim é que, provocando, por exemplo, o encontro de duas pessoas, que suporão encontrar-se por acaso; inspirando a alguém a idéia de passar por determinado lugar; chamando-lhe a atenção para certo ponto, se disso resulta o que tenham em vista, eles obram de tal maneira que o homem, crente de que obedece a um impulso próprio» conserva sempre o seu livre arbítrio”.
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Questão 525 — Comentário.
Na sua festa de aniversário, Ester fora surpreendida pela agressão de revoltado Espírito que, acoimado por violenta crise de ódio, encontrou na sua sensibilidade mediúnica o campo propício para a incorporação intempestiva quão infeliz.
Assenhoreando-se das forças medianímícas da jovem, o obsessor, na sucessão dos dias, imantou-se-lhe quanto pôde ao campo psíquico, culminando no lamentável e longo processo de subjugação.
Compreensivelmente, Espírito em débito ante os Códigos da Divina Justiça, possuía os requisitos para uma sintonia perfeita, propícia ao agravamento do problema.
À sua semelhança na “Casa de Saúde”, onde expiava os delitos ultrizes do passado, muitos outros pacientes eram vítimas da cons trição obsessiva. Fugindo à etiologia clássica da loucura, na qual o enfermo é Espírito que busca fugir à realidade objetiva, fortemente assinalado pelas reminiscências próximas em que chafurda, torna-se suicida inconsciente por meio de cujo recurso procura evadir-se às responsabilidades novas que lhe cumpre assumir e desenvolver, a fim de liberar-se.
Naturalmente, eclodindo a manifestação da loucura, instala-se, também, um simultâneo processo obsessivo, graças às vinculações que mantêm encarnados e desencarnados na Contabilidade dos deveres múltiplos, poucas vezes desenvolvidos com retidão.
Na obsessão, a loucura surge na qualidade de ulceração posterior, irreversível, em conseqüência das cargas fluídicas de que padece o paciente, vítimado pela perseguição implacável.
Face à insidiosa presença de tal energia deletéria, desarticulam-se o equilíbrio emocional, a estabilidade nervosa, o metabolismo orgânico e, pela intoxicação de que se vêem objeto, vários departamentos celulares se desorganizam, envenenando-se, ulcerando-se.
Através de tal esquema em muitos processos obsessivos, a terapêutica salutar há de ser múltipla: acadêmica e espírita, imprescindíveis para colimar os resultados eficazes.
No caso específico de Ester, encontravam-se como agravantes múltiplos fatores cármicos, que aumentavam o sofrimento da aturdida obsessa.
Como ninguém se encontra marginalizado ante os recursos divinos, a presença de Rosângela representava o recurso inicial utilizado pelos Benfeitores Invisíveis para os primeiros tentames favoráveis à alienada, embora jamais houvesse ficado sem a superior assistência.
Profundamente amadurecida, não obstante a pouca idade física, a auxiliar de Enfermagem experimentara desde cedo o cadinho purificador de muitas vicissitudes e aflições, que contribuíram para a harmonia íntima de que se fazia possuidora.
Órfã desde os oito anos, ficara aos cuidados paternos, em subúrbio carioca, lutando com bravura pela sobrevivência.
Sensível e meiga, conseguira granjear afeições espontâneas entre os vizinhos, que passaram a assisti-la com desvelo, inclusive matriculando-a em escola primária próxima ao lar. O pai, diligente, trabalhava afanosamente, mantendo-se viúvo quanto pôde. Consorciando-se, alguns anos depois, a esposa fez-se terrível adversária da enteada, que foi, então, trasladada para digno lar em Botafogo, onde se alojou, na condição de ama de criança... À medida em que o tempo se desdobrava, natural, conquistou a amizade dos patrões que, em lhe identificando o drama resignado, resolveram socorrê-la da maneira mais favorável. Espíritas convictos, adestraram-na, membro da família em que se convertera, na grandiosidade dos estudos doutrinários, cuidando, também, da sua instrução, através do ingresso em Ginásio noturno, donde estava recém-saída, após concluir ligeiro curso de enfermagem-auxiliar a cujo mister agora se entregava. Participando dos labores espiritistas, aguçaram-se-lhe as faculdades mediúnicas, que receberam carinhoso e lúcido trato dos benfeitores, encaminhando-a ao Centro Espírita, onde passou a cooperar nos benéficos serviços de socorro desobsessivo.
Ao defrontar Ester, pressentiu a tragédia que se desenvolvia além das manifestações exteriores da paciente. Simultaneamente, poderosa simpatia brotou-lhe dos sentimentos puros, envolvendo a atormentada, desde então, na devoção das suas preces e vibrações.
Inspirada pelos seus e pelos Guias Espirituais da doente, foi-se, a pouco e pouco, acercando, até conseguir com a simples presença acalmá-la, desembaraçando-a da “camisa-de-força” a que vivia jugulada, quando não se encontrava sob as altas doses de sedativos que lhe eram impostas com regular freqüência.
Suas horas de folga as dedicava à moça, que nem sempre a recebia com qualquer lucidez ou passividade. Todavia, pelas emanações psíquicas que exteriorizava, conseguia neutralizar a agressividade do obsessor, que se lhe submetia à força moral, como se fora uma energia balsamizante que se contrapunha à sua nefasta pertinácia.
Emocionada, inteirou-se do terrível sofrimento da tutelada, mediante o conhecimento da “história clínica” e por meio de informações que logrou recolher discretamente.
Aconselhando-se com os tutores, resolveu-se procurar os pais da internada, na pressuposição de elucidá-los sobre a enfermidade da filha. Confiava poder ajudar, fiel à recomendação evangélica.
Solicitando por telefônio uma entrevista formal com o senhor Coronel e Senhora Constâncio Santamaria, foi recebida em clara manhã de setembro no apartamento outrora feliz, ora transformado em triste refúgio de amarguras e reminiscências dolorosas.
Acolitada pelos Espíritos Benfazejos que a amparavam, ao apresentar-se com natural timidez e constrangimento, não lhe, passou despercebido o enfado refletido na face dos anfitriões.
Sentia-se vistoriada com enérgica observação, e não fossem as excelências dos propósitos que a animavam, teria solicitado excusas, recuando...
Na conjuntura, firmemente teleguiada pelos Espíritos, falou sem rebuços:
— Rogo-vos permissão para elucidar, que afeição muito grande, e até certo modo inexplicável, liga-me a Ester, de quem me fiz encarregada no Hospital, por solicitação espontânea.
O casal, emudecido, surpreso, escutava-a, sem dissimular o desinteresse pela sua presença.
Depois de breve pausa, continuou, ante o mutismo descortês dos ouvintes:
— Venho cuidando dela há mais de um mês, sem conseguir-lhe uma palavra de equilíbrio, que denotasse raciocínio, exceto...
— Exceto? — inquiriu a senhora.
— Exceto há poucos dias — prosseguiu — quando, muito debilitada, num breve momento, pareceu recobrar a claridade mental, balbuciando: — “Mamãe! mamãe, onde você está?... Tenho medo, mamãe...
— Oh! meu Deus! — exclamou, em pranto incontrolável, a dorida senhora.
— Acalme-se, meu bem! — Acudiu o esposo, igualmente lacrimoso.
— Perdoai-me trazer-vos a renovação das lágrimas... — Intentou a auxiliar, emocionada, a seu turno. — Sucede que acompanho Ester como somente o faria a uma irmã muito querida e com o senso de observação aguçada, comparo-a a outros enfermos, anoto, percebo o que muitos não conseguem ou talvez prefiram não ver...
— Como assim? — interrompeu-a o senhor Coronel. — Por favor, seja mais clara, diga-nos o a que veio. Nossa filha é hoje o pouco e o tudo da nossa inditosa existência... Você também é tão jovem, que não consigo ficar à vontade... Parece-me imatura, sem experiencia... Todavia, somos ouvidos atentos. Prossiga!
— Senhor Coronel — iniciou Rosângela — Ester não é uma louca segundo os padrões comuns, tradicionais..
— Sim, sim — interrompeu-a o Coronel Constâncio — nós o sabemos. Seu psiquiatra já no-lo asseverou o mesmo.
— Não, por favor — atalhou Rosângela — ouvi-me primeiro... Não é comum porque não a considero louca.
— Digo bem! — assegurou, calma e lúcida, dirigida espiritualmente. — uma obsessa por Espíritos!
— Não compreendemos a alusão, que nos parece absurda. —Interceptou-a, o interlocutor, azedo.
— Ouvi-me primeiro — solícitou, confiante. — A morte não elimina a vida; antes a dilata. Mudam-se as aparências, no curso de uma única realidade: viver! Assim, com a morte do ser físico não cessam as impressões do ser espiritual, conforme asseguram todas as religiões, do que decorre um natural intercâmbio, incessante, entre os que sobrevivem ao túmulo e aqueles que ainda não o atravessaram. Retornam, felizes ou desventurados, os que foram conduzidos ao país da morte, seja pelo veemente desejo de ajudar os afetos da retaguarda, adverti-los e confortá-los, com eles mantendo agradável comunhão; seja vítimados pelo sofrimento com que se surpreenderam, buscando ajuda e, muitas vezes, perturbando; seja dominados pelas paixões inditosas de que não se conseguiram libertar, perseguindo, distilando ódios, obsidiando, em incessante conúbio...
— Mas isto é bruxaria! — interrompeu-a, quase violento. —Aqui somos tradicionalmente religiosos e detestamos essas práticas vulgares de fetichismo que, desgraçadamente, empestam, nestes dias, a nossa Sociedade... Rogo-lhe o favor de mudar o curso da conversação. Aliás, creio que já não temos o que conversar.
Rosângela tornou-se lívida, enquanto o progenitor de Ester estava rubro de ira, furibundo. Sob o verniz social, agasalhavam-se muitos estados de ferocidade.
Diga-me, senhorita: — Interrogou-a, áspero. — Qual a sua religião?
— Espírita, senhor!
— Desde quando o Espiritismo é religião?
— Desde os primórdios.
— Atrevida e petulante. Vir à minha casa arengar sobre magia negra, superstição, como se fôramos pessoas ignorantes, pertencentes às classes inferiores que se comprazem, por fuga psicológica e misérias, nessas práticas, de que faz falta a repressão policial enérgica. Antes de retirar-se, responda-me: nos hospitais, agora, se permitem bruxos e macumbeiros entre os seus servidores?
— Querido!... — exclamou a senhora — Não se encolerize.
— Isto mesmo. — Redargüiu. — Diga-me!
A jovem estava perplexa, porém lúcida, e tefletia: “Como a verdade é proposital, comodamente ignorada! Quão poderoso é o cerco do orgulho, que separa homens por dinheiro, posição, aparência, apesar de todos marcharem inexoravelmente para uma mesma direção: a consciência que os examinará despidos dos engodos a que se aferram!” Inspirada, contestou, delicadamente:
— Excelência, aqui venho propondo-me servir com humildade e desinteresse. A minha confissão religiosa não tem ligação com a minha modesta função hospitalar, senão para impor-me a conduta cristã, que ensina misericórdia em relação aos infelizes: estejam nas camadas do infortúnio social ou no acume da ilusão econômica. No santuário espiritista, que freqüento, o alvo redentor é Jesus, a estrada a percorrer chama-se caridade, seguindo sob o sol da fé viva e a força do amor fraternal. Venho a este lar em missão de paz e dele sairei pacificada, sem embargo, expulsa, o que muito lamento, não por mim, que reconheço a minha própria desvalia... O vaso modesto não poucas vezes mata a sede, oferta o medicamento salvador, retém o perfume, atende a misteres relevantes, enquanto preciosas taças de cristal lapidado adornam, mortas, empoeiradas, móveis luxuosos e inúteis...
O Coronel Santamaria e esposa ouviam-na, incomodados pela argumentação superior, apresentada com humildade, impossibilitados de a interromperem, magnetizados pelos Instrutores Espirituais presentes.
Enquanto isso, semi-incorporada, Rosângela aduziu:
— “Brilhe a vossa luz” — conclamou o Cristo — para que o mundo vos conheça. A luz da verdade fulgurará, apesar das mil tentativas da Treva em domínio transitório, Os pseudobruxos que a intolerância fez queimar, ao perecerem, não deixaram silenciosas as Vozes, que retornaram e volverão até instalado na Terra o “reino de Deus”.
E após rápida reflexão:
— Continuarei velando por Ester...
— Nunca mais! — Esbravejou o senhor Coronel, que rompera o mutismo obrigatório a que estava subjugado. — Providenciarei para que não volte a vê-la, caso não resolva exigir a sua expulsão daquele Frenocômio.
— Como lhe aprouver, excelência. Dai-me vossa licença. Bom dia, senhores, passai bem.
E retirou-se. O dia seguia bonançoso, tépido. O vento e a maresia que corriam pela Avenida Atlântica, aspirados em longos haustos pela jovem servidora da esperança, despertaram-na. Só, então, concatenando idéias e ordenando lembranças, deu-se conta dos acontecimentos, sendo visitada pelos receios e as lágrimas.
Rosângela fora excelente instrumento indireto dos Bons Espíritos, que tentavam, desse modo, interferir e ajudar no grave sucesso da subjugação de Ester.
6
FORÇAS EM LITÍGIO
“Ide e pregai. Convosco estão os Espíritos elevados. Certamente falareis a criaturas que não quererão escutar a voz de Deus, porque essa voz as exorta incessantemente à abnegação. Pregareis o desinteresse aos avaros, a abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos domésticos, como aos déspotas! Palavras perdidas, eu o sei, mas não importa. Faz-se mister regueis com os vossos suores o terreno onde tendes que semear, porqüanto ele não frutificará e não produzirá senão sob os reiterados golpes da enxada e da charrua evangélicas. Ide e pregai!”
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 20º — Item 4.
Embora as qualidades morais que exornavam o caráter do Coronel Santamaria, era ele um homem temperamental. Forjado na escola do dever, desenvolvera-se-lhe, simultaneamente, o orgulho em que apoiava decisões e atitudes, sem embargo, probo e justo quanto possível sê-lo.
Com a enfermidade que dominava Ester, fazendo perecer os entusiasmos e aspirações de pai, a amargura solapou-lhe as alegrias, e o azedume contumaz transviou-o para as rotas de surda revolta contra todos, contra tudo, reagindo, em volta, por ignorar os móveis legítimos da aflição e poder removê-los, adquirindo, assim, a necessária serenidade para suportar as vicissitudes habituais na existência humana.
Tornou-se arredio, fechando ainda mais o círculo de amizades, somente saindo de raro em raro, razão por que mais aflitiva se lhe tornava a conjuntura.
Freqüentador de uma igreja religiosa, não possuía fé verdadeira. Habituara-se ao mecanismo da ritualística e, como antes não houvera experimentado o travo das lágrimas, não se exercitara na comunhão com Deus nem chegara a cultivar colóquios com o Mundo Espiritual. Nos primeiros dias da aziaga desesperação recorrera à Divindade, guindado à falsa posição de impositor, sem os lauréis do humilde requerente que confia. Ë natural que se deixasse desesperar. A oração vazia de expressão espiritual não conseguira leni-lo: eram palavras sem tônica de amor nem fé.
Guardava, no entanto, insculpido na vaidade social, o rótulo de uma crença em que não participava de forma alguma. Acreditando-se merecedor da subserviência divina, por acomodação e ignorância, subvertera a ordem das posições entre ele e Deus, graças a cumplicidade clerical, sempre disposta à distorção dos lídimos ensinos do Cristo, a fim de agradar os conspícuos transitórios vencedores no mundo, a que se submete por desmedida ganância de destaque terreno.
Por isso, atribuiu à coragem de Rosângela os laivos da petulância e do atrevimento, por incomodá-lo com as arremetidas do socorro que se via impossibilitado de receber. O orgulho é cruel inimigo do homem, porqüanto, envenenando-o, cega-o, totalmente. Simultaneamente, graças à psicosfera da felonia que cultivava, passou a sintonizar com outras mentes amotinadas que lhe cercavam o lar, em plano concorde com o perseguidor de Ester, planeando alcançá-lo mais duramente... Rosângela, representando o auxílio divino indireto, fora expulsa pelos vingadores desencarnados, que lhe sabiam dos propósitos elevados.
Ferido na insensatez do orgulho desmedido, aguardou que passasse o domingo dourado e, no dia imediato, fortemente conduzido pelos adversários desencarnados com quem sintonizava, nos últimos tempos, foi queixar-se à direção do Hospital, com as tintas carregadas da irritação, sobre o procedimento da moça. Exigia que ela não voltasse a qualquer contato com a filha. Certamente não lhe impunha a demissão, todavia, propunha severa admoestação, de que redundasse, na próxima vez, expulsão dos serviços pelo perigo que representava sua convivência junto aos pacientes. Vã cegueira da Humanidade! Luta inglória contra o aguilhão!
Saindo aturdida do apartamento palaciano e trazida à realidade objetiva pelo afago da natureza festiva, Rosângela não dominou as lágrimas. Receio injustificável assaltou-a, e a antevisão da perda do trabalho afigurou-se-lhe como odiento fantasma de rude fracasso.
Caminhou um pouco, algo desarvorada, sentou-se próxima ao mar, deu vasão aos sentimentos desconexos, depois recordou-se da prece, deixando-se arrastar pelas lucilações e consolos da oração. Mesmo no regorgitar da praia imensa, vestida pela multidão quase despida, sentia-se a sós em intercâmbio com os seus Protetores, do que lhe resultou renovação íntima, paz reconfortante.
Logo refez-se, volveu ao lar, adiando a exposição dos resultados da entrevista.
Os domingos, na residência do dr. Gilvan de Albuquerque, eram o dia dedicado aos estudos do Evangelho, em estreito círculo de amigos e familiares.
O dr. Gilvan era pediatra próspero, que residia na praia de Botafogo. Ultrapassara os 50 anos, havendo constituído uma família ditosa.
D. Matilde, sua esposa, era o exemplo da abnegação cristã, e o seu domicílio tornou-se núcleo de recolhimento espiritual, no qual Mensageiros da Luz encontravam vibrações superiores para o ministério a que se afervoravam, no socorro aos padecentes de ambos os planos da vida. Genitores de uma filha única, Márcia, esta, ao consorciar-se, enriqueceu-os com a bênção de linda menina: Carmen Sílvia. Residiam todos juntos, por insistência do dr. Gilvan, que, devotado, conseguira a aquiescência do genro, tido como filho do coração. Rosângela viera para pajear a criança.
Trasladando-se, porém, há menos de dois meses para um curso de especialização nos Estados Unidos, os jovens nubentes seguiram com a filha, deixando a servidora ao lado dos pais, na condição de familiar, conforme lograra pela abnegação e demais dotes de espírito de que a moçoila se revestia. Nesse ínterim, o benfeitor localizara-a para trabalhar na Casa de Saúde.
Estudando e praticando metodicamente o Espiritismo, a família apurara a sensibilidade moral e psíquica, entesourando valores inapreciáveis com que se dispunham ao nobre labor do bem. Os deveres espirituais, livremente abraçados, eram desenvolvidos em clima de severidade e otimismo, gozando de primazia em qualquer circunstância. Os “vícios sociais”, inocentes na aparência quão perniciosos na realidade, foram dali expulsos, e as conversações edificantes, leituras seletas, entremeadas de opiniões e humor agradável, constituíam serões que restauravam as forças, revigorando o espírito após os quefazeres do cotidiano.
O Espiritismo naquele domicílio tornado santuário constituía lídima ventura, caracterizando uma típica família cristã.
O “culto evangélico do lar”, como natural conseqüência, se fazia realizar entre gáudios e esperanças. Música suave do clássico universal predispunha os assistentes, antes da reunião ao recolhimento, à õração, em cujos momentos acalmavam-se-lhes as atribulações, desligavam-se dos atros problemas e desembaraçavam-se dos fluídos perniciosos. O grupo reduzido constituía-se de doze a quinze pessoas, em freqüência habitual, interessadas na reforma íntima, empenhadas na auto-iluminação.
Às 20:00, pré-estabelecidas para o início da reunião, acercavam-se da mesa sob a direção do dr. Albuquerque, encarregado de conduzir os estudos.
Naquela noite, sob as fortes impressões do acontecimento da manhã, Rosângela sentia-se confrangida. Ninguém a constrangera a explicações. Ali a liberdade e a confiança se afagavam, facultando perfeita compreensão dos deveres e dos direitos. Não havia imposições.
Ato contínuo à prece de abertura, procedida com discreta emotividade pelo orientador da tarefa, dona Matilde tomou de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, confiante, e, impulsionada pelos Mentores Espirituais presentes, abriu-o no Capítulo número XX: “Os trabalhadores da última hora” e leu o subtítulo: “Os obreiros do Senhor”. Um leve sorriso de júbilos delineou todos os lábios, por saberem que aquela era a instrução vertida do Alto para conduzi-los e sustentá-los nas lutas porvindouras. Com voz pausada e boa dicção a nobre senhora começou a ler:
5. “Aproxima-se o tempo em que se cumprirão as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Ditosos serão os que houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem outro móvel, senão a caridade! Seus dias de trabalho serão pagos pelo cêntuplo do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam dito a seus irmãos: Trabalhemos juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre acabada a obra, porqüanto o Senhor lhes dirá: Vinde a mim, vós que sois bons servidores, vós que soubestes impor silêncio às vossas rivalidades e às vossas discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!”
A palavra bem articulada com inflexão de sadia emotividade contagiante prosseguiu até o fim da eloqüente mensagem ditada pelo Espírito de Verdade, em Paris, em 1862, que seria o tema central dos comentários e estudos da noite. Com ordem, os componentes do grupo respigaram opiniões, entretecendo conceitos e comparações àqueles dias, com que se ensejavam a levantamento de ânimo e predisposição para os ardorosos trabalhos, em considerando a “última hora”, em rápida andadura. Inspirados, adaptavam-na às próprias necessidades, formulando conotações valiosas em relação a outras lições das demais Obras da Codificação, especialmente “O Livro dos Espíritos”, que, passo seguinte, foi lucidamente examinado.
O ambiente respirava o ar festivo da Natureza que se adentrava, misturando-se às saturações balsâmicas da sala onde Espíritos Felizes confraternizavam com os obreiros terrenos, em preparação das tarefas futuras.
Transcorridos alguns minutos reservados à oração intercessória e às vibrações pelos enfermos, presidiários, sofredores de vária classificação, fez-se espontânea pausa, como se, fortemente magnetizados pelas Presenças, sentissem que amado Benfeitor, em ação especial, viesse instruí-los, orientá-los. Fluídos anestesiantes penetravam-nos, e suave melodia tangida por mãos seráficas, alcançava-lhes a alma, sem rociar-lhes sequer os ouvidos.
Adolfo Bezerra de Menezes, o amorável Instrutor, tomando os centros da mente e o comando da voz de Rosângela, apresentou-se em suave manifestação psicofônica de relevante significação:
— “Meus irmãos: — enunciou com entonação inesquecível. —Jesus nos favoreça com a Sua paz e nos abençoe!”
Todos eram ouvidos, em uníssono, mentes e sentimentos estreitados em dúlcida emotividade.
Após a saudação repassada de ternura, prosseguiu:
“Trabalhadores imperfeitos que reconhecemos ser, encontramo-nos no campo que a própria insensatez deixou ao cuidado das pragas e do abandono. Em todo lugar, desolação e ruína: jardins vencidos pelo matagal, pomares destruídos pelas tormentas, solo crestado, sebes arrebentadas, fontes vencidas por miasmas, habitadas por animais venenosos... Todavia, é a nossa área de labor e redenção, onde devemos recomeçar e agir. Dispomos do trato da terra que a nossa incúria desrespeitou, cabendo-nos, agora, recuperar pela carinhosa assistência o prejuízo, aplicando todos os recursos ao nosso alcance, enquanto urge a oportunidade.
“Em razão disso, mister considerarmos em profundidade o ensino evangélico do “Ide e pregai”, ensinando com o exemplo que edifica e avançando com as mãos enriquecidas pelas obras, através de cujo resultado atestaremos a excelência dos nossos propósitos.
“Não há tempo, nem seria justo malbaratá-lo nas discussões infrutíferas das vaidades intelectuais, exaltando a fatuidade e a arrogância, enquanto as epidemias morais e sociais assolam terríveis, arrebanhando e destruindo multidões de incautos e incontáveis criaturas que lhes experimentam a coercitiva escravidão.
“O Evangelho é o nosso zênite de amor e o nosso nadir de mensuramentos. Quem se exalta, inicia a trajetória para baixo; aquele que se glorifica, entorpece-se na ilusão... Todavia, o que avança infatigável, ignorado, mas servindo, humilhado, no entanto valoroso, perseguido, porém, imperturbável, transformando os sentimentos numa concha afortunada de amor, logrará o elevado cometimento do êxito real.
“Nenhuma queixa, portanto, nenhum rol de mágoas.
“Nosso tempo mental deve ser dedicado à elaboração dos planos de serviços relevantes e contínuos. Jesus é o exemplo ideal do trabalhador modelo. Não foi poupado nem compreendido.
Entretanto, elaborou e viveu o código de felicidade com que nos acena e de que dispomos para o desiderato regenerativo.
“Advir-nos-ão muitas dores e provações, por serem o que merecemos.
“Provaremos amargos testemunhos. Estes nos serão os preços àhonra e à glória de servir.
“Ninguém alcança as cumeadas da paz sem os estertores no vale das lutas. Indispensável perseverar e insistir.”
Intervalo natural ajudava a reflexão dos conceitos e fixação deles nos recessos da alma, enquanto diminutas gotas fluídicas pairavam no ar qual orvalho divino, penetrante.
De imediato, prosseguiu:
“Comprometemo-nos restaurar a primitiva pureza cristã entre os homens, vivendo de maneira condicente com os ensinos evangélicos; responsabilizamo-nos ante os Instrutores Elevados em não menosprezar a atual concessão celeste, tornando-nos maleáveis à inspiração superior, de modo a realizarmos a tarefa, mais de uma vez interrompida; concordamos em dar a vida, se necessário, pela implantação do Consolador no mundo, nestes dias tumultuosos. Recebemos auxílios de toda sorte. Não nos têm sido regateados socorros. Conhecemos de perto a agonia e a miséria, também sabemos o paladar da esperança e o aroma dos júbilos. Que mais aguardamos? Avisados de que nossa luta seria entre as forças em litígio: o bem e o mal — eis-nos na liça. A refrega é nosso leito de repouso, a dificuldade, o desafio que nos chega e a dor nossa condecoração.
“Ainda por demorado período se fará cruenta a luta dos cristãos novos, decididos. Ontem, a arena requisitava o estoicismo do momento. Hoje as balizas do circo se situam em perímetro colossal, que abrange intérmina área de ação e as feras — as paixões! — tentarão o nefando morticínio ferindo de dentro para fora.
“Não há porque recear.
“Muitas vezes o pretérito de delitos assomará à frente como ultriz necessidade, ou ferida exposta, ou desequilíbrio tormentoso, ou açoite inexorável, ou inquietação afugente...
Mergulhando-se a mente e as preocupações nas águas lustrais da Boa Nova e as mãos no trabalho, não haverá ensejo para o desânimo nem para a acomodação no lamento ou a tentação da fuga.
“Vive-se morrendo e morrendo, está-se vivendo. Cada realização enobrecida constitui título de ventura e todo receio mais sombra na treva dos problemas. As alternativas são servir sem desfalecimento e confiar sem tergiversação. Jesus fará o que nos não seja possível realizar.
“Confiados em que a vitória final a Ele pertence, exultemos e prossigamos.
“Suplicando que o Seu amor nos permeie e a Sua misericórdia nos alcance, sou o servidor humílimo de sempre, Bezerra.”
Respirava-se o ambiente das primitivas células do Caminho. A atmosfera suave expressava o significado do momento. Lágrimas aljofravam os olhos de todos, nascidas nos peitos túmidos de emoção.
Proferida a prece final, o dr. Albuquerque considerou encerrado o culto da noite entre gratidões a Deus e esperanças no futuro promissor.
7
ADVERTÊNCIA E ESCLARECIMENTO
Pergunta: 459. “Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos?»
Resposta: “Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que de ordinário são eles que vos dirigem.”
*
Pergunta: 465. “Com que fim os Espíritos imperfeitos nos induzem ao mal?»
Resposta: “Para que sofrais como eles sofrem.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 9º.
A entrevista mantida pelo Coronel Santamaria com o diretor da Casa de Saúde deixara no esculápio as vibrações da cóleramal contida. Incontinente, Rosângela foi convidada à Administração e compreendeu que chegava o instante decisivo para a sua fé
O psiquiatra não se deu à gentileza de mandá-la sentar-se. Olhando-a com rispidez, ardil de que se utiliza a fraqueza para disfarçar a falta de valor, foi incisivo:
— O Coronel Constâncio Santamaria acaba de deixar este gabinete, após apresentar grave acusação ao seu comportamento.
A moça estava lívida, não obstante, serena.
O chefe, levantando-se, enfrentou-lhe o olhar tranqüilo e prosseguiu, fuzilante:
- Como se atreve transformar esta Casa num deplorável sítio de práticas ignominiosas, nigromânticas?
— Deve haver um engano, doutor. — Retrucou, surpresa.
— Não me interrompa. — Revidou, colérico. — Não esqueça sua função e resttinja-se a ela. Aliás, você aqui se encontra em período experimental e a sua falta é condição para despedi-la, pura e simplesmente.
— Solícito melhores esclarecimentos. — Justificou a auxiliar.
— A senhorita é acusada de práticas de magia ao lado de uma paciente, a filha do Sr. Coronel. Que tem a dizer?
— Que a informação é falsa e a acusação, portanto, injusta.
Rosângela estava socorrida pela inspiração de que se fazia credora, ante a trama nefasta da sordidez humana e da ardilosidade dos comparsas do mal, desencarnados.
— Então, deseja dizer que o Coronel está mentindo? Ë louca?
— Em absoluto, não digo isto. Assevero que jamais me afeiçoei a qualquer prática desabonadora à minha dignidade, muito menos em relação a magias, que desconheço inteiramente.
— No entanto, é metida em Espiritismo, filiada a esse círculo de loucos desnaturados?
— O dr. está equivocado. Sou espiritista, sim, aliás, com imensa honra, o que é perfeitamente permitido pelas leis do país, constituindo uma admirável filosofia de vida e religião consoladora. Quanto à alegação de que o Espiritismo e um circulo de loucos”, desejava indagar ao senhor diretor qual a religião que professam os internados nesta Casa? Não me consta que a jovem Ester jamais houvesse freqüentado uma Casa Espírita, o que, talvez, se ocorresse, lhe teria evitado a tragédia em que sucumbe, a pouco e pouco.
— Além de desequilibrada é atrevida!
— Desculpe, doutor. Sou convicta da fé que esposo e minha conduta é irrepreensível. Se os meus serviços não servem a este Nosocômio, não há porque transformá-los em problema; porém, não me cabe silenciar diante da acusação improcedente. Confio em Deus e sei que o senhor é portador de excelentes dotes do sentimento, do caráter, da razão.
Havia nobreza e coragem nas afirmações da jovem. Colhido de surpresa pela argumentação da auxiliar, o diretor administrativo sentou-se, desenovelando-se dos fluídos mefíticos que lhe obliteravam o discernimento e asserenou-se.
O doutor Nilton Silva era homem judicioso. Dedicado à direcão da Casa, não se transformara num mercador da saúde. Possuía sempre um recurso para dispensar aos enfermos e descobria uma “vaga” para os casos de emergência. Aplicava a psicoterapia do sorriso e do bom-humor, fazendo-se amar por todos: funcionários, serviçais, colegas, enfermeiros...
Naquela manhã, no entanto, atritara no lar, experimentando singular aborrecimento, que aumentara com a visita do Coronel Santa-maria: sua primeira entrevista do dia.
Não era religioso, e isso exibia com orgulho. No entanto, erá cortês, gentil-homem.
Fora vítima do cerco das Entidades infelizes que se compraziam na cobrança à família do Coronel e se desforçavam em Ester.
Não era a primeira vez, como de fácil entendimento, estando ele em função relevante. O mesmo ocorria a outros colegas que nem sempre suportavam as constrições, sucumbindo, desastrosamente.
Olhou, então a moçoila frágil à sua frente, dependente do trabalho honrado, que conseguira fazer-se estimar em pouco tempo por quantos privavam da sua companhia. Como a desculpar-se, esclareceu:
— O Coronel proíbe-a de acercar-se da filha. Quer dar-me a sua versão do caso?
— Serei sucinta — esclareceu, Rosângela. — Afeiçoei-me a Ester desde que a vi. Aliás, dedico-me ao trabalho com carinho e sou partidária da teoria de que o amor muito consegue, quando falham outros recursos. Após observá-la, demoradamente, considerando as lições do Espiritismo, no capítulo das obsessões, resolvi, com permissão do doutor Gilvan de Albuquerque, o meu benfeitor, do senhor conhecido, solicitar uma entrevista ao senhor Coronel, dando-lhe minhas desvaliosas, porém honestas impressões sobre o problema psíquico da filha. Sequer não me ouviu, impedindo-me, de certo modo, concluir o desejo de sugerir-lhe a terapêutica espírita, simultaneamente à que vem sendo tentada neste respeitável Frenocômio.
— E qual seria? — Interrompeu-a, algo zombeteiro.
— Freqüência, dele e da senhora, a uma Sociedade Espírita, ajudando a filha com orações, e, a posteriori, com labores desobsessivos.
— E crê, você, realmente, em orações, em “labores desobsessivos”? — Rosnou, sorrindo, largamente.
— Sem dúvida. — Anuiu, imperturbável — Não apenas creio, como sou testemunha dos seus resultados surpreendentes.
— Junto a nevropatas — arengou, perspicaz, escarnecedor, —sugestionados, “místicos”!?
— Não somente com esses — refutou, gentil — muitos dos quais nada houveram conseguido em tratamentos longos, quão inócuos, porqüanto a sua enfermidade não procedia exclusivamente da psiquê, mas do Espírito, doente em si mesmo, quando não perturbado por outros Espíritos... Outros pacientes, desenganados, portadores de diagnose depressiva, esquizofrênica, recuperaram a lucidez, ante os meus olhos, por serem, realmente, obsessos em trânsito provacional.
— Minha jovem, não esqueça que sou ateu e psiquiatra —arremeteu, finalista. — Linda ilusão, essa, porém irracional, improvável. Como provar?
— Mui facilmente — contestou, confiante — freqüentando as boas Casas Espíritas..
— E as há de má qualidade? — interceptou-a.
- Sim — confirmou —, como os maus médicos, os incompetentes, os aventureiros, os maus servidores que estão em todo lugar; assim como as péssimas Organizações que triunfam em muita parte, porqüanto, onde predomina o homem, aí se fazem presentes as suas manifestações morais, poucas vezes salutares.
— Mas, se não creio em Deus e considero toda essa gente uns psicopatas perigosos?
— Não crer em Deus é mau para o Sr., uma vez que não aceita uma realidade, tal não lhe modifica a estrutura... Quanto à consideração final, se não me engano, até há pouco os partidários da “Escola fisiológica” agrediam rudemente os profitentes da “psicológica”... Não vão longe os dias em que Pasteur, Broca, Hughlings Jackson e outros eram tidos por loucos, inclusive o eminente Pinel... Sábios e cientistas de todas as épocas não se puderam libertar da alcunha, pois é muito mais fácil atacar o que se ignora do que estudá-lo, azucrinar os trabalhadores, do que fazer-lhes as tarefas, perseguir os idealistas, do que erguer-se do comodismo, a fim de ultrapassá-los... Não, o doutor, com sua licença, não está bem informado. As caóticas opiniões que lhe chegaram são defeituosas, resultado do preconceito e da má-vontade. Com a permissão do dr. Gilvan, estou autorizada a franquear-lhe aquele lar para observações...
— Muito obrigado, sou-lhe reconhecido. Estou satisfeito com o meu modo de encarar a vida e os fatos. Encerremos esta entrevista que se alonga. Por favor, reserve suas opiniões para si mesma, e não se aproxime da jovem Ester. Não é boa medida?
— Perfeitamente, doutor. Posso retirar-me?
— À vontade.
Rosângela afastou-se e o médico-diretor, surpreso com o que ouvira, mergulhou em graves meditações. Afinal, eram lógicas as palavras da jovem e pontificadas por muita vivacidade. Dava a impressão de possuir cultura.
As forças do Bem venciam o tentame e o rio da misericórdia divina conduzia o seu curso na direção da subjugada.
8
INTERVENCÃO SUPERIOR
“Que remédio, então, prescrever aos atacados de obsessões cruéis e de cruciantes males? Um meio há infalível: a fé, o apelo ao Céu. Se, na maior acerbidade dos vossos sofrimentos, entoardes hinos ao Senhor, o anjo, à vossa cabeceira, com a mão vos apontará o sinal da salvação e o lugar que um dia ocupareis”.
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 5º — Item 19.
Embora o retraimento forçado a que se impuseram o Coronel e sra. Santamaria, algumas vezes sentiam-se obrigados a quebrar tal insulamento, por impositivos superiores, de que não se podiam furtar. O sorriso não lhes aflorava aos lábios e, ressequidos interiormente, conservavam estranha quão injustificável mágoa contra a sociedade, a vida, a Divindade... Consideravam-se dilapidados nos bens da existência e, face à impossibilidade do desforço, com que muitos supõem aliviar-se, descarregando os instintos e paixões insanos, recolheram-se ao ostracismo, à mudez... Concomitantemente, os cônjuges distanciavam-se a pouco e pouco, um do outro, não mais encontrando estímulos na convivência doméstica. Certo é que se transferiam a responsabilidade pelo insucesso psíquico da filha, que supunham vítima inerme dos caprichosos genes e cromossomos portadores da inarmonia mental que nela eclodira pelo acaso infeliz.
Celebrava-se, então, expressiva comemoração da República, evocando-se, na “Semana da Pátria”, o Dia da Independência, no qual país se liberara do jugo ancestral, a fim de atender à sua destínação histórica. Dentre as celebrações em pauta, fora programado um banquete reunindo os heróis da última guerra, em requintado Clube Social. A recepção, em traje a rigor, objetivava, também, maior intercâmbio entre velhos amigos, muitos dos quais fruindo o justo prêmio da reforma, foram trasladados para a Reserva. Desse modo, fora impossível evadirem-se ao compromisso relevante.
No dia aprazado, o Coronel despertou mais indisposto do que habitualmente, nos meses derradeiros. Fora acometido reiteradas vezes durante a noite, por singular pesadelo, do qual despertava estafado, sôfrego, para novamente recair no mesmo dédalo onírico, em que se fazia personagem de articulações nefandas e crimes inumanos. Experimentava a sensação de mergulhar em cenário sombrio e macabro por alguns momentos, recobrando a custo a lucidez, para se repetir a infame sortida aos mesmos sítios e sofrer asfixia, náuseas, horror.
Eram lugares lôbregos... Via-se, agitado, caminhando sobre lajedos irregulares, enquanto maquinava sórdida vindita... Respirava ódio... A estranha personagem, que via e sabia-se ser ele próprio, envergava sotaina negra que lhe atrapalhava o passo, obrigando-o erguê-la, a fim de saltar os esgotos abertos, exalando putrefação nas ruelas mergulhadas em sombras... A agitação do sacerdote agitava-o... Repentinamente sentia-se em presídio, subterrâneo, úmido, com vaza fétida a escorrer, onde alguns homens e mulheres sofriam ritual nefando de torturas covardes, irracionais. Seus corpos alquebrados, alguns partidos com fraturas expostas, em feridas pútridas, tudo resultado da roda infame, blasfemavam... Algumas mulheres desvairadas altercavam, misturadas aos despojos orgânicos... À sua chegada recuavam em ríctus e esgares superlativos, enunciando seu nome entre exclamações injuriosas, detestáveis, enquanto se referiam, também, a outra pessoa, sua comparsa, de que se diziam vítimas... A visão tormentosa, mortificava-o... De inopino, não suportando o sonho macabro, logrou desalgemar-se do torpor que o vencia, levantando-se banhado por álgidos suores. Não retornou ao leito. Todo o dia foi-lhe desagradável. Não esquecia as cenas truanescas, os rostos, congestionados uns pelo ódio, patibulares outros, sem expres são, e mesmo após o almoço, tentando a sesta, não conseguiu o repouso que lhe fazia falta.
A noite cálida e estrelada parecia uma taça emborcada, cheia de brilhantes ornando a cidade colorida e luminosa.
A partir das vinte e uma horas os convidados deram entrada na sala de recepção do Clube, e os júbilos espocavam em todos os semblantes. Canapés e aperitivos entretinham os convidados, enquanto aguardavam a lauta refeição.
O Coronel Constâncio reviu amigos queridos, recordou emoções esquecidas, no entanto, vivas, e por momentos olvidou as amargas desditas que o exulceravam. Companheiros de armas, colegas da Escola, formavam um préstito de alegrias que o revigoravam.
De surpresa em surpresa, defrontou-se com antigo e dileto amigo, que servia a Pátria no Exterior e agora se encontrava de retorno. À efusão dos abraços e sorrisos, passaram às recordações, quando o Coronel Epaminondas Sobreira, indagou, interessado:
— Não voltei a ter notícias de Ester. Como passa, desde aquele dorido incidente?
— Sem esperanças! — Retrucou o antigo “cabo de guerra” empalidecendo e umedecendo os olhos. — Minha desventurada filha está louca, irrecuperável, sobrevivendo por milagre, pois, sequer, não teve, ainda, o lenitivo da morte...
— Perdoe-me! — Justificou-se o amigo. — Sei quanto deve dilacerar-lhe a alma... Eu lá estava naquela noite.
— São anos de lágrimas, suores, intranqüilidade...
Segurando o braço do interlocutor propôs, emocionado:
— Sentemo-nos no jardim, a distância... Estou muito emotivo desde aquele dia.
O Coronel Epaminondas sentiu o contato da mão gelada e o leve tremor que sacudia o amigo sofredor.
— Não falemos sobre isso. — Sugeriu, delicado. — Eu sei o quão lhe é mortificante.
— De fato — redarguiu o outro, — no entanto, eu, que tenho preferido o cárcere do silêncio durante todo esse tempo infinito transcorrido, sinto que me fará bem falar com você.
Em caramanchão próximo à piscina que refletia a noite coruscante, o sofrido genitor descerrou os painéis mais íntimos do coração duramente lanhado. Seus sonhos destroçados e suas esperanças desfeitas! E o amor à filha! Sabê-la transformada num animal irreconhecível e aprisionada em camisa-de-força, a fim de diminuir-lhe a fúria, oh! tudo isso constituía carga superlativa à sua devoção paterna.
À medida, porém, que exteriorizava a profunda agonia ao amigo, atento, que participava do drama, comovido, teve a impressão de que desoprimia o peito, a alma, como se desarticulasse anéis constritores que o despedaçavam por dentro.
— Você tem orado? — Inquiriu o ouvinte. — A oração produz milagres de renovação e paz, modificando paisagens sombrias e fortalecendo o homem.
— Não, não mais tenho orado. — Retorquiu, quase irado, traindo a revolta em que descambara. — Perdi a fé... A princípio, tentei iludir-me, rogando a Deus, aos santos, recorrendo à Igreja... Tudo inútil! Hoje sou uma nau sem leme, sem destino, à deriva.
Pranto copioso jorrava-lhe pela face fortemente assinalada pela fúria do desespero sem refrigério.
— Mas a função da prece — elucidou, sensibilizado, — não é somente a de requerimento, petição. Também lenitivo, renovação. Nem sempre traz o objetivo de atenuar a dor, mas compreendê-la, conseqüentemente, lenindo a alma. Além disso, é veículo, interfônio para a comunhão com Deus... Gostaria de conversar demorada-mente com você. Poderia receber-me ou visitar-me, quando?
— Infelizmente — explicou, titubeante, — não mais tenho um lar para oferecê-lo aos amigos... Quero dizer: o apartamento é o mesmo, porém, triste, sem vida... Não saímos, minha esposa e eu.
— Faço questão — interrompeu-o, com uma leve palmada no ombro — que você e Margarida venham jantar conosco, no próximo sábado. Informalmente, como dois amigos, dois irmãos. Mercedes, a quem comunicarei logo, agora, ficará exultante. Creio que sabe como nos são queridos, você e a esposa. Continuo residindo na mesma casa no Leblon. Estamos a sós. Os filhos já casados. Beatriz está em França com o esposo e Giórgio em São Paulo. Sou avô de dois anjos celestes, sabia? Combinado. Aguardá-los-emos, às 20 horas.
O Coronel Santamaria fitou o companheiro transformado em cireneu e não saberia explicar as emoções, a paz, a súbita satisfação que experimentava. Qual estivesse magnetizado, respondeu, maquinalmente, sorrindo:
— Combinado.
— Unamo-nos aos grupos que já devem procurar-nos.
— Sim, sim, esquecera-me; apressemo-nos.
O braço do Coronel Epaminondas, passando pelas costas do colega, apoiava-se ao ombro do outro lado. Eram dois irmãos que se reuniam na família da amizade superior.
Adentraram-se pelo salão festivo e perderam-se nas confabulações, brindes e algazarra que a todos empolgavam.
Sem poder-se explicar o sentimento de renovação que o surpreendera, o pai de Ester retornou ao lar como se estivesse revigorado. Ante as duras penas que vivia, também o organismo passara a dar mostras de cansaço, repontando, já, os sinais do desgaste que o fazia preocupado.. Conversou com a esposa, narrando-lhe o bom estado de espírito do colega e quanto lhe fora oportuna a conversação, mais valiosa do que o banquete, em si mesmo. Cientificada, a senhora, de pronto concordou, nascendo-lhe, também, agradável pressentimento em torno do futuro reencontro. Ela, igualmente, dialogara com dona Mercedes, que se interessara pelo destino da sua filha. A simpática senhora, apesar da balbúrdia, na sala, manteve-se atenta, carinhosamente interessada e repetia: — “Mas, nem tudo está perdido. Ë uma pena, tudo isto!” Dizia-o com sentimento, como a lamentar a impossibilidade de fazer alguma coisa que considerava importante, porém, inconveniente. Prometera-lhe uma visita para colóquio mais amplo e cuidadoso. Prometia examinar o problema com profundidade...
Foi, portanto, em clima de esperanças felizes que os Santa-marias na noite acordada rumaram, confiantes, na direção da residência dos Sobreiras.
A vivenda suntuosa demorava-se cercada de árvores, recuada da rua. Em dois pisos, era agradável na arquitetura e na decoração.
Recebidos com carinho, foram introduzidos, incontinente, na sala ampla e confortável.
— Desejo ter o prazer de apresentar-lhe o amigo Joel — disse o anfitrião. — Ë também militar, estando no posto de Tenente Coronel. Você o conhece...
— Sim, — concordou o apresentado, — tive a honra de servir com o Coronel, na Itália...
— Lembro-me de alguma forma — assentiu.
Não pôde, porém, ocultar o enfado que o surpreendeu, face ao imprevisto constrangimento que aquela comparência colocaria na conversação que esperava manter.
— Convidei-o especialmente para esta noite. — Aduziu o colega.
— Somos amigos e, como eu aguardasse você com acendrado interesse, pensei no bem que a presença do nosso Tenente-Coronel poderia dispensar-nos a todos.
— Sim, sem dúvida. — Quase resmungou.
O semblante fez-se-lhe sombrio, ante o receio de que o tema sobre a filha e sua enfermidade passasse à participação de estranhos. Esforçou-se para manter-se delicado e a palestra se generalizou, sem maior importância.
A refeição simples e saborosa transcorreu agradável, O Tenente-Coronel era viúvo há poucos meses, embora mantivesse o semblante jovial, desanuviado. Jovem de 40 anos, era de compleição bem proporcionada, destacando-se nele as marcas do atleta, possuidor de olhos brilhantes que fulguravam na face dando-lhe máscula beleza. Tran qüilo, sua voz agradava, sem afetação e pelo comedimento de que se fazia possuidor.
Concluído o jantar, a senhora Mercedes convidou os visitantes à varanda confortável onde seria servido o café.
Descontraídos, a conversa girou por assuntos de somenos importância. Soprava uma aragem fresca, levemente perfumada provinda do jardim, adentrando-se em ondas contínuas, suaves.
— Alguma nova sobre Ester? — Indagou o Coronel Sobreira. —Desde o nosso reencontro tenho-a na mente e na oração. A falta de convivência entre nós, por circunstâncias superiores, não me facultou informá-lo de que hoje, ou melhor, há já alguns anos sou homem de fé. As experiências concederam-me ampla visão do mundo, além da esfera física, levando-me a entesourar valores extraordinários com que se harmonizou o meu ser, antes em duradoura agonia. À sua semelhança conheci de perto a aduana que descamba ná loucura e não fosse a Misericórdia Divina teria sucumbido. Mercedes e eu provamos o pão ázimo do sofrimento, preparado com as lágrimas salgadas do desconforto...
Fez uma pausa, ensejando-se melhor coordenação de idéias e, simultaneamente, observou as reações dos ouvintes, O matrimônio Santamaria chorava discretamente. A senhora Mercedes, gentil, acarinhava a amiga, vergada ao peso do martírio.
De imediato prosseguiu o narrador:
— Vocês ignoram que o nosso filho Giórgio, há quatro anos atrás foi vítima de sórdida obsessão, tendo sido, face à minha ignorância, então, internado para penoso tratamento... Inesperadamente, ele que era jovial e transudava alegria de viver, tornou-se arredio, amargurado, sombrio. Tentamos arrancá-lo do mutismo a que se entregara, usando todas as possibilidades, sem qualquer resultado. Noivo, abandonou Lucília, sem explicações, e, freqüentando o período da conclusão do curso de Direito, deixou os estudos. Parecia temer o contato, a presença de outras pessoas... Retraiu-se a tal ponto que os necessários tratos de alimentação e higiene passaram a ser negligenciados para nosso desgosto superlativo...
“Foi nesse comemos que o dr. Ernesto Vialle, seu psiquiatra, sugeriu-nos interná-lo, a fim de que fosse submetido a rigorosa assistência especializada.
“Vocês imaginam a nossa indescritível desolação. Submetemo-nos à adaga do sofrimento que nos decepava esperanças e sorrisos. Estávamos a sucumbir, quando o nosso Joel visitou-nos, e face ao nosso abatimento, informado das razões, prontificou-se ajudar-nos... Ouvindo-o, ante as alvíssaras que surgiam, renovamo-nos, dando início a nova vida, de que resultou o retorno da alegria a esta casa, transformada, então, em túmulo que sepultava angústias acerbas.. Por isso, convidamo-lo a estar conosco nesta noite, quando os recebemos com imenso carinho: Margarida e você.”
Tinha os olhos brilhantes pelas lágrimas.
— É psiquiatra, o nosso Tenente-Coronel? — interrogou o genitor de Ester, interessado.
— Não, não é psiquiatra — elucidou o anfitrião. — É um homem dotado de “sexto sentido”, de mediunidade.
Talvez pressentindo o rumo do esclarecimento, interpôs-se o Coronel Santamaria:
— Desculpe-me, no entanto, a minha ignorância é tal sobre essas questões, que me reservo a descrença, a entranhada antipatia a essas coisas..
- Ouça-me sem prevenção — interrompeu-o o amigo jovialmente. — Não se trata de “coisas”. A mediunidade é faculdade para-normal relevante, objeto de estudos nos Centros de maior cultura, atualmente, no globo. Investir contra, por preconceito, é arrematada idiotia, disfarçada em presunção.
“Vocês nos conhecem demasiado para terem uma opinião sobre o nosso caráter moral. Homem austero que sempre fui, indiferente e frio às manifestações místicas de qualquer procedência, temperado nos mesmos fornos em que você enrijou as fibras da dignidade, não me foi fácil mudar conceitos, opiniões, estruturas de fé. Religioso por hábito social, não possuía religiosidade de fato que me confortasse interiormente. Crer por acomodação, transformara-se em descrer por convicção.”
— Mas, — interferiu, contrafeito, — mediunidade não é algo que se vincula à necromancia, Espiritismo, candomblé?.
- Sem dúvida, — respondeu, sem perder a delicadeza — como a inteligência que está presente nos ideais libertadores, também se manifesta nos lúridos conciliábulos dos campos de concentração.
A mediunidade é, digamos, uma via de acesso. Por ela transitam os que viveram na Terra consoante as concessões de quem a governa.
— Todavia — voltou a interromper — os “que viveram na Terra”, estão mortos, aniquilados... E essas práticas de Espiritismo são-me detestáveis.
— Equívoco de sua parte, meu amigo. Também eu assim pensava. A realidade é bem outra.
— Por favor, Constâncio — interveio a esposa. — Ouçamos sem prevenção. Você crê que Epaminondas se permitiria crença ou atitude que lhe desabonasse a dignidade?
A pergunta oportuna, soou como uma reprimenda.
O ar saturava-se de vibrações superiores, magnetizado por Espíritos Felizes que se faziam inspiradores e condutores daquele encontro relevante.
Agradecendo a referência nobre que lhe fizera a dama, o Coronel Epaminondas justificou:
- Bem sei que tudo isto lhes parece estranho. Não poderia ser de outra forma. Conosco ocorreu o mesmo. Somos seres atrasados, fundamente marcados pela vaidade a que nos aferramos, supervalorizando-nos e, em conseqüência, tombando vítimados pela própria imprevidência.
“O Espiritismo, que a intolerância dos clérigos e cientistas do passado, muito ciosos da própria prosápia tachou de “doutrina satânica” e “fábrica de loucos”, respectivamente, ultrapassou a previsão maldosa dos seus detratores. Convenhamos que muitos homens ilustres, como religiosos honestos e pesquisadores conscientes estudaram-no e investigaram-no experimentalmente, à saciedade, concluindo pela legitimidade dos fatos observados e pela excelência dos seus postulados. Todos quantos o combatem jamais o estudaram ou conheceram suas múltiplas facetas, quer no campo científico, filosófico ou religioso. Guerreiam-no pela empáfia de que se revestem e pela preguiça de se atualizarem. São os tradicionais inimigos do progresso, das idéias novas... Fazem-no como você hoje e eu ontem, mal informados, que nos fechamos e abjuramos o que desconhecemos, apertados na constrição das vaidades feridas... Todavia, esta é uma discussão ético-filosófica de largo porte, que não se coaduna com a premência de tempo, do momento. Fornecer-lhes-ei literatura especializada sobre o assunto, especialmente a que responde pelas suas bases doutrinárias: Kardec, Denis, Bozzanno...”
Sorriu, descarregando a ligeira tensão que sobrepairava no ambiente.
- O importante — deu curso às elucidações — é que, através da mediunidade do nosso caro colega de farda, o Giórgio recobrou a saúde.
— E não seria o tratamento — solícitou esclarecimentos o Coronel Santamaria — a que ele estava sendo submetido, a causa da recuperação da sua saúde?
— Sim, não poderia sê-lo? — Também indagou dona Margarida.
— Poderia ter sido — explicou. — A princípio, quedei-me em dúvida, no primeiro instante... Nossa família jamais se envolvera antes com qualquer prática mediúnica, qual ocorre com vocês, todavia, Giórgio e Ester... o que atesta que não é o Espiritismo a causa da loucura, antes...
— Não digo que seja a causa — argumentou — mas uma causa.
— Bem, como outro fator qualquer de ordem social, emocional, comunitária, religiosa, além daqueles de procedência orgânica... Porém, como as causas estão presentes em quase todos os cometimentos, na condição de fatores predisponentes uns, preponderantes outros, ninguém se atreve a acusá-los, como fazem em relação ao Espiritismo, não é mesmo?
— Tem razão...
— O nosso afeiçoado Joel — prosseguiu — em contato com os Espíritos que o assistem e amparam, no ministério da caridade a que se afervora, dedicado, soube que a loucura do Giórgio tinha procedência numa obsessão de natureza espiritual, graças a razões pregressas do seu e dos nossos Espíritos... Explicou-nos o mecanismo da justiça divina, através da reencarnação, de forma lógica e irrefutável, propondo-se levar-nos a participar de algumas sessões mediúnicas especializadas, onde a venda nos caiu dos olhos, ensejando-nos sublime “estrada de Damasco”. Desde o primeiro tentame, a melhora do filho fez-se imediata... Passamos a ser espiritualmente informados do quanto com ele ocorria, até o momento do encontro com o seu perseguidor, que nos sensibilizou mediante a narração dos seus padecimentos. Não foi fácil. Nada é fácil. Todo e qualquer empreendimento é sempre complexo, mesmo quando conhecido pela sua simplicidade, particularmente aquele que diz respeito à vida, à alma reencarnada...
Na interrupção que se fizera natural, podia-se sentir o concentrado interesse dos convidados, ouvindo religiosa, comovidamente. Mãos e mentes vigorosas aplicavam passes nos circunstantes, dilatando o entendimento, a percepção dos neófitos na palpitante questão, libertando-os, também, dos fluídos e miasmas perniciosos que os envenenavam, turbando-lhes o discernimento.
— Duas, três semanas transcorridas — ratificou, — nosso filho estava curado, voltava ao lar, tranqüilo e diligente quanto antes, assim prosseguindo até hoje.
“Ora, desejávamos a sua e a permissão da Margarida para examinarmos mediunicamente o problema de Ester. Depois de amanhã é dia de sessão na Sociedade que freqüentamos e a oportunidade parece-nos lisonjeira. Em processos que tais, o tempo é muito importante, a fim de evitar-se que surjam difíceis condicionamentos no paciente, molestas e complicadas lesões... Dar-lhes-emos notícias detalhadas e concertaremos atitudes, programas.”
— Concordo, de minha parte, — apressou-se a senhora —sem pestanejar.
— Até há pouco — acrescentou o Coronel Santamaria — preteria-a louca a metida com essas... Diante da sua argumentação, da confiança que nos identifica, não há como discordar, embora o estranho que tudo isso me parece...
— É perfeitamente lógico e você não poderia ter outra reação.
O Tenente-Coronel tudo escutava em silêncio, com modéstia surpreendente.
— O senhor está viúvo há pouco — indagou-lhe o visitante —e parece-me tranqüilo, confortado. A morte é-me tão desagradável para não dizer cruel, O senhor, sendo jovem, não se rebelou?
— Não. — Redargüiu o médium com simplicidade. — Minha Isabel, como eu, militava nas hostes espíritas... Sinto-lhe a falta física no lar, não a ausência total, porqüanto, estando viva, comunicamo-nos vez que outra. Inteirado e consciente da imortalidade, preparo-me para o encontro definitivo, mais tarde. Como não há morte, a problemática se constitui apenas de tempo e fé. O tempo reunir-nos-á e a fé ajudar-nos-á vencê-lo.
— Que bela Doutrina! — Exclamou dona Margarida. — Como se pode ter um conceito desse, ante o terrível flagelo da morte?
- Pela certeza — disse a senhora Mercedes — incondicional da sobrevivência. Nós que somos mães, não conseguimos sustentar a esperança quando falecem todos os recursos, graças ao amor? O mesmo amor que não desaparece nem se desarticula, ante a injunção da orgânica, é a fonte geradora dessa tranqüilidade adquirida mediante os fatos do intercâmbio espiritual de todo dia.
- Gostaríamos, já que estamos concordes — propôs o Coronel Sobreira, — que orássemos, realizando a primeira rogativa em prol de Ester, mediante a terapêutica espírita.
Como todos aquiescessem, o anfitrião desatou superior emotividade e orou de forma surpreendente, em perfeita sintonia com as Entidades presentes.
Concluída a prece, um silêncio se abateu sobre o grupo e Joel, com o semblante visivelmente transfigurado, transmitiu significativa mensagem de conforto e esperança, ante a natural arguta curiosidade dos Santamarias.
A oportunidade fora excepcional.
Às despedidas, reconhecidos, os pais de Ester com raciocínios variados, partiram, aguardando o futuro, enquanto a escumilha da noite piscava estrelas, no alto, a distância...
9
SOCORROS OPORTUNOS
“Vós, espíritas, podeis sê-lo (caridosos) na vossa maneira de proceder para com os que não pensam como vós, induzindo os menos esclarecidos a crer, mas sem os chocar, sem investir contra as suas convicções e, sim, atraindo-os amavelmente às nossas reuniões, onde poderão ouvir-nos e onde saberemos descobrir nos seus corações a brecha para neles penetrarmos”.
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 13º — Item 14.
Desde o momento em que fora admoestada pelo diretor-administrativo do Frenocômio, Rosângela mais certificou-se da interf erência negativa e pertinaz dos irmãos infelizes, perseguidores da jovem Ester, embora não ignorasse tal expediente de que se utilizam as Trevas.
Com essa medida impostora, objetivam descoroçoar e afastar os a quem consideram obstáculos à atra perseguição em que se comprazem.
Aconselhando-se com o dr. Gilvan, seu benfeitor, ficou deliberado que, a benefício de todos, seria evitada uma maior aproximação com a paciente. Todavia, recursos hábeis para ajudar não faltariam nunca, uma vez que podia contar com a mais eficiente interferência benéfica: a divina, na qual confiava integralmente.
Passou, então, a envolver a obsessa em vibrações salutares de repouso, otimismo e renovação que a atingiam como ondas entorpe centes e balsâmicas. As orações do grupo, que ora lhe eram dirigidas, envolviam-na, de certo modo conseguindo neutralizar parte da interferência mais perniciosa da mente dominadora, que, através do perispírito, do qual subtraía forças para o nefando mister, agora se revitalizava pelo processo da imantação decorrente das energias superiores que a alcançavam.
Nós próprio, vinculado ao grupo de trabalhadores interessados no ministério da desobsessão, passamos a visitar a enferma, sob a carinhosa tutoria do abnegado médico espiritual Bezerra de Menezes, o querido mentor da Associação a que se vinculava a jovem e devotada Rosângela.
O encontro verificado entre os Coronéis Santamaria e Sobreira fora concertado num “acaso” carinhosamente trabalhado, a fim de se estabelecerem as primeiras medidas de socorro mais eficiente e direto, do que deveriam resultar os efeitos do empreendimento espiritual.
Por uma aparente coincidência, a Sociedade a que se referira o militar cristão era a mesma Casa de amor, onde a enfermeira-auxiliar e os seus benfeitores ofertavam a cooperação. Amigos e servidores ao lado do médium Joel, por caminhos diversos, fizeram-se instrumentos valiosos, manipulados pelos Mensageiros Espirituais, a fim de conduzirem o medicamento do conforto e da esperança a Ester e família, em nome de Jesus, sem se saberem empenhados, reciprocamente, no mesmo mister.
A Sociedade Espírita “Francisco de Assis”, que freqüentavam, situada em aprazível bairro carioca, plantava as suas bases na Codificação Kardequiana, e, fiel aos postulados cristãos e espíritas, transformara-se em eficiente Hospital-Escola-Santuário Espiritual onde abnegados Mensageiros se congregavam para o sagrado labor da Caridade.
As diversas equipes que ali ativavam e mantinham a flama do ideal espírita-cristão esforçavam-se por colimar a mais elevada qualidade de ação beneficente, entregando-se aos misteres variados que se desdobravam por toda semana, sem qualquer ociosidade ou fastio. O trabalho constituía-lhes rota para todos e as discussões infrutíferas como os comentários infelizes não encontravam solo propício para então medrar.
Embora os ditames do amor que regia todas as atividades, a energia dinâmica e a consciência do dever caracterizavam as responsabilidades a todos pertinentes, que não se permitiam a insensatez da impontualidade, das justificações inoportunas, das apelações vulgares à tolerância falsa, ao desculpismo.
Em razão disso, os resultados se evidenciavam positivos e prestos, ensejando bênçãos de todo porte aos que, aflitos, de ambos os lados da vida, ali aportavam sequiosos de luz, de pão e de paz.
Os serviços, portanto, variados, se desdobravam felizes, em criteriosos horários nos quais a imputação e a segurança espiritual identificavam os operosos seareiros.
Considerando, todavia, o ministério desobsessivo, os cuidados eram redobrados, desde o selecionamento dos membros que constituíam o grupo, até aos cuidados e deveres para com o corpo, a mente, a alma, em caráter normal, e, em especial, nos dias aprazados para as elevadas incursões ao Mundo Espiritual, através da contribuição mediúnica.
Dois dias após a entrevista no lar da família Sobreira, os membros do trabalho reuniram-se às 19:30 horas, como de hábito, para o serviço superior do intercâmbio socorrista. A primeira meia hora se fazia dedicada a leituras edificantes, comentários evangélicos, conotações e apontamentos doutrinários, enquanto os participantes encarnados na psicosfera da Casa refaziam-se do aturdimento e cansaço das horas passadas, nas atividades para a sobrevivência física.
O Coronel Sobreira pensava em apresentar o problema psíquico de Ester ao antigo “médico dos pobres”, quando o Instrutor amorável utilizasse a psicofonia de Joel, solicitando orientação e o seu concurso benéfico.
Aquele dia reservara-se à meditação e à prece, procurando uma sintonia harmoniosa com o Plano Espiritual, como, aliás, lhe constituía, um hábito nos últimos tempos, desde que retornara do Exterior.
Face à desencarnação do anterior dirigente dos trabalhos daquela natureza, fora invitado pelo sábio Mentor, entregando-se, desde esse instante, com devotamento à tarefa espontaneamente aceita. Desempenhava-a com total espírito de confiança e fervor, experimentando entranhada felicidade na sua execução.
Os trabalhos transcorreram em clima abençoado, tendo atendido a larga faixa de sofredores do além-túmulo, não apenas pela psicofonia quanto pela assistência simultânea do nosso lado àqueles que participavam do tratamento, sem possibilidade de um contato mais direto com os do plano físico.
Em todo serviço de desobsessão, enquanto uma Entidade se faz esclarecer, outras se lhe vinculam co-participando das informações e instruções que são ministradas, colhendo-se significativos, valiosos resultados.
Em concomitância, os encarnados sob assistência especial, dos quais dois se faziam presentes sob os acúleos da obsessão simples, em fase inicial, recolheram particulares benefícios que os armavam para a libertação da parasitose espiritual e, logo após, despertamento de ambos para os compromissos íntimos e recíprocos de reajustamento de que necessitavam.
Ao término da sessão, no período reservado às instruções especiais, o “caso” Ester foi apresentado ao Diretor Espiritual, que informou conhecer, já, a trama perturbadora, elucidando tratar-se de subjugação infeliz, que poderia, mercê da colaboração de todos e particularmente dos genitores, ser removida. O resultado final pertencia sempre ao Senhor.
Considerou as implicações pretéritas da família e da própria enferma, ressaltando, porém, as dores maternas, pungentes e suas inúmeras, contínuas súplicas ao Pai, que ora respondia, através da solidariedade de todos, conforme a recomendação evangélica sobre a necessidade da união para a prece e para o socorro, na qual o Divino Mestre sempre se faz presente.
Propôs que os genitores de Ester passassem a freqüentar as reuniões, enfermos também que estavam, necessitando de imediato socorro, e solícitou ao irmão Sobreira concedesse mais amplos esclarecimentos aos consortes, preparando-os de algum modo para as operações intercessórias do futuro.
Concluindo, asseverou que ele próprio iria dispensar assistência à jovem, ao lado de outros trabalhadores, atendendo, assim, à solicitação de outros assistentes empenhados no concurso da caridade.
A reunião foi encerrada sob auspiciosa ventura, tanto para a família Sobreira quanto para Rosângela e os Albuquerques.
A bondade divina que nunca falta alcançava mais uma vez “os filhos do Calvário” na Terra.
10
NA CASA DE SAÚDE
Pergunta: 264. “Que é o que dirige o Espírito na escolha das provas que queira sofrer?”
Resposta: “Ele escolhe, de acordo com a natureza de suas faltas, as que o levem à expiação destas e a progredir mais depressa. Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem; outros preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar, pelas paixões inferiores que uma e outro desenvolvem; muitos, finalmente, se decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 6º.
Após a reunião de assistência aos obsidiados, quando as operações de socorro aos perseguidores atendidos chegavam a termo, graças à remoção de alguns a Hospitais especializados, em Colônias do nosso plano, enfermeiros e assistentes prestimosos prosseguiram dispensando necessária cooperação no templo Espírita onde ficariam em regime de hospedagem diversos outros sofredores carecentes de diretriz e medicação próprias.
O venerável Bezerra de Menezes convocou-nos, então, destacando os irmaos Ângelo e Melquiades, abnegados trabalhadores desencarnados, a fim de visitarmos Ester, como passo inicial para o labor que se desenvolveria de imediato, objetivando seu oportuno restabelecimento.
Chegando ao pavilhão em que a jovem se encontrava, não pude sopitar o choque e a curiosidade, face à multidão que se agitava naquele Frenocômio. Desencarnados às centenas, com os fácieis mui variados, aglutinavam-se em magotes de doentes, totalmente desequilibrados, em manifesta ignorância do estado espiritual em que se demoravam; obsessores de carantonha cruel demonstravam no rosto conturbado os ódios que os desequilibravam; perturbadores zombeteiros, assinalados pelos vícios em que se locupletavam, com máscara de cinismo indescritível; grupos de vampirizadores misturavam-se a dementes encarnados, parcialmente liberados pelo sono, em lastimável estado; verdugos impiedosos, conhecedores das técnicas obsessivas, arrastavam suas vítimas em incríveis padecimentos, que desfaleciam de pavor, logo despertando para defrontar os adversários frios; entidades hebetadas, simiescas umas, deformadas outras, em promiscuidade deplorável... Desencarnados ociosos, indiferentes, enchiam os pátios, os corredores como freqüentadores de espetáculos circenses, totalmente desconhecedores do estado em que se movimentavam, produzindo ambiente miasmático, que aspiravam, intoxicando-se cada vez mais e envenenando a psicosfera terrível já reinante.
Um pandemônio ensurdecedor e aparvalhante sucedia-se em cenas que variavam da bestialidade mais vil à impiedade mais selvagemente elaborada, em cujos cenários muitos encarnados sofriam indefiníveis vilipêndios e atentados.
Dava-nos a impressão de que nenhuma compaixão ou sentimento de humanidade ali encontrava guarida. Os espetáculos da hediondez espiritual superavam tudo que a imaginação humana pode conceber. Aliás, ali se encontravam alguns dos campeões da insensatez e da perversidade, dos ases da mentira e da traição, dos hábeis dissimuladores que, não obstante a ausência das roupagens orgânicas, experimentavam as paixões mais açuladas que os governavam em desmandos inimagináveis.
Recebêramos antes recomendações adequadas quanto aos impositivos da oração e do equilíbrio, a fim de transitarmos em faixa de diferente vibração, passando despercebidos da imensa mole de atormentados e atormentadores.
Percebi, então, que outros grupos de socorro freqüentavam aquele dédalo da sordidez, movimentando-se, distintos, com semblantes circunspectos e atenciosos. Saudavam-se, fraternalmente, discretamente, considerando-se as circunstâncias e finalidades dos misteres a que se entregavam. Constituíam a Providência Divina respondendo aos apelos de muitas orações, socorrendo necessidades justas, amparando os que ansiavam pela terapêutica do amor, já que não faltam nunca as disponibilidades do Senhor, sempre colocadas ao alcance dos que O buscam.
O quarto em que Ester se alojava, verdadeira cela presidiária, produziu-me incontinente mal-estar. Empestada por vibrações perniciosas, densas, escuras, pareciam fluído condensado, oleoso, que causava insuportável indisposição psíquica, generalizando-se em sensação de náuseas contínuas.
O dirigente da equipe, profundo conhecedor daqueles sítios, sugeriu-nos mais intenso controle da emotividade e imperiosa disposição para a caridade, com que superaríamos as incômodas impressões, sintonizando em faixa mais sutil, de que nos alimentaríamos seguramente.
A jovem subjugada em espírito jazia ao lado do corpo, em quase total inconsciência, sob os efeitos de sedativo pernicioso e forte. Junto a ela, em processo de imantação perispiritual, vigiava o algoz desencarnado.
Nos três outros catres infectos que infestavam o exíguo A parlamento, a tresandar odores insuportáveis, se encontravam duas jovens e uma senhora de meia-idade, estigmatizadas por diversas alienações que as diferenciavam entre si.
Quase todas se encontravam parcialmente fora do corpo, inconscientes, exceção feita à dama perturbada, que altercava com um perseguidor imaginário, fruto de longo processo ideoplástico.
Outras Entidades desequilibradas se imiscuíam nas sombras e na imundície do quarto abafado, algumas das quais, entorpecidas, pareciam hibernadas em longo processo sonoterápico, mantendo-se alimentadas pelas emanações mefíticas abundantes dos pacientes, suas presas inermes.
Com a autoridade e sabedoria que lhe são peculiares, o “Apóstolo da caridade” exorou a proteção divina em comovedora oração, quando do seu tórax, a pouco e pouco iluminado que se transformou num sol engastado no peito, surgiram fulgurações carregadas de superior energia incidindo sobre os Espíritos levianos, produzindo-lhes choques, que os despertavam, expulsando-os quase todos e fazendo, por fim, que se modificasse a paisagem fluídica reinante.
Ao terminar, recomendou que os Irmãos Ângelo e Melquíades socorressem as duas jovens e apontou-nos a senhora atribulada para assistência de minha parte, recomendando condensasse as forças fluídicas até lograr ser por ela percebido.
Vendo-me, repentinamente, a dama exclamou, emocionada:
— Mensageiro Divino, salvai-me deste cruel perseguidor! Sou criminosa, reconheço, todavia, venho pagando a longo prazo o compromisso infeliz da leviandade. Socorrei-me, por Deus!
As lágrimas abundantes, a face dorida e a voz amargurada infundiam compaixão.
Teleguiado pela poderosa mente do Diretor Espiritual, acerquei-me e roguei-lhe descansasse em sono reparador de que tinha imediata necessidade.
Aplicando-lhe conveniente recurso fluídico, sem maior resistência descontraíram-se as forças psíquicas concentradas pelo pavor e ela adormeceu.
Auscultando as exteriorizações mentais da Senhora atormentada, em espírito, ora ressonando, o abnegado Instrutor esclareceu:
— Esta nossa irmã está catalogada como esquizofrênica irreversível, demorando-se na fase da hebefrenia de largo porte, em diagnose apropriada. Fixadas as matrizes da distonia mental, nas sedes perispirituais, o mecanismo cerebral correspondente à área da razão e da personalidade, apresenta sombras características que preexistem desde a vida anterior, quando supunha poder burlar as Leis, entregando-se aos desvarios e alucinações complexos. Em ver dade, manteve-se inatacável no conceito do mundo, entretanto, não conseguiu fugir a si mesma, às lembranças da consciência em despertamento, lesando os centros correspondentes da lucidez e do equilíbrio, que produziram nas sedes sutis plasmadoras do “campo da forma” os desajustes que ora a lancinam.
Fazendo significativa pausa, na qual aplicou passes cuidadosos, longitudinais, a iniciar-se do centro coronário, qual se o desatrelasse de forças densas, em baixo teor magnético, percebemos, a pouco e pouco, que o complexo núcleo se clarificava, irrigando com opalina tonalidade o centro cerebral, igualmente envolto em sombrias cargas fluídicas, onde imagens vigorosas e fixas nas telas da memória se diluíam, sem que, contudo, se desfizessem totalmente.
A energia vitalizadora que era infundida na enferma passou a percorrer-lhe os vários centros de fixação físico-espiritual. E como recebendo ignota carga magnética, revigorante e anestésica simultaneamente, esta proporcionava à organização física melhor funcionamento com mais eficaz intercâmbio metabólico, de que se beneficiava o cérebro todo transformado, agora, em um corpo multicolorido, no qual miríades de grânulos infinitesimais ou fascículos luminosos se movimentavam, penetrando neurônios e os ligando, quais impulsos de eletricidade especial enviando ordens restauradoras e mantenedoras da harmonia vibratória indispensável ao tônus do reequilíbrio.
Percebemos que a respiração da doente se fez mais tranqüila, os músculos tensos por todo o corpo relaxaram, com admiráveis resultados no aparelho digestivo, particularmente desgovernado.
Concluída a operação complexa e tecnicamente realizada, o irmão Bezerra de Menezes elucidou-nos:
- Toda enfermidade, resguardada em qualquer nomenclatura, sempre resulta das conquistas negativas do passado espiritual de cada um. Estando o “campo estruturador”, conforme nominam os modernos pesquisadores parapsicológicos ao perispírito, sob o bombardeio de energias deletérias, é óbvio que as idéias, plasmando as futuras formas para o Espírito, criam as condições para que se manifestem as doenças...
“Tomemos por exemplo nossa irmã Eudóxia, no momento, sob nossa observação.”
“Amanhã apresentará sinais de significativa melhora na saúde, embora as causas preponderantes da sua alienação nela mesma se encontrem. Numa forma de autocídio indireto, através do qual pretende eximir-se à responsabilidade, auto-suplicia-se, mergulhando no desconcerto da loucura.”
Observando-a mais detidamente, continuou:
— Na metade do século passado, encontramo-la senhora de terras, em próspera cidade do Império, no solo fluminense... Consorciada com homem probo, de sentimentos elevados, caracterizava-se pelo temperamento irascível, insuportável. Cansado da esposa rebelde e malsinante, o companheiro propôs-lhe separação honrosa... Acreditando-se, porém, substituída — e de imediato transferiu para humilde serva a suposta preferência do marido — silenciou, planejando, então, hediondo homicídio que culminou calma, calculadamente, com segurança. Envenenou o esposo indefeso nas suas mãos, que de nada suspeitava e, passado algum tempo, repetiu a façanha com a servidora que tudo ignorava...
“Dama altiva e destacada, seus dois crimes não foram sequer suspeitados, ninguém tomou deles conhecimento. Ela, porém, os sabia... A punição maior para o culpado é a presença da culpa, insculpida na consciência. A princípio, quando as forças orgânicas estão em plenitude, ela dorme.
À medida que se afrouxam os liames das potências da vida vegetativa, ressumam as evocações e se transformam em complexo culposo, monoideísmo infeliz que mais grava o delito e agrava a responsabilidade...
“Surpreendida pela desencarnação, transferiu para o Além os dramas ocultos. Embora perdoada pelo esposo-vítima, que se encontrava em melhor condição espiritual do que ela, tornou-se perseguida pela serva, que a seviciou demoradamente em região de compacta sombra espiritual.
“Trazida à reencarnação, os fortes açoites do remorso, as impressões vigorosas da expiação junto à vítima, a intranqüilidade lesaram os centros da consciência, do que resultou a enfermidade que ora padece...
Depois de breve silêncio, concluiu:
— Os núcleos desarticulados no perispírito produziram as condições físicas do encéfalo, que se desconectaram quando completou trinta anos, idade em que se deixara assediar pela fúria do desequilíbrio, embora as distonias graves que a perturbavam desde a adolescência.
“Apesar de a maior incidência de hebefrenia ocorrer na puberdade, conforme foi analisada e descrita em 1871, sendo posterior-mente incluída por Kraepelin como uma das “demências precoces”, esta surge como se agrava em qualquer idade... (*)
“A enfermidade que afeta a área da personalidade, produzindo deteriorização, gera estados antípodas de comportamento em calma e fúria, modificação do humor, jocosidade, com tendências, às vezes, para o crime, é o resultado natural do abuso e desrespeito ao amor,
à vida, ao próximo.
“Purgará, ainda um pouco, até que a desencarnação lhe tome de volta as vestes, a fim de recomeçar noutra condição o que espontânea e levianamente adiou...
Estávamos edificados e surpresos.
Constatávamos ali a procedência da Divina Justiça e poderíamos distinguir que, na etiologia das enfermidades mentais, muitos fatores estudados pela moderna Psiquiatria são legítimos, faltando a essa nobre Ciência um maior contato com as “questões do Espírito”, do que hauriria suficiente luz para incluir a obsessão como uma das causas das alienações mentais, penetrando nas realidades da Alma encarnada e melhor desintrincando os variados processos que sempre se originam no ser espiritual, ao longo da sua jornada evolutiva.
(*) Quem primeiro definiu a Hebelrenia foi Kahlbaum (KarI Ludwig), em 1863, como sendo uma alienação mental que surge precocemente na puberdade e se caracteriza por uma cessação das aquisições intelectuais, conduzindo o paciente para a demência total, incurável. - Nota do Autor espiritual.
11
EPILEPSIA
Pergunta: 266. “Não parece natural que se escolham as provas menos dolorosas?”
Resposta: “Pode parecer-vos a vós; ao Espírito, não. Logo que este se desliga da matéria, cessa toda ilusão e outra passa a ser a sua maneira de pensar.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 6º.
Concluída a assistência à senhora Eudóxia, o amoroso Mentor convidou-nos a observar uma jovem que dormia desassossegadamente. De quando em quando era sacudida por tremores violentos, ao tempo em que exsudava abundantemente. Não ultrapassara os vinte anos, embora o desgaste orgânico que a consumia.
Observamos que, a despeito do ressonar angustiado, não se encontrava exteriorizada, antes parecia agitada em espírito, com visíveis sinais de perturbação psíquica.
De repente pareceu despertar e, assustada, com os olhos desmesuradamente abertos, pôs-se a gritar como se possuída por sevícias rigorosas. Incontinente, no estado de alucinação, ergueu-se contorcendo-se, tremendo como varas verdes e tombou, convulsionada. O rosto experimentou forte congestão, enquanto os membros mantiveram-se rígidos por alguns segundos, após as convulsões hipertônicas. Logo depois, retorceu-se-lhe a face e a boca cerrou-se fortemente mordendo a língua. Advieram as convulsões clônicas, com os movimentos de flexão e extensão dos membros e da cabeça em desconcerto, expulsão de urina e a conseqüente coma que a dominou, mantendo-a inconsciente por alguns breves minutos.
Cessada a crise epiléptica, despertou ignorando o que ocorrera e, apesar do cansaço que denotava, levantou-se, atônita, com cefaléia, sendo vítimada por novo acesso, qual se fora acometida de violenta incorporação mediúnica...
Com o olhar vigilante, porém, não conseguimos identificar a presença de qualquer agressor desencarnado.
Ante a minha surpresa, esclareceu o Instrutor afável e cônscio:
— Estamos diante de uma problemática epiléptica genuína, mui diferente da classificada como bravais-jacksoniana, também chamada cortical, em razão de somente manifestar-se quando há lesões do córtex cerebral motor, — sistema nervoso central — que é o fator causal das convulsões tônicas e clônicas paroxísticas, que iniciam num grupo muscular de um membro.
“No caso em pauta a progressão da enfermidade está conduzindo a paciente ao estado de mal epiléptico, graças ao fato de se prolongarem as crises sucessivamente por várias horas, quando, não raro, pelas conseqüências que impõe ao organismo, em forma de cargas excedentes, poderá ocasionar-lhe a desencarnação, mediante colapso ou conseqüente a processos de encefalite aguda, inevitável. Outras vezes, a sucessão das crises produz perturbações nervosas graves que conduzem o enfermo a total demência irreversível.”
Fazendo uma pausa, como a formar juízo para valiosas considerações prosseguiu:
— Este é importante capítulo da Neuropatologia que merece acurada atenção, particularmente dos estudiosos do Espiritismo, tendo em vista a parecença das síndromes epilépticas com as disposições medianímicas, no transe provocado pelas Entidades sofredoras ou perniciosas. Mui freqüentemente, diante de alguém acometido pela epilepsia, assevera-se que se trata de “mediunidade a desenvolver”, qual se a faculdade mediúnica fora uma expressão patológica da personalidade alienada. Graças à disposição simplista de alguns companheiros pouco esclarecidos, faz-se que os pacientes enxameiem pelas salas me diúnicas, sem qualquer preparação moral e mental para os elevados tentames do intercâmbio espiritual.
“Não desconhecemos que toda enfermidade procede do Espírito endívidado, sendo a terapêutica espiritista de relevante valia. Convém, porém, considerar, que antes de qualquer esforço externo se há que predispor o paciente à renovação íntima, intransferível, ao esclarecimento, à educação espiritual, a fim de que se conscientize das responsabilidades que lhe dizem respeito, dando início ao tratamento que melhor lhe convém, partindo de dentro para fora. Posteriormente, e só então, se fará lícito que participe dos labores significativos do ministério mediúnico, na qualidade de observador, cooperador e instrumento, se for o caso.
“Não obstante suas causas reais e remotas estejam no Espírito que ressarce débitos, há fatores orgânicos que expressam as causas atuais e próximas, nas quais se fundamentam os estudiosos para conhecer e tratar a epilepsia com maior segurança, através dos anticonvulsivos.”
Fez nova pausa, olhou a enferma que se encontrava em coma, dando curso à explicação:
— Pela lei das afinidades, o Espírito calceta é atraído antes da reencarnação à progênie, na qual se encontram os fatores genéticos de que tem necessidade para a redenção. Quase sempre seus genitores estão vinculados, em grupos familiares, a esses Espíritos em trânsito doloroso, o que constitui, normalmente, manifestação hereditária, com procedência nos graves males do alcoolismo paterno, no uso dos tóxicos, a se expressarem por meio de fatores múltiplos, tais a fragilidade orgânica, as excitações psíquicas, as infecções agudas que geram seqüelas lamentáveis... Os mais credenciados mestres discutem se as suas causas matrizes são resultado da intoxicação endógena ou conseqüentes aos distúrbios das glândulas de secreção interna, responsáveis pela cognominada epilepsia genuína. Além dessas há aqueloutras resultantes dos traumatismos cranianos, das afecções como a sífilis, a encefalite, os tumores localizados no sistema nervoso central, as emocionais, e alguns Autores admitem que a essencial ou idiopática está mais ligada às leis da hereditariedade, não obedecendo a um mecanismo patogênico definido.
“Mesmo nesses casos, temos que levar em conta os fatores cármicos incidentes para imporem ao devedor o precioso reajuste com as leis divinas, utilizando-se do recurso da enfermidade-resgate, expiação purgadora de elevado benefício para todos nos.
Utilizando-me do silêncio natural, alvitrei uma indagação:
— E as sessões mediúnicas não produziriam resultado salutar, em casos dessa natureza?
Sem demonstrar enfado, esclareceu o sábio Instrutor:
— Sem dúvida, a dívida persiste enquanto se não a regulariza. Considerando-se que o devedor se dispõe à renovação, com real propósito de reajustamento íntimo, modificando as paisagens mentais a esforço de leitura salutar, oração e reflexão com trabalho edificante em favor do próximo e de si mesmo, mudam-se-lhe os quadros provacionais, e providências relevantes são tomadas pelos Mensageiros encarregados da sua reencarnação, alterando-lhe a ficha cármica. Como vê, o homem é o que lhe compraz, o que cultiva...
“O Evangelho, dessa forma, é a mais avançada terapêutica de que se tem notícia para o homem que se resolve vivê-lo em plenitude.”
E como me parecesse comportar maiores esclarecimentos, voltei a indagar:
- Seria, então, de supor-se que não ocorrem manifestações de epilepsia simulacro, isto é: obsessões cruéis, produzindo aparentes estados epilépticos?
— Indubitavelmente há processos perniciosos de obsessão, que fazem lembrar crises epilépticas, tal a similitude da manifestação. No caso, porém, em pauta, o hóspede perturbador exterioriza a personalidade de forma característica, através da psicofonia atormentada, diferindo da epilepsia genuína. Nesta, após a convulsão vem a coma; naquela, à crise sucede o transe, no qual o obsessor, nosso infeliz irmão perseguidor, se manifesta.
“Ocorrência mais comum dá-se quando o epiléptico sofre a carga obsessiva simultaneamente, graças aos gravames do passado, em que sua antiga vítima se investe da posição de cobrador, complicando-lhe a enfermidade, então, com caráter misto.
“Conveniente, nesse como noutros casos, cuidar-se de examinar as síndromes das enfermidades psiquiátricas, a fim de as não confundir com os sintomas da mediunidade, no período inicial da manifestação, quando o médium se encontra atormentado.
“Nesse sentido é mister evitar-se a generalidade, isto é, a simplificação do problema com arremetidas simplistas, como é de hábito muitos fazerem.
“A contribuição fluídoterápica, nas diversas expressões em que se apresenta, é de valor inconcusso, de indiscutível benefício, desde que o paciente se disponha realmente a ajudar-se.”
Silenciou, momentaneamente, depois do que voltou a considerar, pausado, cuidadoso:
— Examinemos a jovem Vivianne sob nossa caridosa observação.
“No último quartel do século passado, iremos encontrá-la na roupagem de atriz menos categorizada, que, portadora de invulgar beleza, de cedo entregou-se a toda sorte de dissipações, nas quais manteve graves conúbios com pessoas pervertidas, deixando-se arrastar a gravames muito sérios.
“À aproximação dos 40 anos, como não se celebrizasse no teatro, fez-se hábil na preservação do patrimônio em dinheiro e jóias, avidamente reunidos, pensando garantir-se na velhice, quando exaurida.
Para lograr o intento, consorciou-se com astuto chantagista que a utilizava na arte da exploração de cavalheiros idosos e irresponsáveis, mantenedores da arte galante que conduz aos prazeres fugidios.
“É claro que logrou sucesso... Demandou a Europa diversas vezes, a expensas de cidadãos apaixonados, entregando o corpo e a alma às mais torpes sensações.
“Desenvolveu-se-lhe singular ganância, fascinada cada vez mais em tormentosa cupidez pelas jóias, que a deslumbravam, convertendo se em infeliz negociante de prazeres, mediante a utilização de jovens mulheres, que ludibriava e escravizava.
“Com habilidade invulgar, recorrendo à dissimulação e ao engodo, em que se fez excelente atriz, logrou descartar-se do esposo inditoso, comparsa dos seus crimes, através de bem urdido homicídio, no qual tomou parte relevante um jovem apaixonado, a quem se uniu por algum tempo, acariciando glórias, padecendo receios, dando prosseguimento ao programa de leviandades.
“Temendo a denúncia do cômpar, quando este denotava sinais de cansaço das suas carícias, não trepidou eliminá-lo, a seu turno, numa das viagens transatlânticas, recorrendo a guloseimas envenenadas, não mais se vinculando especialmente a pessoa alguma, saturada dos excessos da sensualidade e atormentada, mais ainda, pelo pavor de vinganças ou rapinas, no meio em que vivia, explorando as vítimas com maior agudeza e fazendo-se, em conseqüência, execrável crapulosa.
“Viveu longos anos perseguida pelos desvarios da posse, que defendia mediante a usança de todo artifício imaginável, agasalhando, porém, sem o perceber, a memória das vítimas, em forma de receios e remorsos que se lhe infiltraram na mente em desalinho, até que a loucura, no termo da existência física, arrastou-a a um Manicômio, onde sucumbiu, esquecida, malsinada...
“Não faltaram aqueles que se locupletaram nos haveres deixados, sob os estigmas da desonra, da hediondez.
“Ingressou no além-túmulo exaurida e seviciada pelos antigos consórcios que a aguardavam, vingativos, padecendo, por algumas décadas, inomináveis aflições.
“O genitor atual é o antigo esposo, que a precedeu, a fim de esperá-la e que não titubeou em interná-la nesta Casa, logo se lhe agravaram as crises epilépticas, depois de martirizá-la demoradamente, com o desprezo e o ódio com que a tratava.
“A mãe, por sua vez, é uma das jovens exploradas, que desde cedo exteriorizou singular aversão pela filha, enferma desde os verdes anos da primeira infância, quando padecia as ausências prenunciadoras das disritmias cerebrais, que se agravariam na puberdade, tornando-se a epilepsia genuína de hoje.»
Compungido, o Orientador facultou-nos, em pausa significativa e oportuna, reflexionar ante o quadro austero do sofrimento, a refletir a justeza das Leis da Vida, que não esquecem, não condenam, não liberam senão pela reabilitação do culpado.
— Condicionada por longos anos — elucidou com benignidade - a dissimulação, à mentira, ao suborno, acalentando pavores que a arrastaram à loucura, lesou os centros perispirituais, que em se fixando no novo corpo, alteraram o metabolismo endócrino, produzindo a enfermidade que ora lhe cobra os delitos cometidos.
“Face ao estado avançado da enfermidade, porqüanto as fixações mentais antigas ressurgem como alucinações que lhe complicam o quadro patológico, defronta, quando se desprende parcialmente do corpo nas rudes refregas convulsivas, o amante assassinado, ainda no Plano Espiritual, que a atemoriza com bem urdida maldade. O horror que a assoma se transmite à aparelhagem orgânica, motivando nova e penosa crise, a suceder-se, não raro, por horas contínuas.
“Tem, então, noção do resgate, embora o tumulto que a vence, reconhecendo a culpa que arrasta consigo, aspirando pela libertação, que pressente próxima.
“Realmente arrependida dos erros praticados, não jaz aqui àmercê do abandono, uma vez que antigo afeto em melhor posição espiritual, que intercedeu pelo seu renascimento, vem visitá-la com assiduidade, lenindo-lhe as aflições e encorajando-a a avançar. Nunca faltam os sublimes recursos do amor, mesmo nos abismos mais infelizes onde vigem os déspotas e os maus de todos os tempos, ali transitando para as experiências libertadoras. .
Nesse comenos, adentrou-se pelo apartamento respeitável Entidade que nos saudou cordialmente, acercando-se da enferma que demorava em estado comatoso no solo.
Envolveu-a com imensa ternura, aplicou-lhe recursos refazentes e balsâmicos, desembarançando-a dos fluídos tóxicos que a entorpeciam e despertando-a, a pouco e pouco, fê-la reconhecê-lo. O semblante se lhe tornou agradável, descontraído, e, tomada por inusitada emotividade, deixou-se conduzir, afastando-se daqueles sítios, na busca de renovação e paz.
— Acreditamos — arrematou o Mensageiro da caridade — que logo mais desencarnará, vítimada por um colapso cardíaco, após haver pago os compromissos negativos antes assumidos.
“Muitos companheiros lutariam para que permanecesse no corpo, esquecidos de que a vida verdadeira é a Espiritual, representando a experiência carnal bênção e oportunidade transitória para a nossa evolução.”
Estávamos fascinados. Realmente, também nós, quando no corpo físico, supúnhamos que, na epilepsia, defrontávamos invariavelmente o fenômeno obsessivo, sem logicar que no organismo vêm impressas as necessidades de cada um, a se traduzirem como deficiências, limitações, coarctações, problemas de saúde.
Idiotia, oligofrenia, mongolismo, epilepsia, psicoses várias, esquizofrenia, demência são terapêuticas de que se utiliza a Justiça Divina para alcançar os Espíritos doentes, que tentam fugir à Verdade, mancomunados com o crime e a ilusão.
Para que tais cometimentos se realizem, entram em jogo os programas cromossomáticos e genéticos tão bem estudados por Gregório Mendel, no século passado, encarregados de expressarem durante a reencarnação os impositivos redentores.
12
HISTERIA
Pergunta: 357. “Que conseqüências tem para o Espírito o aborto?»
Resposta: “É uma existência nulificada e que ele terá de recomeçar.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 7º.
Prosseguiam as valíosas explicações ante os quadros vivos, nos quais hauríamos indispensáveis conhecimentos para a própria iluminação.
Confirmávamos que o homem é o juiz de si mesmo, recolhendo da atividade em que se envolveu os frutos merecidos da plantação realizada.
Os conceitos de justiça ampliavam-se e as soberanas leis de amor se nos reafirmavam, então, como as mais elevadas manifestações da Sabedoria Divina.
A reencarnação, desse modo, afigurava-se-nos como uma escola de recuperação, na qual os Espíritos se aprimoram, mediante cujo labor recuperam o patrimônio da paz malbaratado nas aventuras da insensatez e da perversidade.
Cada homem é a soma das suas realizações.
Na problemática das enfermidades mentais melhor se desvelam as paisagens íntimas de cada ser, uma vez que o impositivo do resgate exige da organização físio-psicológica a exteriorização dos abusos e crimes perpetrados anteriormente.
Ninguém se exime às conseqüências da culpa. Esta insculpe na tecelagem sutil e poderosa do perispírito o de que tem necessidade para anular o gravame.
Enquanto reflexionávamos, o sábio Orientador indicou-nos uma enferma de aproximadamente vinte e cinco anos que dormia, anestesiada pelo sedativo utilizado fazia poucas horas. Ressonava, ofegante, traduzindo indisfarçável mal-estar.
— Não se trataria de algum pesadelo? — inquiri, atencioso.
— Certamente — anuiu, afável.
— Essa ocorrência — volvi à inquirição — decorre de algum encontro espiritual infeliz, no qual se vê perseguida?
— Poderia ser — respondeu, aprofundando observação. — No caso em tela, porém, encontra-se a dormir espiritualmente. A continuidade dos fortes sedativos, por processo de assimilação perispiritual, prostram-lhe, também, a alma aturdida. No entanto, fenômenos inconscientes produzem-lhe sonhos desagradáveis, por automatismo psicológico, que são fruto das recordações impressas nos dédalos da memória perispiritual.
“Esta é nossa irmã Angélica, cuja distonia nervosa começou a partir dos quatorze anos de idade, agravando-se a pouco e pouco. A princípio suas crises eram amenas, tornando-se mais amiúde nos últimos meses.
“É portadora de uma psiconeurose de natureza histérica em longo curso, a caracterizar-se por ataques violentos de psicastenia dolorosa, que surgira em conseqüência dos distúrbios neurovegetativos que vem experimentando desde há algum tempo, acompanhados por outros distúrbios de ordem motora.
“De início as síndromes eram perturbadoras, revelando-se em estados de hiperestesia como de hipestesia em que experimentava rudes embates dos quais saía triturada emocional e físicamente. Tornando-se condicionada por impressões profundas da personalidade desequilibrada, vem caminhando de estágio a estágio na direção da loucura.
“O tratamento a que se vem submetendo, felizmente, ser-lhe-ámui salutar. E porque a mãezinha seja credenciada por expressivos títulos de enobrecimento moral, sua interferência pela oração fê-la granjear a assistência de generosos Benfeitores do nosso plano, que a vêm auxiliando no ministério da recuperação. Algumas Entidades perniciosas que a martirizam, utilizando o seu desequilíbrio, deverão corporificar-se por seu intermédio, mais tarde, caso esteja disposta à maternidade, cessada a doença atual, o que se encarregará de consolidar-lhe a cura, ficando assim, liberada em parte dos pesados débitos.”
O sábio mentor acercou-se de Angélica e tocou-lhe o centro cerebral, que ao contato da mão poderosa se impregnou de coloração específica, passando a vibrar singularmente.
Aplicou o mesmo recurso ao centro coronário, e logo após ao genésico. Ativados habilmente, filamentos coloridos acionados por energia especial passaram a vitalizar os demais que se acenderam, como lâmpadas mágicas, nas quais tonalidades variadas oscilavam em caleidoscópio, circulando e vibrando numa irrigação por toda a aparelhagem fisiológica, agora luminosa aos nossos olhos, como se as artérias, veias e vasos estivessem percorridos por desconhecido gás néon, que se exteriorizava em todas as direções. Nos núcleos de força perispiritual mais intensas eram as cores em círculos concêntricos, sucessivos...
A paciente agitou-se mais fortemente por um momento, sem despertar, e, logo após, acalmou-se.
Quando o Instrutor desfez o circuito provocado pela sua energia através do centro coronário, passaram a diminuir as fulgurações, que se reduziram consideravelmente, permanecendo debilmente lampejantes.
“A histeria” — tornou à consideração — “já era conhecida desde remota antigüidade. Fenômenos psíquicos, por ignorados, muitas vezes foram com ela confundidos, como reciprocamente ocorria. Na Idade Média, graças às superstições engendradas pela ignorância e mantidas pela intolerância, a histeria alcançou o seu período áureo, particularmente quando das ocorrências das “possessões espirituais coletivas” que tomavam de assalto cidades, regiões, monastérios, do que decorreram as hoje clássicas demonopatias rudemente punidas pela Igreja, mediante aplicação de métodos nefandos.”
“Tais crises psíquicas repetiram-se, posteriormente, durante o chamado período romântico no século XIX...
“A João Martinho Charcot, o célebre anatomo-patologista do sistema nervoso, que se dedicou às questões das psiconeuroses dentre outras, a histeria tornou à celebridade nas aulas por ele ministradas na Salpêtrière, entre 1873 e 1884, onde era médico desde onze anos antes.
“Desdobrando-lhe as pesquisas, o prof. Pedro Janet facultou-se transferir para a histeria um sem-número de síndromes nervosas, descobrindo o subconsciente através do qual procura negar toda a fenomenologia mediúnica.
“A atitude extremista do respeitável estudioso em torno de tão grave problema fez que a sua teoria pecasse pelos absurdos, hoje reaparecendo em muitos aspectos comprovadamente ultrapassada.
“Por muito tempo acreditou-se que a histeria estava vinculada exclusivamente às questões uterinas, o que a tomava imoral e pecaminosa, no que Freud, ao conceber as bases da Psicanálise, discordou frontalmente, através de bem fundamentadas razões, constatando estados histéricos, também, nos homens.
“Identificando a região do polígono cerebral de Wundt e Charcot como a sede do subconsciente, Janet, e mais tarde Grasset, desenvolveu a estranha tese com que esgrimiu cegamente contra a mediunidade, desde 1889 quando apresentou o resultado dos seus estudos na Obra intitulada “L’Automatisme Psycologique” (*)
“O debate em torno do subconsciente desde então vem sendo grande, hoje ressurgindo sob a designação de hiperestesia indireta do
(*) Vide o Capítulo 4 de “Nos Bastidores da Obsessão”, Edição FEB, 1970.
Nota do Autor espiritual.
Inconsciente entre os modernos adeptos da Parapsicologia, partidária da psicologia sem alma.
“Não nos cabe dúvida quanto à fragilidade de tal enunciado, desde que nos constituímos evidência da sobrevivência ao túmulo e do intercâmbio entre as duas esferas de atividade: a espiritual e a material.
“Não negamos as possibilidades do subconsciente, aliás estudadas pelo Codificador do Espiritismo, que merece, todavia, mais de-tida análise.”
Como desejando ser mais explícito, prosseguiu:
— Angélica vem de um passado moral pouco recomendável. Jovem e atraente, aos primeiros dias do século atual, consorciou-se por imposição paterna com um homem a quem não amava, mais idoso, do que ela, o que lhe constituiu, a princípio, inominável martírio.
“Seu consorte, impossibilitado para o matrimônio, confidenciou-lhe o problema que o afligia, prometendo-lhe regular liberdade, desde que se mantivessem as conveniências sociais para ele relevantes. Tal conjuntura afetiva constituía já uma medida coercitiva de que se utilizava a Vida a fim de discipliná-los corretamente... Deveria, portanto, ter aproveitado a oportunidade, mediante a austeridade moral que a guindaria a relevante posição espiritual. Isto, porém, não se deu.
Acobertada pelo esposo insensato e leviano, tombou em quedas sucessivas, ocultando os frutos das dissipações por meio de infanticídios impiedosos que se repetiram por quatro vezes consecutivas, no último dos quais logrou ser expulsa do corpo, através de hemorragia violenta...
“Ao despertar no Além reencontrou aqueles que impedira de renascer, passando a sofrer-lhes acrimônias, injúrias e rudes perseguições.
“Infelizmente, conduta que tal ainda hoje é corrente: apagar o erro por meio de maior crime, isto é: ocultar o ultraje moral, incidindo no aborto delituoso, destruindo quem não tem culpa da leviandade.
“A Lei, porém, sempre chama a necessárias contas todos os seus arbitrários desrespeitadores, como estamos verificando.
“Ao reencarnar-se o Espírito culpado através de processo muito complexo, fixou no centro coronário, onde se situa a epífise, a veladora da sexualidade, os abusos anteriormente cometidos, que foram sendo revelados, à medida que a puberdade ativava o centro genésíco, produzindo-lhe o estado atual, e, simultaneamente, fazendo que a memória dos sucessos infelizes começasse a trasladar-se do inconsciente profundo para o consciente atual, em forma de tormentosas crises evocativas das sensações experimentadas nas pavorosas regiões de dor donde proveio...
“O Inconsciente possui, portanto, fatores preponderantes, não, porém, exclusivamente desta encarnação conforme desejam os estudiosos materialistas, que apenas percebem os efeitos sem aprofundarem as causas...
— E será ela uma obsidiada — aventei — no sentido lato da palavra?
— Sim — concordou. — Aqui, porém, a obsessão é efeito, contingência natural da sintonia da mente endívidada com as mentes das suas vítimas. Nela mesma, na paciente, nas zonas fisiológicas estão as distonias psicoffsicas já instaladas pela consciência culpada, em forma de sintomas vários e desconexos que, no caso, lhe constituem a histeria.
O Benfeitor aplicou-lhe recursos próprios, através de passes especiais, enquanto nos quedamos a meditar, procurando melhor entender as sutis vinculações causa-efeito, na histeria e na obsessão, na loucura e na possessão.
13
SUBJUGAÇÃO
6.’. “A subjugação corporal, levada a certo grau, poderá ter como conseqüência a loucura?
“Pode, a uma espécie de loucura cuja causa o mundo desconhece, mas que não tem relação alguma com a loucura ordinária.”
“O LIVRO DOS MÉDIUNS”. — Capítulo 23º — Item 254.
As profundas e valiosas lições calavam-nos com extraordinário poder de esclarecimentos espirituais. Em toda parte, a presença da justiça sem importar os limites tempo e espaço, considerando que somente ilibada a consciência se alça à paz, ponto de partida para os tentames superiores.
Construtor da felicidade, o Espírito é o agente das possibilidades que lhe surgem em múltiplos aspectos, dele exigindo o indispensável discernimento para atuar com acerto.
Naquele apartamento de Hospital, quatro pacientes constituíam excelente campo à observação e à aprendizagem. Viandantes de estradas evolutivas diversas, reuniam-se sob o guante de aflições equivalentes para a reabilitação indispensável à liberdade que todos anelamos, sinônimo de ventura e plenitude, quando conscientes dos códigos da Suprema Justiça.
Nesse ínterim, o prestimoso Mensageiro acercou-se da jovem Ester e, compungido, referiu-se:
- Verdadeiramente o objetivo da nossa visita hoje a este Manicômio é a moçoila que agora examinaremos.
“Diversamente dos casos estudados, defrontamos aqui, como causa da sua loucura, a subjugação espiritual que a vem conduzindo a uma situação esquizofrênica com possibilidades irreversíveis, se o socorro divino não a alcançar imediatamente.
“Nos demais problemas há pouco examinados, a obsessão se fazia como conseqüência, junto à alienação dos pacientes. Aqui defrontamos o distúrbio psíquico na condição de efeito obsessivo...
“Várias conjunturas trazem-nos até seu catre de enferma. Orações intercessórias agora se conjugam a seu benefício: sua mãezinha, as componentes do Culto Evangélico do Lar do dr. Gilvan, os membros do serviço desobsessivo da Sociedade Espírita “Francisco de Assis” e das pessoas devotadas à mediunidade, os irmãos Joel e Rosângela.
“Necessário nos recordemos de que a lei é de justiça, na qual, porém, não vigem ausentes os recursos da misericórdia de Nosso Pai, sempre ao alcance de quantos O buscam pelo conúbio oracional. A prece é de essência divina. Registros especiais captam as rogativas da Terra e as transformam em respostas de socorro celeste. Nenhum apelo, neste Universo de vibrações e intercâmbios, jaz sem resposta. Quem se compraz na revolta sintoniza com as mentes carregadas de ira, que se conjugam em comércio de longa duração, assim como quem vibra esperança e amor sincroniza com as forças emissoras da paz e da harmonia, estabelecendo ligações que favorecem o otimismo e a saúde.
“Não poucas vezes nos admiramos de como algumas frágeis criaturas sobrevivem sob cargas de penosas agonias, sem desfalecerem; de outras que resistem a alucinantes situações; de muitas que exalam paz, embora o coração estiolado pelas conjunturas da adversidade... Todas elas haurem, através da prece, a vitalidade que as sustenta e mantém pelo concurso da oração, através do recolhimento na meditação, ampliando os processos de captação pelas antenas psíquicas que recebem as respostas divinas, jamais atrasadas.
“Sofrem, sem dúvida, por estarem em recuperação, mas não exsudam pessimismo nem enfermidade. Onde se encontram, luze a esperança e a alegria se faz presente, qual atestado inequívoco da sua comunhão com Deus.
“Não foi por outra razão que o Senhor recomendou nos amássemos, orando uns pelos outros, particularmente pelos nossos adversários como pelos que nos perseguem.
“A prece intercessória não apenas alcança a quem se destina como beneficia aquele que a realiza. Telefônio com os avançados Centros do Amor Divino produz ligação de contínuo intercâmbio.”
Silenciou por alguns segundos, enquanto mais se acercou da moça subjugada, dando curso à elucidação:
Não que a nossa Ester aqui estivesse ao abandono. Ninguém, coisa alguma se encontra relegada a si mesma, ao esquecimento, àmargem. Mecanismos muito bem elaborados atuam em nome da Misericórdia de Nosso Pai, mesmo quando não solicitada, e Mentes viligantes observam, auscultam e escutam, atentas, a serviço do Bem Ilimitado.
“Acumpliciada, porém, desde ontem, com o atual genitor, resvalou pela rampa da desídia e do crime que agora carpe, por meio de outras circunstâncias, precipitadamente com aparências de injustiça.
“Adicionando-se recursos benéficos e corações que se empenham com o crédito de que são portadores para auxiliá-la, modificam-se-lhe os mapas provacionais, produzindo recursos socorristas que lhe facultarão os ressarcimentos por outros meios que não as coerções do sofrimento.
“É da Lei que o infrator seja justiçado, não, porém, supliciado. Quem se recusa produzir no bem, reflexiona ao império da dor; repelindo o trabalho que gera o clima de paz, sofre a ação do sofrimento que programa as circunstâncias do reequilíbrio para a redenção...
“Desse modo, atendendo às orações conjugadas dos nossos irmãos, o Senhor faz da nossa fragilidade Seus recursos para átendê-la em Seu Nome.
Novamente o sábio Bezerra de Menezes silenciou, significativamente.
Concentrando-se, a fim de aprofundar informações sobre a enferma, adiu:
“A Entidade que a vergasta, agora, não tem diretamente com ela nenhuma vinculação atual. Antes assim o faz, para desforçar-se do genitor a quem supõe odiar. Porque ela se encontra comprometida, sofre, fazendo o pai sofrer, enquanto, por esse processo, se libera dos erros praticados em companhia daquele. A Entidade malfazeja a subjuga por encontrar nela predisposições cármicas que fácilitam o conúbio. Portadora de mediunidade, por cujo meio poderá ascender posteriormente. faculta ao irmão infeliz a obsessão, através de compreensível afinidade fluídica com que se imantam reciprocamente.
“Consultemos os seus clichês mentais arquivados na memória anterior, no centro coronário, de modo a aquilatar-se melhor a sua problemática, ajudando-a com maior proficiência.”
Concentramo-nos quanto possível na sede mental da jovem que se encontrava a dormir, enquanto o irmão Melquíades a assistia em espírito, ao lado do corpo, duramente seviciada na organização físio-psíquica pela pertinácia do subjugador desencarnado. Em estado lamentável de descontrole emocional, o perseguidor procurava ofendê-la, proferindo expressões chocantes e golpeando-a continuamente com os punhos cerrados. Impossibilitado de ver-nos, face aos fluídos densos em que se agitava nas baixas faixas vibratórias em que respirava, subitamente o Espírito deixou de ver sua vítima, ficando mais acirrado pela ira no deplorável comportamento.
Embora sem capacidade no momento, para entender a ocorrência, O irmão Melquíades desenovelou-a das emanações pestosas que a prostravam, aplicando a terapia da palavra gentil e amiga, que ela recebia em forma de indescritível bem-estar. Em poucos momentos, dormia espiritualmente tranqüila sob a ação anestésica que lhe dispensara o Enfermeiro, bondoso.
— Não nos compete de momento — informou o Orientador —desligar o seu perseguidor, na atual circunstância. Para tal se fará necessária a contribuição do sacrifício do genitor de Ester, a fim de esclarecer devidamente o adversário, conquistando-lhe a amizade e o respeito, o que será tentado em ocasião própria.
“Nosso primeiro esforço será o de atenuar as recordações desordenadas de que ela se vê objeto no transe da subjugação. Nos poucos momentos em que se liberta do sicário da sua paz, a mente em turbilhão ressuscita doridas lembranças que a perturbam, levando-a ao dédalo do desequilíbrio, face à impossibilidade de situar-se no clima da razão, tendo em vista a mixórdia psíquica, decorrente dos tormentosos dias do passado e dos aflitivos do presente.
“Acuremos cuidadosamente a observação.”
Percebemos, então, à medida em que lhe fixávamos o núcleo correspondente aos registros da memória, surgirem cenas vivas, como se fôramos transferidos para o local em que sucediam.
Tomado pela surpresa da ocorrência, ia formular indagação, quando ouvi telepaticamente a palavra austera do Diretor Espiritual, concitando-me à atenção.
Era noite e uma jovem de porte elegante em sala sombria de rica vivenda confabulava com um sacerdote de face macilenta e severa, maneiroso e astuto. A conversação se fazia em torno da usurpação de bens pertencentes a uma mulher que deveria doá-los, estando naquele momento à borda da desencarnação...
Sedutora e ambiciosa, impunha ao sacerdote que, somente após conseguir a legitimação dos bens, concordaria continuar o romance da ilicitude que mantinham. Percebia-se o desprezo com que o tratava. O homem, porém, apaixonado, não se dava conta da exploração criminosa a que estava sendo submetido impiedosamente.
De repente as cenas se sucederam, ressurgindo a jovem com aparência de meia-idade, atormentada por Espíritos muito infelizes que a vituperavam.
O religioso, ao seu lado, ostentava as cores de que se orgulhava, alçado que fora à categoria de Monsenhor, por ela prosseguindo esbulhado, em conciliábulo infeliz, de que não se podia libertar.
Nela se percebiam, também, as angústias da insopitável frustração em que despenhara, a despeito do quanto conseguira.
Logo após retornaram as cenas primeiras que desapareciam no tumulto das impressões perturbadoras, sem contornos.
Tornamos, então, à ambiência do apartamento hospitalar:
— Aí estão as matrizes do seu estado atual — informou o Médico Espiritual.
“Retornaremos amanhã, trazendo o nosso Joel, em espírito, a fim de atendermos Ester e seu genitor, em desprendimento pelo sono, de modo a iniciarmos o labor que se prolongará através da terapêutica eficaz, nas próximas sessões de desobsessão do infeliz irmão perseguidor.
“Cada problema obsessivo tem as suas características próprias, e, pois, conseqüentemente, exige tratamento especial. Sem dúvida, as raízes são sempre profundas, fincadas no cerne do Espírito que sofre a aguerrida luta.
“Agora partamos. Nossa visita aqui, por hoje cessa.”
O irmão Melquíades colocou Ester-espírito ao lado de Ester-orgânica em repouso reparador.
Foram aplicados recursos balsamizantes no vingador que, entorpecido, passou, também, a repousar.
Deixamos a cela hospitalar agora atendida por psicosfera diversa da que encontráramos. Ali foram realizados serviços socorristas valiosos, recorrendo-se ao Divino Médico, pela intercessão da prece, o que renovou a paisagem face à Sua sublime interferência.
Lá fora, próximo à praia, podia-se ver fronteira a encantadora enseada de Botafogo, clareada pelo luar, sob um céu salpicado de estrelas. Logo mais amanheceria novo dia, trazendo abençoadas oportunidades salvadoras.
14
NOVAS DIRETRIZES
“Para preservá-lo das enfermidades, fortifica-se o corpo; para garantila contra a obsessão, tem-se que fortalecer a alma; donde, para o obsidiado, a necessidade de trabalhar por se melhorar a si próprio, o que as mais das vezes basta para livrá-lo do obsessor, sem o socorro de terceiros. Necessário se torna este socorro, quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque nesse caso o paciente não raro perde a vontade e o livre arbítrio.”
“A GÊNESE” — Capítulo 14º — Item 46.
Graças à orientação salutar do Cel. Epaminondas Sobreira, através de oportunos esclarecimentos e leituras bem sugeridas, ampliavam-se os horizontes do matrimônio Santamaria, que descobria na Codificação Kardequiana uma fonte inexaurível de iluminação e conforto espiritual. A instâncias do amigo dedicado, o pai de Ester aquiesceu abrir a mente ao estudo sistemático do Espiritismo, inaugurando o Culto do Evangelho no Lar, como passo inicial para novos cometimentos, face à decisão de utilizar a terapêutica espírita, no doloroso processo em que se debatia a enferma querida.
Desse modo, acertou-se a programação adequada que consistiria no encontro semanal, em dia e hora adrede marcados para comentários edificantes em família à luz libertadora dos ensinos de Jesus. D. Margarida, a seu turno, desde o momento em que recebera os esclarecimentos dos Sobreiras, passou a registrar no íntimo ignotas emoções. Da angústia e perplexidade em que se debatia semivencida, passou a singular estado de esperança e otimismo, qual se o espírito dorido antecipasse, precognitivamente, alegrias a que já se desacostumara. Motivada pelas palestras relevantes e face à inauguração do programa evangélico, na intimidade doméstica, deu aspecto festivo ao lar, desde há muito mergulhado em sombras de funesta aflição. Providenciou vasos guardados e arranjos florais, removendo armários em busca de valiosa toalha bordada com que adornou a mesa da sala de refeições, reaberta especialmente para a ocasião, sem ocultar a expectativa ditosa.
Graças ao novo estado da alma, hauria energias vitalizadoras que lhe dispensava o seu Espírito-Guia, igualmente felicitado pelas perspectivas em delineamento na família.
Às 19:30 horas chegaram os Sobreiras, que se faziam acompanhar do Tenente-Coronel Joel e mais três amigos, que apresentaram, bondosamente, aos gentis anfitriões.
— Rogo desculpas — apressou-se, justificando-se, o Coronel Epaminondas — por haver ampliado o convite para o encontro desta noite, a queridos confrades do nosso círculo de fé, do “Francisco de Assis”, igualmente interessados na recuperação de Ester.
— Não há por que apresentar explicações — assentiu, cortês, o Cel. Santamaria — uma vez que esta casa é perfeita continuação do seu lar, que hoje se honra em receber tão gratas personagens.
— Apresento-lhe, caro Constâncio — prosseguiu o visitante —o dr. e senhora Gilvan de Albuquerque, abnegado médico, residente em Botafogo, bem assim a sua tutelada Rosângela, que é auxiliar de Enfermagem, no Sanatório da Praia Vermelha...
O anfitrião não pôde ocultar a surpresa, defrontando Rosângela. Pela mente reviveu a cena desagradável em que fora protagonista infeliz, quando a jovem o buscara com manifesta simpatia pela filha. Parecia que os Céus apresentavam-lhe ensejo ditoso de reparar o procedimento a que se deixara conduzir pela animosidade gratuita que mantinha em relação ao Espiritismo.
Demonstrando satisfação ante a chegada de novos amigos, elucidou, sincero:
— Hoje o Senhor penetra realmente no meu lar, porqüanto me confere o ensejo de desculpar-me com a senhorita pela indelicadeza e incivilidade com que a tratei noutra oportunidade, aqui mesmo... Sua religião, de fato, é pauta de nobre conduta, promovendo-a ao perdão espontâneo, conforme o atesta, retornando a esta casa que, doravante, é também sua.
A voz traía-lhe a emoção.
— Sou eu quem vos roga perdão, senhor Coronel — acudiu a jovem embaraçada — pela forma como agi, extemporânea, desajeitadamente.
Apertaram-se as mãos, fraternalmente, enquanto dona Margarida os convidava a todos adentrarem-se, tomando assentos confortáveis para a conversação.
A palestra generalizou-se, cordial e franca, agradável e edificante sobre assuntos vários e rápidos.
Às 20:00, delicadamente, o Cel. Sobreira solícitou permissão para dar início ao labor a que se propunha, sendo convidado bem como os demais pelo dono da casa, à sala de refeições onde tomaram lugar.
O prestimoso amigo trouxera consigo um exemplar de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, cujo volume deixava perceber as iniludíveis marcas do demorado e contínuo uso, pelo trabalhador fiel do Cristo que nele mergulhava o pensamento em constantes e emocionadas reflexões luminíferas.
Convidado à oração, o médium Joel, visivelmente emocionado, exorou as bênçãos divinas para o grupo e em particular para aquele lar, incluindo a alienada distante, cujo nome, enunciado com carinho, produziu impacto forte nos genitores ora contritos. A emoção generalizada e sob controle de cada um traduzia as intenções superiores que a todos sustentavam, no empreendimento cristão em começo.
O ambiente, a pouco e pouco, semelhando-se às primitivas células cristãs, impregnou-se de vibrações saturadas de paz que penetrava almas e corações, irmanando-os todos em fortes vínculos de afeto espiritual.
No silêncio natural que se fez, o diretor abriu “O Evangelho”, conduzido pela intangível mão do Mentor Espiritual do grupo e leu com bem modulada voz, do Capítulo número 11º, “Amar o próximo como a si mesmo”, as oportunas páginas de Emmanuel e Pascal intituladas: “O egoísmo”.
Concluída a leitura e seguramente inspirado, o Coronel Epaminondas considerou:
— De relevante oportunidade a lição a que fomos guiado, neste momento, porqüanto o egoísmo é a causa matriz de incontáveis desastres morais e sofrimentos que irrompem por toda parte.
“Compreendessem os homens a própria fraqueza e limitação, portanto, a necessidade de se ajudarem mutuamente, e diversas seriam as paisagens espirituais da Terra... Graças à formação social deficiente e à educação moral mal dirigida, cultivam-se os sentimentos perniciosos em detrimento dos superiores impulsos da vida nobre. Açulam-se paixões nos jogos competitivos, nos quais, nem sempre, o valor recebe o prêmio de melhor, derrapando-se em sucessivos lances de audácia que se transfere da infância à juventude, à madurez, à velhice sob as constritoras molas da avareza vitalizada pelos instintos inferiores predominantes.
“Os pais, de cedo, pensam no triunfo dos filhos, envenenando-os com os tóxicos da egolatria, esquecidos de os preparar convenientemente para a vida. Vêem na progenitura os futuros herdeiros da Terra, os triunfadores, nem sempre se preocupando com os métodos com que triunfem ou armando-os moralmente para viver com decência em qualquer circunstância, portanto, mais importante, do que dominarem sem os recursos mínimos exigíveis para o autodomínio.
Reflexionou por um pouco e prosseguiu:
— Pequeninos títeres, atravessam a infância sem a competente disciplina, desculpados nos erros e gravames em que se estribam, desenvolvendo aptidões negativas e negligenciados na cultura dos valiosos tesouros morais e espirituais com que se alçariam às tarefas e funções retificadoras para as quais reencarnaram. O egoísmo neles se avulta, incorporando-se à personalidade como câncer cruel em metástase devoradora. Surge e reaparece em diversas expressões, agigantando-se em terríveis flagícios individuais e coletivos de que padece hoje toda a Humanidade...
“Ira, ciúme, inveja, rebeldia, usura, concupiscência, ódio; são algumas das reações desse adversário implacável que vige em todos nos. Vítimados mais de uma vez pela sua insidiosa dominação, renascemos para vencê-lo e quase sempre repetimos os mesmos enganos, caindo-lhe nas malhas bem urdidas com que nos surpreende.
“Cultivássemos a fraternidade desinteressada de paixões, exercitássemos o amor, conforme nos ensinou Jesus e bem diversa seria a nossa posição no planeta.”
Teleguiado pela mente superior que o inspirava, o palestrante fez uma pausa e logo deu curso à edificante lição:
— Lamentavelmente não cessam na Terra as implicações do egoísmo. Imanado às aspirações do Espírito, prossegue em comando além das fronteiras de cinzas do túmulo, em atitude de rebeldia, quando o Desencarnado surpreende o fracasso, entregando-se a nefasta posição mental, de que só a dolorosos penates consegue libertar-se. Surgem inditosas injunções conscienciais, padecimentos insuportáveis e resoluções extremas que o desgastam e desgraçam.
“Obsessões de longo curso têm lugar, em processos nefandos de perseguições improcedentes, porque se sentem tais Espíritos mesquinhos, depreciados, usurpados em direitos que, verdadeiramente, não lhes pertencem, como traídos, transferindo para os outros responsabilidades que lhes competiam desenvolver e não souberam ou quiseram assumir... A seu turno, os que lhes padecem as vergastadas, ao invés de se elevarem pela oração e paciência, sintonizam, atraVés de reações eloqüentes, em que o ódio, a insensatez e o desespero pelas vaidades feridas, se dão as mãos, conjugando forças para as batalhas contínuas da desdita. - E enquanto o amor não luariza os litigantes, portadores ou não de razões, desde que a verdadeira razão pertence a Nosso Pai, o conúbio obsessivo prossegue indefinidamente. Não é o que vemos a cada passo? Todos nos julgamos vítimas uns dos outros. Ninguém deseja disputar a honra de servir e desculpar, antes nos esforçamos por ser ou parecer pior, mais poderoso na arte de esgrimir e sustentar as posições mentais e morais inferiores.
“Ao clarão, porém, do Cristo, — que jamais se escusava; não repelia aquele que O buscava, fosse quem fosse: socorria assim a mulher adúltera, como o criminoso, a todos concedendo oportunidade para reabilitar-se — modificar-se-ão as contingências e situações, surgindo a antemanhã do Mundo Melhor que todos anelamos.
“Não descuremos, pois, de combater, com todas as forças, esse verdugo de nossa paz e felicidade, que é o feroz egoísmo.
“Se alguém nos fere — a Lei nos faz justiça; se nos perseguem ou prejudicam, se há dor ou necessidade, não nos consideremos infelizes, inocentes supliciados... Talvez soframos em um setor ou atividade em que não possuímos débitos, devendo, porém, na contabilidade Divina, onerosos estipêndios morais que nos chegam em abençoadas ensanchas para resgatar. Alegremo-nos e desincumbâ-mo-nos dos fardos afligentes, pensando nos a quem prejudicamos e ajudando-nos, senão com outros valores, através das nossas ações relevantes, da humildade, da paciência e da resignação, que constituem eficientes antídotos ao egoísmo.
“Jesus fará por nós o que nos não seja possível realizar.”
Quando silenciou todos estavam imersos em compreensíveis meditações.
Instados bondosamente pelo dirigente, os membros do Círculo de oração trouxeram apontamentos valiosos, generalizando-se os edificantes comentários propiciadores de valiosas anotações e convivência benéfica para todos.
Por fim, o anfitrião, algo canhestramente, opinou a respeito do tema em discussão, apresentando expressivas informações:
— Cultor do egoísmo, tenho sido vítima de mim mesmo, estribado em orgulhos vãos, que agora sou compelido a examinar para um inadiável processo de expurgo, a mim próprio benéfico..
“Em relação mesmo à Revelação Espírita ou à problemática que nos envolve com a enfermidade da filha, padecendo de amor-próprio ferido, jamais duvidei de Deus... Acostumado, porém, a supor-me merecimentos inexistentes, reagia contra Ele, revoltado. Pobre verme que sou! Percebo, então, que o egoísmo se veste de ilusão para melhor apropriar-se de a quem domina.
“Esclarecido sobre os valores espirituais, não obstante seja imensa a minha ignorância no assunto, vislumbro já algumas luzes.
Tinha flébil a voz.
Os olhos de dona Margarida, nublados, traíam a emoção daquela hora, ante a confissão do esposo.
Ele continuou:
— Sentimentos desencontrados me hão atormentado em relação à filha. Identifico que a grande mágoa de que padeço não étão-somente de sofrimento por Ester, mas autocomiseração, decepção pela vida que me surpreendeu de forma amarga, que eu considerava até aqui injusta. Amor e raiva, piedade e revolta alternavam-se em meu espírito sob fardo insuportável... Agora começo a ver melhor.
injunções pretéritas nos amarram uns aos outros, obrigando-rios a arrebentar as algemas do egoísmo.
“Esperava, em razão dos esclarecimentos do Sobreira, a provável cura ou melhora de Ester, sem maiores comprometimentos de minha parte. Era o método simplista e astucioso do cômodo egoísmo que eu cultivo.
“Melhor razão me conscientiza, à medida que leio e medito. Sem dúvida, que aspiro à saúde, à paz da filha, no entanto, reconheço que sou mais doente do que ela, que só padece da mente, enquanto eu estou sobrecarregado no espírito com as mazelas que causam aqueles e outros distúrbios insidiosos quão prejudiciais.. À semelhança do cego de Jericó: agora vejo!”.
Tinha os olhos úmidos. Por fim, solicitei:
— Que nos perdoe o Senhor: a minha mulher e a mim, que temos marchado em círculos de agonia, e nos desculpem os amigos a insipiência e ignorância, ajudando-nos com a sua amizade e compreensão fraternal.
Dona Margarida levantou-se e abraçou o esposo, osculando-lhe a testa. O gesto espontâneo, comovido, produziu imenso bem-estar no consorte sofrido, longamente estremunhado.
Dando curso ao ministério evangélico, o diretor procedeu às rogativas intercessórias e vibrações, pedindo a Joel aplicasse passes em todos, após o que encerrou a reunião.
Transcorrera apenas uma hora, em cujo período se abriam as portas de mais um lar à comunhão com o Mundo Espiritual, em plena integração com os ditames evangélicos.
A conversação jovial teve curso, enquanto a anfitrioa servia, agradecida, alguns doces e refrescos.
Logo depois, despediram-se os visitantes, deixando o lar imerso em psicosfera diferente da habitual. Cristo fora convidado a voltar àquela família.
15
REENCONTRO NA ESFERA DOS SONHOS
Pergunta: 401. “Durante o sono, a alma repousa como o corpo?”
Resposta: “Não, o Espírito jamais está inativo. Durante o sono, afrouxam-se os laços que o prendem ao corpo e, não precisando este então da sua presença, ele se lança pelo espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 8º.
Decisivamente, dava-se curso à técnica fluídoterápica a benefício de Ester, desde que a família, revinculando-se pelos liames espirituais, mediante a valiosa contribuição da prece em conjunto, ensejava relevantes recursos que poderiam ser aplicados, não apenas em favor da paciente, mas, também, da Entidade que a mortificava, e sofria, a seu turno.
Estabelecida a ambiência psíquica favorável, após inaugurado o estudo evangélico na residência do Coronel Santamaria, produziu-se conveniente assepsia mental no recinto, impondo aos hóspedes invisíveis e perniciosos compreensível mal-estar que os obrigava a trasladar-se.
Naquela mesma noite, graças aos fluídos que imantavam de agradável emotividade os cônjuges e lhes renovavam a psicosfera, quando o sono lhes facultou mais amplas possibilidades para o desdobramento parcial e mais acurada lucidez, prontamente retornamos, sob a direção do Espírito Bezerra de Menezes, que, conhecedor das necessidades e recursos a aplicar nos genitores de Ester, deslindou-os quanto indispensável da densa faixa das impressões físicas, mantendo com ambos precioso diálogo, com que os elucidou sobre as tarefas e responsabilidades em começo.
- Encontramo-nos — referiu-se o Benfeitor, dirigindo-se aos surpresos encarnados — no pórtico de graves e superiores cometimentos. Justo referirmo-nos a responsabilidades e deveres novos. Toda realização exige programa, caso se desejem colimar resultados compensadores.
Embora o nosso esforço se volte para a problemática de Ester-enferma, todos nós devemos penetrar de compreensão e discernimento, porqüanto as matrizes da perturbação em que se vê envolvida, se lhe encontram sediadas no perispírito, em razão de experiências reencarnatórias infelizes do passado. Nesse sentido, os pais atuais se situam como partícipes de ontem, de certo modo culpados pelo drama que ora a martiriza. Em toda conjuntura dolorosa há, impostergável, a presença de dívidas... Recorreremos à proteção divina, no entanto, não nos é lícito aguardar milagre, que tal não existe, nem tampouco regime de exceção, que significaria privilégio, que reconhecemos não merecer. “O milagre resulta do trabalho salutar, adredemente realizado que funciona a tempo próprio e justo.”
Interrompeu as considerações como se aguardasse mais amplo entendimento dos ouvintes atentos. Estes revelavam surpresa e ansiedade, traduzindo, ao mesmo tempo, imensa alegria interior e grande expectativa.
Prosseguindo, aclarou mais:
- Planejamos levá-los a visitar Ester, na cela expurgatória em que se encontra... Antes, porém, precisamos reforçar as reservas de ânimo, porqüanto, qualquer desequilíbrio emocional, além de perturbá-la, poderá produzir prejuízos inesperados à caravana visitadora que nos conduzirá. Assim, compete-lhes considerar não apenas a filha-vítima, mas, também, o algoz-vítimado, sequioso de proteção e socorro, necessitado do amor de todos nós... Convém reconheçamos que a nossa tarefa de caridade tem em mira não somente aqueles que sofrem, mas, também, os que produzem o sofrimento...
“A dor é bênção, bem o sabemos, caminho de ascensão espiritual, porta de serviço por cuja soleira transitamos na direção dos rumos mais expressivos e relevantes... Ajudar é realização de auto-socorro com que nos despojamos das mazelas antigas e dos gravames próximos...
“Defendidos pela força da prece, de que nos revestiremos, cabe-nos preservar um clima especial da mente em vigilância, a fim de que as contingências do serviço não nos surpreendam em desconcerto ou desequilíbrio.
“Renovemos a esperança e, diligentes, disponhamo-nos à edificação do bem, em toda parte como em nós mesmos.
“Naturalmente, nossa jovem, graças à perturbação de longo curso em que se vê envolvida, não nos perceberá a presença de imediato. Com os centros da lucidez psíquica, demoradamente excitados pelos fluídos degeneradores, requisitará tempo para a imprescindível Iecomposição das faculdades pensantes.
“A nossa primeira tentativa de intercâmbio objetivará ministérios outros, do que decorrerão incursões mais profundas e benéficas, de futuro...»
Para nós outros, já acostumados a empreendimentos desta ordem, eram-nos claras e precisas as recomendações. Todavia, para os pais de Ester somente parcelas das elucidações ficavam gravadas. Outrossim, no seu deslocamento do elegante apartamento para o aflitivo Manicômio, os dois permaneceram sem maior percepção, por absoluta falta de experiência em realização de tal monta, bem como por falta dos recursos que se faziam próprios para mais amplos tentames nesse tempo.
Tomadas as providências para a incursão, foram aplicadas energias especiais no casal Santamaria, que somente recobrou a visão e a consciência quando nos encontrávamos no quarto das pacientes atormentadas.
Antes, haviam sido destacados pelo Benfeitor dois dedicados enfermeiros que tinham a tarefa de afastar da cela hospitalar os Espíritos frívolos, não vinculados ao quadro reparador da alienada, trabalhando, no recinto, de modo a torná-lo condigno ao mister em pauta. Não obstante a medida acautelatória, o local transudava miasmas, e substância pastosa, perniciosa ali se demorava, como resultante do vampirismo reinante em processo dominador.
Providenciados recursos defensivos para o quarto, impedindo a invasão da pequena área pelos comensais do desespero, e colocados os visitantes próximos à filha que dormia, inquieta, o Diretor Espiritual perorou comovida súplica que a todos nos permeou de vibrações renovadoras. O ambiente sombrio a pouco e pouco se foi clarificando com diáfana luz, que parecia possuir desconhecidas potencialidades de desagregação das moléculas pestilenciais que impregnavam a atmosfera interna.
Acercando-se da obsidiada e aplicando-lhe vigorosos passes de dispersão fluídica, o Benfeitor desprendeu a Entidade perturbadora, que, por sua vez, era teledirigida por outras mentes situadas distantes do Hospital.
O Espírito perseguidor, ignorante e iracundo, viu-se contido e impossibilitado de maior reação pelos envoltórios magnéticos que o detinham, como conseqüência dos recursos de que se utilizava o Instrutor. No entanto, colhido pela surpresa, blasfemava, hórrido e atormentado, proferindo ameaças, com que pretendia exterminar a doente, desforçando-se do genitor da mesma.
Sem permitir-se piedade injustificada ou impaciência negativa, o diligente Bezerra deu prosseguimento, inalterável, ao ministério, objetivando desdobrar Ester para o encontro com os pais, na esfera espiritual, em cujo ensejo lhe seria aplicada terapêutica especial de esclarecimento, que constituiria o passo significativo para os empreendimentos porvindouros.
Atuando nos centros cerebral e coronário, donde emanavam fluídos dissolventes ali condensados e vitalizados desde o início da agressão obsessiva, Ester-espírito deslocou-se do corpo somático, perfeito símile deste, no qual se notavam as mesmas debilidades do outro: aparência maltratada, vestes andrajosas, descuidadas, desgaste... Não dispondo a jovem do mecanismo mental que aciona a conformação do corpo perispiritual em face ao desequilíbrio, que a vítimava, este retratava os condicionamentos da organização física a que se imantava, absorvendo-lhe as imposições determinantes. Fenômeno consentâneo ocorre quando o Espírito, acostumado às construções superiores da Vida, não obstante reencarnado em uma forma grotesca ou desgastada pelo sofrimento, ao desprender-se, assume aparência harmoniosa e luminífera, por ser o soma dirigido pela mente que extrai do psicossoma os progressos, as conquistas morais que nele imprimem as linhas de equilíbrio, beleza e fluidez.
Desperta do sono provocado, Ester-espírito se deu conta da presença dos progenitores, atirando-se ao regaço maternal, que a acolheu carinhosamente. Lágrimas espontâneas, incontroláveis, expressavam a alegria daquele momento. O Coronel, ansioso, envolveu a esposa e a filha num só amplexo de ternura e saudade, demoradamente contidas, deixando extravasar os sentimentos de dor e de amor desde há muito represados.
— É um sonho, mamãe! — Exclamou a jovem, parcialmente lúcida, cansada. — Ë um sonho celeste, papai! Meu Deus, meu Deus, não me permita acordar jamais!..
D. Margarida, por ser dotada de maior sensibilidade do que o esposo, passou a receber o poderoso influxo mental de Bezerra de Menezes, que, num abençoado processo telepático vigoroso, a induziu aos esclarecimentos de que a filha tinha necessidade.
- Sim, filhinha — registrou e transmitiu a matrona, comovida, — este é um sonho ditoso, no curso do pesadelo demorado. Sonho, porém, que se transformará, em breve, numa realidade feliz, após expungirmos nossos erros e repararmos nossos compromissos. Despertaremos logo mais, todavia, ficará em nossa lembrança a recordação, embora tênue, deste instante, a refrigerar-nos a ardência do desespero e acenar-nos com a coragem em relação ao futuro.
Fez um breve silêncio, como se estivesse refletindo nas palavras que lhe fluíam dos lábios sem qualquer esforço da consciência. Mimetisada pela alegria da promessa futura de saúde e paz da filha querida, estuando confiança, prosseguiu, conduzida, mentalmente:
— Todos temos sofrido. Envelhecemos, seu pai e eu, à distância da sua cela e junto à sua amargura. Esmaeceram nossas alegrias, apagou-se nosso sorriso e nos encontrávamos há pouco à borda de iminente desgraça... No entanto, no momento mais crucial dos nossos destinos, Jesus nos convocou a uma vida nova, cuja aduana começamos a perlustrar, na expectativa e direção do futuro. O orgulho que nos cegava, o egoísmo que nos consumia, o desgosto que nos envenenava cederam lugar à humildade que liberta, à esperança que anima e à alegria que canta bênçãos em nossas almas, ora em recolhimento para meditação e prece. Apenas começamos a amar e já o amor de Nosso Pai nos inunda de santas concessões.
“Certamente, deveremos sorver, ainda, o fel do fundo da taça, sedimentado pelo tempo, tóxico e desagradável... Recolheremos forças no Senhor, que nos ajudará a secar o nascedouro da amargura, facultando-nos estancar as lágrimas e lenir as úlceras de quem agora constituí a razão do nosso perecimento, da nossa dor. .
— Por que sofro tanto, mamãe, sem consolo, desvairada? —interrompeu-a Ester. — Que fiz para ter sido arrancada do lar, qual criminosa desalmada, atirada sem piedade nesta masmorra odienta? Não suporto mais!
Havia uma dor quase selvagem, desagregadora, na interrogação da jovem, O corpo banhava-se pela transpiração pegajosa, fria, e grossas lágrimas lhe escorriam dos olhos pela face imunda, edemadada, desvitalizada. Simultaneamente, em espírito, qual criança aninhada no seio materno, tremia e chorava, pálida, angustiada, ansiosa.
Dona Margarida compreendeu a extensão do sofrimento da filha e sentiu-se enfraquecer. Nesse instante o Instrutor vigilante envolveu-a com energias revigorantes e vitalizou-a com pensamentos e emoções superiores. A sensível senhora recompôs-se mentalmente e respondeu, com tranqüilidade confiante:
— Tudo que nos acontece procede de nós mesmos. Somos os agentes próximos ou remotos dos sucessos felizes ou desditosos que nos surpreendem. Porque não saibamos a razão da ocorrência infeliz, isto não implica na sua inexistência. O que ora desconhecemos, logo mais se configura ao nosso esclarecimento. Sabendo esperar, conseguiremos tudo esclarecer. Indispensável, neste momento, nos conscientizarmos de que nos Estatutos Divinos a injustiça não tem lugar. Tudo ocorre como reação natural das ações que praticamos. No imo de cada vítima vige um causador de danos, encontra-se um defraudador da ordem, do equilíbrio, violador do amor... Não nos preocupemos, portanto, por agora, com os porquês, antes pensemos no como proceder de modo a nos liberarmos da conjuntura aflitiva, reabilitando-nos perante a Consciência Divina, O essencial, portanto, é confiar em Deus.
Ester-espírito, impregnada pelas palavras lenificadoras e pelos fluídos renovadores que a genitora lhe transmitia ao recebê-los do Instrutor, e também decorrentes do entranhado amor materno, mais calma, gemeu:
— Tenho sono, mamãe, estou cansada!
— Repouse, filhinha — sussurrou a senhora, quase num acalanto, — Jesus a abençoará com o repouso. Confie em Deus e espere!
Ainda dirigida pela força mental do Benfeitor, repetiu:
— Tudo está bem! Não se desespere! Tenha paciência! Seremos felizes.
A jovem, em espírito, adormecida, foi carinhosamente removida por dois Assistentes que se encontravam de sobreaviso.
O Coronel Constâncio, silencioso todo o tempo, impossibilitado de compreender a extensão daquele ministério socorrista, deixava-se emocionar, como se estivesse libertando-se do torniquete de angústia que o dilacerava cruelmente.
À saída de Ester-espírito, sem entender plenamente quanto ocorria, tomou as mãos da esposa e beijou-as, ternamente, desejando traduzir no gesto o que as palavras não conseguiriam expressar.
O corpo da jovem obsidiada repousava pela primeira vez nos últimos meses, sem a constrição tormentosa do inimigo desencarnado. Por sua vez, impossibilitado de agredi-la naquele comenos, mais tarde, recomeçaria a perseguição sinistra em que se engàlfinhava, desesperado.
Estavam, porém, lançadas as linhas mestras da recuperação de ambos, na reconstituição das suas vidas espirituais.
Encerrando o labor e encaminhando de volta ao lar, o matrimônio Santamaria, sob sua superior assistência, orando, afervorado, Bezerra encerrou a incursão salvacionista, enquanto a madrugada, envolta pelo mistério da noite, lampejava astros no firmamento insondável.
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BÊNÇÃOS DA FRATERNIDADE
“Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; suprem, nestes últimos, a falta de órgãos materiais pelos quais transitam suas instruções. Daí vem o serem dotados de faculdades para esse efeito. Nos tempos atuais, de renovação social, cabe-lhes uma missão especialíssima; são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a seus irmãos; multiplicam-se em número, para que abunde o alimento; há-os por toda a parte, em todos os países, em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a fim de ficar demonstrado aos homens que todos são chamados.”
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 19º — Item 10.
No dia imediato, ao despertar, o Coronel Constâncio, antes da refeição, informou à esposa que sonhara com Ester, não conseguindo, porém, recordar com precisão detalhes que encadeassem o acontecido. Semelhavam-se a clichês rápidos que lhe afloravam à mente, desordenados. Tranqüilidade inusitada, porém, dominava-o interiormente, misturada a lembranças felizes, imprecisas, que lucilavam na mente. Experimentava a sensação de haver dormido toda a noite, entretanto, parecia-lhe havê-la passado em confabulação demorada, num recinto algo sombrio onde diversas pessoas se encontravam, incluindo a filhinha mortificada.
Ao recordar-se da obsessa, nublaram-se-lhe de lágrimas os olhos claros.
Dona Margarida, atenciosa, comovendo-se, acentuou:
— Tenho a certeza de que visitamos nossa menina... Durante a madrugada, inesperadamente despertei, sentindo-me retornar de abençoada excursão ao Hospital, amparada por seres angélicos, que nos guiavam e inspiravam. Pude vê-los, ainda, como a desaparecerem, interpenetrando parede afora do quarto. Permaneci meditando, recordando e experimentei tão grande felicidade interior como jamais fruíra nos últimos anos... Creio, sim, que estivemos com Ester, ajudados pelos Espíritos Superiores, que representam Jesus atendendo a nossas preces e dores.
Seus olhos brilhavam, também, mergulhados em pranto que não escorria.
Os esposos se tomaram as mãos e a senhora, comovida, balbuciou uma oração simples quão profunda de louvor e gratidão.
Os dias passavam lentos para a ansiedade dos envolvidos na trama redentora. O tempo era preenchido por leitura salutar, aprofundando a meditação e o estudo nas incomparáveis páginas de Allan Kardec, em “O Livro dos Espíritos”, com que o amigo Sobreira brindara o colega de armas.
O conteúdo incomum quão precioso da Obra facultava ao neófito das Verdades Eternas entranhando deslumbramento, ensejando-lhe valorizar a ensancha inditosa que acarretava sofrimento, graças à qual, porém, lhe caíam as vendas do entendimento, concedendo-lhe a visão dos horizontes infinitos da esperança sem limite, da alegria sem receios, da sabedoria sem inquietações.
Atraído pelas informações espirituais dantes jamais suspeitadas, lendo e comentando com a esposa que o seguia afervorada, lamentava o tempo passado na ignorância da preciosa Doutrina e confessava a falência do orgulho, do materialismo e seus sequazes no defrontar com o Espiritismo.
Os Sobreiras, quanto lhes permitiam os compromissos, visitavam-nos e dona Mercedes, por telefone, cada dia saudava a nova consóror, emulando-a ao prosseguimento confiante nas tarefas ora encetadas com afinco.
Nos dias aprazados realizavam o Culto Evangélico no Lar com que hauriam ânimo robustecido e iluminação interior. Simultaneamente passaram a participar das sessões de estudo doutrinário, duas vezes por semana, na Sociedade Espírita “Francisco de Assis”, de cujo valioso aprendizado mais se lhes aguçava a sede de saber, adquirindo respostas para as mil indagações, dúvidas e interrogações que se lhes multiplicavam surpreendentemente como sói acontecer com todos os que travam relações com o Consolador.
Os apontamentos felizes expostos pelos divulgadores da Mensagem Espírita, vazados em linguagem simples, no entanto, profunda, quão clara, fascinavam os novos simpatizantes do Espiritismo, que, em cada conceito, descobriam rumos novos e material para mais dilatadas considerações, que os empolgavam. É certo que anelavam a cura da filha, sua libertação, sem embargo, porém, compreendiam os impositivos superiores da vida, passando a considerar os acontecimentos sob o ponto de vista espiritual, sem os limites terrificadores das nesgas materiais, que entorpecem o discernimento e rebelam a razão.
Naquela Casa encontraram um mundo novo, estranho: o da fraternidade, onde a esperança emoldura as almas de resignação e a caridade agiganta os seus felizes servidores. Tinham a impressão de que o grupo formava uma única família e os recém-chegados eram recebidos como membros queridos, ainda não conhecidos...
Sem a curiosidade perniciosa nem a indiscrição perturbadora, todos demonstravam amizade cordial e espontânea, entretecendo conversação agradável sem as cargas danosas das queixas e das reclamações com que se comprazem a ociosidade e a rebeldia.
Os que lhes conheciam o fardo de dores, narravam as próprias esperanças, os frutos das alegrias recolhidas, interessando-se em ajudar mediante a prece, as vibrações salutares e a intercessão cristã.
Mundo novo, sim, o da afeição pura e do entendimento cordial, que deve ser a colméia cristã em todo tempo e lugar.
O médium Joel, também sinceramente interessado, sempre que solicitado, com gentileza expunha opiniões, narrava experiências de formosas e consoladoras incursões mediúnicas de que fora partícipe, retirando valiosas conclusões doutrinárias que os animavam.
Dona Matilde Albuquerque, a benfeitora de Rosângela, fez-se amiga da sra. Santamaria, ampliando o círculo de relações da sofrida consóror por meio de cuja afeição recolhia preciosos estímulos e encorajamento para a porfia no esforço saneador.
Nesse clima ameno de confiança, trabalhavam os Instrutores amoráveis os sentimentos dos recém-conversos, de modo a predispôlos para os tentames de maior envergadura.
Nenhum regime de exceção, nenhuma precipitação.
Em qualquer processo obsessivo, é de efeito superior a renovação e a conscientização dos envolvidos, do que resultam os primeiros benefícios imediatos, que são: o despertamento para as responsabilidades do espírito, o amor desinteressado, o perdão indistinto e o desejo honesto da inadiável reparação aos danos causados... Encetado o esforço da melhoria de dentro para fora, mais fácil a liberação dos compromissos infelizes que engendram amargura e dor.
Por essa razão, nunca se devem desconsiderar as contribuições do estudo doutrinário, na terapêutica desobsessiva, não apenas por parte dos litigantes diretos como também do grupo familial, fortemente vinculado ao problema espiritual.
Sob a orientação do venerando Bezerra, foram programadas algumas sessões especiais de desobsessão para o “caso” Ester, sendo convidados a participarem das mesmas os progenitores, ao lado dos casais Sobreira, Albuquerque, dos médiuns Joel, Rosângela e mais dois colaboradores da Instituição.
Na noite escolhida, e pontualmente, à hora programada, todos os participantes compareceram ao recinto, devidamente preparados para o cometimento especial de alta importância para os sucessos em pauta.
Abertos os trabalhos, após a oração inicial proferida pelo Coronel Sobreira, destacado para a direção dos mesmos, que a enunciou com verdadeira unção, utilizando-se dos recursos psicofônicos de Rosângela, o Mentor adiantou algumas imprescindíveis orientações explicando quanto ao valor da cooperação de todos para o feliz desiderato do programa em curso.
Logo após, o médium Joel, servidor de vida ilibada, pela psicofonia inconsciente incorporou indigitada Entidade, que o convulsionava, espumejante. Tratava-se do obsessor de Ester que fora trazido por abnegados Auxiliares do Diretor Espiritual.
Justo esclarecer que a Entidade fora removida desde a véspera, sem que se desarticulassem os liames que a atavam à vítima... Simultaneamente, procedeu-se a imantação psíquica do desencarnado em sofrimento com o sensitivo programado para a terapêutica do esclarecimento.
Pela concentração profunda realizada pelo médium cônscio do seu ministério, e conduzido por Bezerra, o agressor tomou de assalto os recursos psicofônicos de Joel, que, de imediato se transfigurou, congestionando a face, modificando a postura... Dava a impressão de ser outra pessoa, como em verdade ocorria, tal a brusca dominação do hóspede incorporado.
Disciplinado, porém, quanto evangelizado, seu espírito lúcido continuava semidesdobrado, ao lado, entre os operosos Instrutores Desencarnados, presto para qualquer interferência premente ou necessária.
Agressivo, vulgar, estorcegando-se na aparelhagem mediúnica que o limitava, e furioso, blasonou o Espírito:
— Sou invencível! Ninguém me alcançará nem me deterá. Cobrarei lágrima por lágrima, desdita por desdita, e não saciarei minha sede de vingança. Tenho vertido pranto de lava sem qualquer refrigeração, e me encontro destroçado.
“Num infinito de tempo, reunia os frangalhos com que desejava recompor-me e via-os desfazer-se cem, mil vezes, sem cessar... Enlouquecia e acordava para novamente desvairar...
“E por quê? Porque fui traído... Chegou, porém, minha hora de vingança, que apenas começa.
E gemia, chorava, despejando a vasa do ódio cultivado em imprecações violentas, chocantes.
Entrementes era socorrido por energias vigorosas que lhe aplicávamos por orientação Superior.
Necessário aquele mergulho nas vibrações, no magnetismo da mediunidade com Jesus, balsamizante, confortadora.
Nesse comenos, o doutrinador com voz pausada, doce e enérgica, se dirigiu ao tresloucado Espírito:
— Falas que és infeliz, no entanto, infelicitas; que cobras, todavia, pagas; que persegues, mas te apresentas perseguido em ti mesmo...
— Quem me interrompe? — interferiu a Entidade. — Que tipo de cilada é esta?
— A cilada do amor. Aqui estás para que percebas a fraqueza das tuas forças e a força da Misericórdia e Justiça Divinas.
— Não me venha com falatórios. Estou informado desses falantes que se intrometem nos compromissos alheios, vestidos de cordeiros, e, entretanto, são lobos ladrões... Onde estou e que deseja de mim?
— Estás na Casa do Senhor da Vida e da Morte — esclareceu, inspirado, o médium-doutrinador — a quem cabe, verdadeiramente, deliberar sobre todas as coisas. Acreditas que te governas e és conduzido; referes-te aos teus planos e te equivocas, por precipitação. Crês-te vingador e fazes-te vítima da própria impulsividade, perturbando-te cada vez mais. Assim, aqui estás, porqüanto desejamos por vontade dEle, o Senhor Nosso, a tua paz e ventura, samaritanos que somos em Seu nome, a Seu serviço.
— Brincas? — retrucou, interrogando o Comunicante. — Não tenho senhor nem chefe. Sou livre para odiar e desforçar-me. Ninguém me controla nem me dirige... Chega de conversa, homem. Vou-me daqui.
Sem perturbar-se, guardando a mesma serenidade, o Diretor retrucou:
— Ninguém é livre, realmente, enquanto não se libera das paixões, que são os inimigos mais escravizadores que existem. Também não estamos brincando, conforme interroga o irmão. Com vidas não se joga...
— Irmão! — Voltou a inquirir, gargalhando, zombeteiro. —Devo ter sido colhido por um grupo de loucos mortos e trapaceiros, metidos a religiosos a fim de enganar-me. Nada feito: eu sou morto também, lutando contra vivos e vingando-me dos a quem eu irei matar...
— Enganas-te, novamente, meu irmão — adiu o interlocutor.
— Mortos estamos quando no corpo, e, vivos, se nos encontramos sem ele... Estás, sim, desencarnado, liberado para a vida, graças à desencarnação, também chamada morte. Não somos loucos, porqüanto enfermo estás tu, vítimado pela cegueira do ódio e os venenos da revolta, transformado em ladrão da paz alheia, acovardado na agressividade, porqüanto quem agride é fugitivo da coragem que ama e perdoa... Utilizas-te da ausência do corpo físico, embora lhe sofras, ainda, as exigências de que não te libertaste, para, invisível para a maioria das criaturas, perseguires e desgraçares... Somos religiosos, sim, seguidores de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Chefe e Guia...
Atentos às instruções do Orientador Espiritual, acercamo-nos do sofredor em desvario e aplicamos-lhe passes cuidadosos, anestesiantes.
A Entidade que fora acometida de grande surpresa, ao ouvir enunciado o nome de Jesus Cristo, recebeu a vibração mental que o acompanhava e lembrou-se, momentaneamente, do Crucificado. Pela mente aturdida, repassaram algumas impressões das óleo-gravuras que conhecera na Terra e estremeceu, receoso.
Com os recursos que lhe aplicáramos, experimentou rápido colapso da palavra, dos sentidos e, enquanto o Evangelizador falava sobre a grandeza do Cristo de Deus, impregnando o sofrido persegui-dor, este adormeceu e foi retirado, inconsciente.
Reincorporando o Mentor abnegado para complementar a reunião com instruções oportunas concernentes ao próximo labor, após a prece produzida em clima de júbilos e esperanças, foi a mesma encerrada sob eflúvios de energias saturadas de forças benéficas.
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DOUTRINAÇÃO E SURPRESAS
2º “Pelo fluído dos Espíritos, atuando diretamente e sem intermediário sobre um encarnado, seja para o curar ou acalmar um sofrimento, seja para provocar o sono sonambúlico espontâneo, seja para exercer sobre o indivíduo uma influência física ou moral qualquer. É o magnetismo espiritual, cuja qualidade está na razão direta das qualidades do Espírito”;
“A GÊNESE” — Capítulo 14º — Item 33.
Cada processo obsessivo, face aos fatores que o motivam, tem características especiais, embora genericamente sejam semelhantes. Há que se levar em conta as resistências morais do paciente, os hábitos salutares ou desregrados a que se submeteu, os títulos de enobrecimento ou vulgaridade que coletou, facultando-lhe recursos atenuantes ou agravantes à condição aflitiva.
Normalmente, alem dos implicados na demanda, Entidades ociosas ou perversas agrupam-se em volta do encarnado em desajuste, complicando-lhe a alienação. Quando se trata de Espíritos sequiosos de vingança e possuidores de largos recursos de concentração mental maléfica, fazem-se temidos até mesmo pelos que se lhes assemelham, batendo-os em retirada. Na generalidade, porém, o obsesso experimenta a constrição do seu perseguidor e a perturbação dos que lhe são afins ao problema por sintonia vibratória compreensível.
Iniciada a terapêutica desobsessiva de Ester, com o afastamento do seu algoz para a competente doutrinação, além dos efeitos diretos e colaterais da trama insidiosa, por ajustamentos cármicos, não podia a mesma apresentar-se de inopino restabelecida. Comensais da desordem e viciados desencarnados, que seriam atendidos em momento próprio, prosseguiam assediando-a... Além disso, a engrenagem mental demoradamente prejudicada pela interferência dos fluídos persistentes, deletérios, exigia tempo e tratamento especial para a reorganização. De qualquer forma, a poderosa carga de ódio que a molestava, contristora, diminuía de intensidade, graças à impossibilidade de mais direta influenciação do inimigo desalmado. Não se interromperam, porém, “in totum,” os vínculos que os estreitavam no programa regenerador.
Quando o Comunicante despertou da indução hipnótica e da assimilação dos fluídos, incontinente desejou ir ao Manicômio para a hospedagem psíquica vampirizadora. Assistido pelos dois Enfermeiros Espirituais destacados para o mister, para ele invisíveis, foi reconduzido ao sono, através de cuja terapia se reequilibrava emocionalmente, enquanto se aguardava o próximo serviço socorrista.
Não se pode amar a Deus sem que se sirva com abnegação ao próximo. Da mesma forma, qualquer incursão para ajudar o perturbado, sem a caridade para com o perturbador, redundaria improfícua senão perniciosa. Justo atender aos contendores sem preferencialismos, porqüanto, enfrentando o mesmo problema, ambos são desditosos. E o que aflige é sempre mais desventurado, em se considerando a ingestão do ódio que o desvaira hoje como o inapelável resgate que defrontará amanhã. Piedade, portanto, também, para os que infelicitam, perseguem, atormentam — não sabem o que fazem!
Seguindo a programação traçada para o problema em tela, no dia estabelecido para o novo serviço de assistência, os membros que constituíam o grupo especializado reuniram-se no Centro Espírita, como da vez anterior, conscientes da própria responsabilidade.
Podia-se notar-lhes a satisfação íntima transparente no semblante de todos, exteriorizando otimismo e confiança nos desígnios superiores como inalterável submissão aos resultados buscados, fossem quais fossem.
Procedida à leitura de uma página consoladora e entretecidos leves, agradáveis comentários sobre o texto, foi feita a prece de abertura, que dava início ao intercâmbio entre as duas esferas da vida.
Como fôra providenciado da vez anterior, o enfermo desencarnado foi trazido adredemente e, desde a véspera, quando o médium Joel, em desdobramento pelo sono, foi conduzido àquele recinto, cuidou-se da sua pré-imantação fluídica para o ministério em pauta. Com esse recurso valioso, procedia-se a um cuidado propiciatório a mais amplos e frutíferos resultados.
O caroável Bezerra, humilde e diligente, aprestara-se às providências indispensáveis. Ele próprio, profundo conhecedor das enfermidades obsessivas desde quando na roupagem carnal atendera a dezenas de subjugados e obsessos inúmeros, que lhe exigiram expressivas doações de paciência, sabedoria e amor, mediante cujos valores sempre colimava êxito nos tentames socorristas. Afeiçoado aos equivocados, por saber o que os aguardava, zelava pela enfermagem da noite destinada ao implacável antagonista de Ester, com o carinho de extremoso pai, sem, no entanto, os receios, o pieguismo ou a ansiedade dos que se demoram em estágio de infância espiritual.
Todas as atividades eram exercidas com extremada ordem, em esfera psíquica de salutar harmonia.
Tomando a instrumentação mediúnica de Rosângela, que manipulava com habilidade e delicadeza, após a saudação evangélica, expôs, compassivo:
— Aqui estamos sob a égide de Jesus para ajudar, pura e simplesmente. Candidatamo-nos a socorrer sem maiores ambições, pois que os resultados pertencem sempre ao Senhor, a Quem doamos, também, nossas vidas..
“Desse modo, recordemos o Mestre em Gadara ou Gerasa diante do obsidiado em desvalimento: nenhuma exprobração, nenhuma violência, vulgaridade alguma, sem acusação nem reproche. Examinou o drama de dor e sombra que os envolvia, auscultou os receios do perseguidor e as necessidades do perseguido, a ambos libertando, conforme suas condições interiores...
“Calmo e íntegro, superior e amoroso, infundiu respeito, concedeu oportunidade liberativa, amparou.
“Não desvalorizemos as excelentes possibilidades que Ele nos coloca ao alcance: oração, paciência, caridade... Permeando-nos desses poderes, serão dispensáveis a discussão, a agitação, a ofensa humilhante, a dura verdade para dobrar.
“Ninguém está lutando contra outrem a perseguir a própria vitória.
“Estamos exercitando vivência cristã fraternal e caridosa para com nós mesmos, através do auxílio ao próximo.”
Depois de breve silêncio, a fim de que todos pudéssemos absorver o tônico das suas palavras, obtemperou, concluindo:
— O irmão em tratamento representa o nosso passado, o que já fomos, e o porvir dos invigilantes, que ainda hoje não despertaram para as responsabilidades que lhes dizem respeito.
“Atendido como irmão, que não o seja apenas verbalmente, recebendo o afável tratamento que lhe devemos dispensar.
“Oremos e prossigamos!”
O milagre da palavra oportuna concitava-nos a refletir no conteúdo do verbete “irmão”, fácil de enunciar, difícil de, aplicando-o ao próximo, tê-lo em condição que tal.
Meditando nos conceitos expostos, verificávamos, mais uma vez, que o rude e frio, indigitado e agressivo adversário da débil moçoila e de seus pais, era somente o irmão doente da retaguarda, carecente de socorro quanto suas próprias vítimas atribuladas...
Dirigi o olhar aos genitores da obsidiada e ouvi-lhes o pensamento em prece contrita, a emoção em forma de lágrimas, o sentimento extravasando compaixão. por aquele que os martirizava, é certo, todavia, se convertera no motivo precioso do seu encontro com Jesus.
O médium Joel, profundamente concentrado afastou-se do corpo somático. Todo ele estava transformado numa usina de forças magnéticas de variado teor. Da região onde se situava a pineal ou epífise na sua forma física, vibrava um poderoso dínamo luminoso que irrigava todas as glândulas do sistema endócrino, ativando as supra-renais com energia fosforescente, que assumia fulgurações inimaginadas.
O cérebro transformara-se num fulcro iridescente de fortes tonalidades, enquanto o coração estimulado vitalizava todo o sistema circulatório, invadido por fluídos luminosos que eram ativados pelo centro cardíaco, em formosa coloração ouro-alaranjada. O caleidoscópio singular oferecia insuspeitada beleza aos nossos olhos fascinados.
O Instrutor, compreendendo nosso justo entusiasmo, informou-nos:
— A mediunidade com Jesus é ponte sublime por onde transitam as mais elevadas expressões do pensamento divino entre os homens. Fonte inexaurível de recursos transcendentes, flui e reflui exuberante, dessedentando, banhando de forças e de paz. Das suas nascentes superiores procedem a inspiração e o alento, as energias que sustentam nos momentos cruciantes do martírio e dos testemunhos sacrificiais.
“Pelo seu conduto falam os Céus aos homens, responde o Pai às súplicas vertidas na oração, a misericórdia balsamiza chagas e impele à santificação da Caridade.
“O apóstolo, o missionário, o santo de qualquer ministério e realização por ela conseguem os vislumbres e antevisões, os sonhos e os arroubos, as instruções e os apelos elevados que os impulsionam ao avanço, à realização, aos objetivos nobres, apesar dos motejadores, perturbadores e adversários que se lhes colocam à frente, ameaçadores...
“Médium de Deus, dignificou-a Jesus Cristo, elevando-a à sua mais sublime condição.
“Descuidada, porém, converte-se em furna de sombras e males incontáveis, que terminam por derrotar o mordomo leviano que a desrespeita. Ao abandono faz-se porta de acesso a alienações incontáveis e enfermidades fisiológicas de diagnose difícil.
“Percepção do espírito, através do perispírito nas suas tecelagens mui sutis, com as vibrações com que sintoniza, fazendo-se claro sol ou pesada noite nas paisagens da vida.
“Edificá-la com sacrifício e preservá-la dos ladrões, dos vícios de toda ordem que atraem as Entidades perniciosas, que a desnaturam e embrutecem, é obrigação do homem decidido, do cristão consciente.
“Joel é um exemplo da dedicação superior, da disciplina pelo trabalho e do estudo consciente do Espiritismo e das próprias limitações, condições que o tornam excelente instrumento para o intercâmbio, por despersonalismo, ausência de paixões dissolventes e de presunção...
“Ao bom trabalhador o seu salário compensativo...”
Silenciando, aproximou-se da Entidade e ajudou-a, inconsciente como se encontrava, no processo psicofônico. Ato contínuo, aplicou-lhe passes de dispersão fluídica com que a despertou.
Logo se fez lúcido, o Comunicante tentou erguer o médium numa atitude desesperada, e, sem dar-se conta do tempo transcorrido, investiu, furioso:
— Que você fez comigo? Não sou de dormir, pois o tempo é para mim precioso demais, para permitir-me desperdícios inecessários. Como dizia, enquanto me lampeje o ódio, nada de sermões...
Atendido pelo Benfeitor, que prosseguia aplicando-lhe recursos próprios para despertar-lhe as lembranças, aguçando-lhe a percepção, subitamente viu o grupo de companheiros encarnados. Sem entender exatamente o que ocorria, deblaterou:
— Onde estou? volto a perguntar. Quem são os senhores e o que querem de mim? São mortos ou vivos?
Sem trair-se por qualquer perturbação, o diretor respondeu:
— Estás numa sessão espírita... Como já te expliquei, ninguém morre. Estás sem o corpo, nós com ele. Como te aprouver, porém: fazemos parte dos vivos da Terra e tu dos chamados mortos, que prosseguem vivendo. Queremos ajudar-te..
— A mim? — tentou barafustar-se, como desejando libertar-se do diálogo. — Por que alguém iria querer ajudar-me? Não tenho amigos, não creio na bondade. Ora, desembuche sem rodeios.
— É o que estamos fazendo. Estás doente e desejamos auxiliar-te a curar-se.
Enquanto os esclarecimentos se sucediam, o Coronel Santamaria sintonizava com o Espírito sofredor, no afã de querer auxiliá-lo a esclarecer-se, a fim de salvar a própria filha. A mente em fixação alcançou a Entidade, que, relanceando o olhar fulgurante de ódio pelo recinto, fixou-o no respeitável militar, para logo explodir:
— É ele! Que faz aqui? Pensa em alcançar-me? Tarde, é muito tarde! Agora sou eu quem manda... Vingança, vingança, chegou a hora que eu esperava.
— Não sabemos a que ou a quem te referes — acentuou o orientador, com habilidade.
— Ele sabe! — apontou com o dedo em riste o Comunicante.
— Se ele não recorda, jamais me pude esquecer, eu que fui sua vítima. Por isso, agora, domino-lhe a filha. Farei que ele rasteje aos meus pés e suplique. Terei o prazer de negar-lho, devolvendo, sim, o cadáver da desgraçada, para então...
Dona Margarida, não afeita, ainda, a situação de tal natureza, começou a chorar. O Coronel, que não obstante o veemente desejo de acertar e sublimar-se, não pudera, compreensivelmente, alcançar a serenidade desejada, perturbou-se, descontrolando-se, intimamente, enquanto o Espírito blasonava:
— Odeio-o! Odeio-o! Meu Deus, quanto eu odeio este homem! Envelheceu, mudou um pouco, mas é o meu inimigo feroz. Odeio-o!
A vibração pestilencial do ódio, expelido em ondas sucessivas de baixo teor, impregnava a sala, tornando-a desagradável.
Inspirado, o Coronel Sobreira alvitrou:
- Oremos, mantendo nossa tranqüilidade. O doente mais grave exige maiores cuidados, urgente medidas de socorro, superior assistência. Preservemo-nos, amorosos e serenos, buscando...
- Doente, eu?! — reagiu, gargalhando —. Você é quem está louco. Odeio aquele homem e ele sabe porquê. Nunca o perdoarei. O mal que a mim e aos meus ele propiciou será cobrado lentamente. A morte seria para ele umas férias agradáveis... Eu lhe concederei o prazer do suplício demorado: ver ou não ver, sabendo, porém, que a filha morre a pouco e pouco em minhas mãos, enquanto lhe instilo ódio... Se quiser fugir pelo suicídio como já lhe sugeri, melhor para o meu programa... Verás, infeliz, como é bom suicidar.
E se ficar, dará no mesmo... Pensava que eu morri? Também eu não sabia o que aconteceu... Como demorou, até que eu tomasse conhecimento do ocorrido! Agora mudamos de posição. Eu sou a segurança, ele a incerteza; eu o trunfo, ele nada...
— Encontras-te equivocado, meu amigo. Se alguém aqui te prejudicou, não o fez conscientemente, ou se cometeu esse grave erro, agora está arrependido e suplica-te perdão. Observa que melhor é perdoar, do que rogar perdão. Nosso lema, aqui, é a Caridade, não havendo lugar para revides nem vingança. Sê tu quem ajude, por conheceres de perto o travo do sofrimento. Magoou-te o pai e desforras-te na filha? Onde o equilíbrio? Dás vingança e esqueces da injustiça que perpetras. Dizes-te vítima e veste-te de cobrador. Com qual direito? Nunca ouviste falar, por acaso, em Jesus Cristo, o Crucificado sem culpa? Assim retribuis ao seu sacrifício de amor numa Cruz de vergonha e infâmia, que Ele enobreceu? Estás mais doente do que supúnhamos, meu irmão. Ouve: Ester, tua vítima atual, não pertence ao pai, menos a ti. Todos pertencemos ao Pai Criador. Como responderás à pergunta divina, que um dia gritará na tua mente, como na simbologia bíblica: “Caim, que fizeste do teu irmão?” Para onde fugirás?
— Eu odeio, é tudo que posso dizer...
— Entretanto, isto não te justificará ante o Tribunal Divino, que impõe a Justiça. Pelo contrário, mais agravará a tua infeliz situação. Nossos erros são nossos cobradores. Mesmo quando esquecemos não os destruímos: eles reaparecem no momento próprio. Asserena-te e confia em Jesus. Responde-me: conheces Jesus?
— Sim, cheguei até a amá-lO na minha infância. Agora, porém, é tarde.
— Ninguém O ama e depois O abandona. A pessoa afasta-se dEle, enquanto Ele porfia esperando. Chama por Ele, reconcilia-te com o teu irmão, que supões adversário e recupera-te...
— Não posso! Não deixarei a filha, a fim de martirizar o pai.
— E afligir, também, à mãe? Que te fez a dorida mãezinha de Ester? Fita-a, sofrida, sem saber das tuas razões, nunca suficientes para tal crime. Como verias alguém que te destroçasse aquela que te aninhou no regaço com devoção e sofrimento?.
— Pare! Não me recorde minha mãe... Pelo que sofreu, por culpa dele, é que me vingo. Mamãe, mamãe! — desvairou, quase hebetado.
O Benfeitor, que o despertava para as lembranças felizes, recorreu aos passes magnéticos, a fim de tranqüilizá-lo, na desdita em que se desconcertava cada vez mais.
Adormecendo, recebeu o procedimento anterior, sendo retirado cuidadosamente.
Pelo médium Joel, o Diretor Espiritual teceu algumas úteis considerações e após a oração reconfortante, emocionada, a sessão foi concluída.
Logo após os companheiros comentaram, otimistas, o resultado do labor e, sob o olhar penetrante das estrelas brilhantes no céu sem nuvens, demandaram o lar.
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NOVOS ESCLARECIMENTOS
“Os Espíritos maus pululam em torno da Terra, em virtude da inf erioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja que eles desenvolvem faz parte dos flagelos com que a Humanidade se vê a braços neste mundo. A obsessão, como as enfermidades e todas as tribulações da vida, deve ser considerada prova ou expiação e como tal aceita.”
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 28º — Item 81.
O Coronel Santamaria, no entanto, experimentava insopitável depressão moral, ao concluir dos trabalhos.
Convidado com a esposa a um chá, no lar dos Sobreiras, não obstante o avançado da hora, aceitou o alvitre, tendo em vista poder confabular com o amigo em círculo mais reduzido, procurando esclarecimentos que se faziam urgentes.
Durante o trajeto quase todo feito em silêncio, os genitores de Ester, ensimesmados, repassavam as palavras do inimigo desencarnado, enquanto os amigos, que compreendiam a gravidade daquelas reflexões, respeitavam-lhes a quietude.
Chegados ao lar, as senhoras demandaram a intimidade da copa-cozinha a preparar o chá, enquanto os cavalheiros permaneceram na sala, esperando.
Foi o pai da enferma quem deu início à conversação:
— Não posso sopitar o desejo de ser leal para comigo mesmo, e para com você, explicando-lhe, que, só a custo, pude conter-me, durante os atrevidos argumentos daquele mentiroso.
O colega, que esperava o desabafo, deixou-o extravasar a mágoa, o estado de alma turbado.
— Ouvir alguém — prosseguiu, quase rancoroso, — na minha posição, agredir impunemente, desrespeitar e ameaçar a vida da minha filha e a minha própria, sem reagir, é demasiado esforço, mesmo para alguém de forte têmpera moral, qual a minha. Tive ímpetos de revidar, altercar e, quiçá, não sei mesmo o que.
— Como você constata — redarguiu, sereno, o colega — o entendimento fraterno e o perdão são virtudes mui difíceis de vidas. Compreendo, perfeitamente, sua inquietação e posso aquilatar se eu não teria reação idêntica, embora haja sofrido angústia equivalente, quando do problema de Giórgío, meu filho.
“Considere, no entanto, que ao seu pensamento contundente ele revidou, identificando-o, o que não conseguira antes, e mais aguçando a ira e a rebeldia.”
— É verdade — obtemperou o outro. — Todavia ele mente. Jamais feri alguém intencionalmente ou prejudiquei, pelo prazer de afligir e perseguir. Nunca fui homem capaz de atitudes vis.
— Bem o sei — retrucou, o anfitrião, gentil — Ocorre, porém, que o gravame é sempre visto de forma infeliz por quem padece a ofensa, mesmo quando não desejamos magoar. Nossos atos, nossa linha moral de conduta geram reações nos que não nos podem seguir ou compreender, que ignoramos. Enleiam-se, esses pobres, na revolta e passam a odiar-nos...
— E se somos inocentes do mal que nos atribuem — indagou, — deveremos sofrer-lhes a agressão, como conseqüência do que crêem ser injustiça?
— Claro que não.
— Então, e neste caso, por que nos persegue ele?
— Saberemos, com paciência saberemos. A precipitação é má conselheira e o orgulho ferido sempre obscurece a clara visão das coisas, do mundo, da realidade, da vida...
Enquanto aqueciam a água, as duas damas conversavam afavelmente.
Dona Mercedes confortava a amiga:
— Não veja no ofensor um inimigo. Examine a dificuldade pelo ponto de vista dele e se apiedará. Certamente, perturbado como está, não tem o conhecimento correto das coisas, crendo no que supõe exato... Experimenta, portanto, terrível distúrbio da mente e do sentimento. Parece-me muito positiva a revolta maceradora que exteriorizou com ferocidade.
— É, porém, odiento — interrompeu-a, a senhora Margarida. —Como destila veneno! Quantas ameaças e calúnias!
— Reserve-se serenidade, minha amiga. As coisas não são como parecem. Cada um conclui e age, conforme melhor lhe apraz. Considere: ao invés de doar-lhe a piedade que nos merece, você está magoada, vibrando mentalmente contra ele, em razão de ser-lhe vítima... Se, todavia, houver sido ele o ferido anteriormente, não pelo que diz, mas por motivos que ele próprio ignora? A atitude tomada está errada, é certo, mas a sua reação também não está correta. Melhor aguardar os resultados; não com a indiferença, pois isso não seria viável. As formas exatas de proceder são, ainda, a piedade e a oração pelo perseguidor, conforme ensinou Jesus. Demais, ele já está em tratamento, o que prenuncia melhora próxima, saúde futura com paz geral.
A mãe da obsessa, emocionada, meneou a cabeça afirmativamente e concluiu:
— Você tem razão. É verdade: só o amor resolve!...
— Então, sigamos à sala. Sirvamos o lanche.
Com a chegada das matronas, o Coronel Sobreira, desejando confortar o amigo e tranqüilizá-lo, definitivamente, expôs:
— Inocentes dos erros que nos atribuem, se experimentamos a injunção da dor, não significa isso um desequilíbrio das Leis.
Ocorre que uma cobrança, se não se refere a um débito próximo, torna-se haver quando pago, de uma dívida antiga... É provável que vocês nada tenham com o perseguidor de Ester, que lhe justifique a atitude. Aliás, nada escuda o homem, facultando-lhe desforço de qualquer natureza.
É possível, que, mediante a contenda e o ajuste com ele, se regularizem compromissos outros, faltosos, para com a Consciência Divina... Importante ressaltar que não é o que ou a quem devemos, mas o débito em si, que sempre constitui abuso e desconsideração para com a Realidade Superior que rege a Vida. Confiemos, então, em Deus e aguardemos Sua Sabedoria. Estamos hoje mais próximos da luz, do que ontem nos encontrávamos e melhor elucidados que antes. Quando sabemos a causa é mais fácil se evitarem os efeitos. E o inimigo conhecido é sempre menos perigoso do que o oculto.
Levantou-se, aplicou, delicado, uma palmada no ombro do amigo, convidando:
— Ao chá, antes que esfrie. Entreguemos nossas preocupações ao Senhor e confiemos.
O restante da visita transcorreu em agradável conversação, após o que os Santamarias demandaram o lar, algo renovados, otimistas.
Era o milagre da caridade da palavra gentil no momento próprio, do esclarecimento paciente.
Oportuno elucidar que o amorável Bezerra e nós outros acompanhamos os dois casais aos seus domicílios. Enquanto dialogavam, os Sobreiras eram teleguiados mentalmente pelo Instrutor, a fim de que a justeza dos conceitos propiciasse resultados positivos e lenificadores nos neófitos aprendizes da Doutrina Espírita.
O verbo edificante é combustível divino que gera renovação e força, plasmando construções superiores nos painéis mentais a materializar-se no mundo objetivo como realizações eficientes.
As considerações salutares e o estudo interessado das comunicações, após os trabalhos mediúnicos pelos membros da equipe, oferecem significativos resultados para todos. Devem-se analisar o conteúdo das informações, acrescentar elucidações aos pontos nebulosos, confabular, objetivando-se maior soma de benefícios. Médiuns e doutrinadores, mais facilmente, são convidados a aduzir impressões, emoções experimentadas, que visem a maior benefício para a melhora de técnicas, aprendizagem, correções necessárias.
Contando com a presença dos Benfeitores no recinto, o intercâmbio intuitivo para o aprimoramento de todos ensejará excelente contribuição que enriquecerá de experiências a equipe interessada, que mais sensível se fará ao controle dos Espíritos Superiores.
No sentido oposto, a conversação vulgar, o comentário ácido, os apontamentos irrelevantes perturbam a psicosfera em que se demoram por algum tempo as Entidades em tratamento, permitindo a quebra das defesas especiais e a invasão dos Espíritos infelizes a cuja convivência mental os membros do grupo se acostumaram, prosseguindo as inditosas obsessões de que não se desejam libertar.
O término de qualquer ministério de desobsessão, na esfera física, de maneira alguma encerra os serviços de socorro e enfermagem espiritual. Conveniente os lidadores encarnados cuidarem da preservação psíquica superior do recinto, quanto da própria, demorando-se em reflexões e conotações sadias, aplicando em si mesmos as lições ouvidas. Mesmo quando as comunicações hajam apresentado maior soma de sofredores, aos colaboradores terrenos compete a meditação quanto ao futuro que os aguarda, caso não se resolvam à vivência das atitudes enobrecedoras.
A programação especial de socorro a Ester e os envolvidos no caso previa dois encontros por semana para a desobsessão, em dias outros que facultassem a continuidade dos estudos doutrinários na Sociedade e a realização do Culto Evangélico no Lar, de forma a evitar-se perturbação ou acúmulo de tarefas.
Rosângela, a jovem médium que exercia a função de auxiliar de Enfermagem, na Casa de Saúde, proibida de aproximar-se da obsessa, nesse comenos pôde observar insinuante modificação no semblante antes hostil da paciente, e, durante o transcurso daquela semana, alguns sinais de ensímesmamento positivo, menos palidez facial, lenta e progressiva melhora.
Diminuída a assimilação contínua dos fluídos enfermiços, graças ao afastamento do irmão obsessor, o organismo passava a recobrar paulatino controle das suas funções.
Simultaneamente, no mesmo ínterim, Assistentes do sábio Instrutor auxiliavam a sofrida jovem, renovando-lhe as disposições, as defesas orgânicas e mentais.
Ao terceiro encontro para a assistência especializada, antes de os participantes se adentrarem no recinto da desobsessão, Rosângela brindou os Santamarias com as notícias auspiciosas das suas observações, animando-os, amorosamente.
Dominada pelo júbilo momentâneo, dona Margarida abraçou-a e beijou-lhe a testa, maternal.
— Como poderemos agradecer a Deus as bênçãos que ora recolhemos sem merecer? — interrogou, num arroubo espontâneo.
— Amando e servindo, como vêm fazendo — respondeu a médium, sensibilizada.
— O Pai não deseja a punição de nós outros, os pecadores, mas nosso arrependimento em forma de renovação e ação valiosa a proveito nosso e dos demais.
O relógio anunciou as 19:30 que indicavam o momento de iniciar-se a preparação para os serviços da Caridade.
Todo o grupo penetrou na sala reservada ao ministério mediúnico com gravidade, em silêncio.
Operosos, diligentes Mensageiros Espirituais, vinculados ao labor da noite, haviam acionado a aparelhagem promotora da assepsia psíquica ambiental, bem como dos cooperadores, porventura atingidos por alguma imprudência e por petardos venenosos atirados pelos adversários da paz.
Tudo eram harmonias, como das vezes passadas, em esfera de oração.
A leitura e conseqüentes comentários de “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, no capítulo 23º — Da obsessão — facultou valiosas lições, predispondo, favoravelmente, para o complexo quão importante ministério. Apontamentos proveitosos elucidavam o texto em perfeita consonância com a página evangélica logo depois meditada.
Após a prece assinalada pelo fervor do Coronel Sobreira, o Instrutor Bezerra, através de Rosângela, transmitiu as informações necessárias, convidando a acurada oração e concentração harmônica, dirigidas ao enfermo espiritual.
O perseguidor, em hibernação, graças ao sono provocado por indução sugestiva, de quando em quando se agitava, presa das imagens mentais danosas de que se alimentava intimamente.
O carinho que lhe era dispensado pelos Enfermeiros Desencarnados acalmava-o, inspirando compaixão e socorro no desvario a que se entregava.
Desperto pela interferência do Mentor, este se lhe fez visível, provocando inesperada emoção.
— Anjo venerando! — exclamou — eu sei que há anjos bons, como há os demônios que nos escravizam! Tenho sido vítima de demorado desgosto e fui encaminhado por nobre conselheiro da Justiça a proceder à cobrança própria.
Relanceando o olhar pela sala, indicou o Coronel Santamaria e completou:
— Aquele homem infelicitou-me, destruindo, quase, os seres mais queridos que possuo. Não satisfeito, persegue-me e aqui estou conduzido por estranha força que o ajuda. Rogo socorro e proteção...
- Sou teu irmão — esclareceu o nobre Espírito, — esforçando-me pela tua paz. Como te utilizas de Ester para afligi-la, aqui te trouxemos para que te comuniques com o adversário e este se reabilite contigo, recorrendo a outro médium, o nosso irmão Joel, por cujos condutos entretiveste os diálogos passados...
— Conheces o meu drama?
— Sim. Estou a par do engano doloroso que os junge uns aos outros, em arremetidas de insensatez e loucura. O mal é sempre pior para quem o cultiva, O teu conselheiro equivocou-se, conduzindo-te a grave erro. Falaremos sobre isso depois. Agora, ouve o que têm a dizer-te, e fala, apresenta o teu problema na condição de quem espera reparação e não como quem sucumbiu irremediavelmente.
“Não és mau. Ignorando a verdade, enfermaste. Não te é lícito prosseguir na corrida desenfreada para a desdita pessoal. Pára e refreia o desequilíbrio. É tempo. Vem, envolve o companheiro que te espera. Vê, aguarda-te ele com amor. Absorve-lhe as energias agradáveis.
Fala!
Observamos que o inditoso vingador, atraído pelo magnetismo do Guia, dulcificado por primeira vez, acercou-se do médium em profundo transe inconsciente e, envolvido pela aura e fluídos que se exteriorizavam do sensitivo, incorporou-o.
— Fala! — Repetiu o Mentor.
Quem seria o conselheiro da Justiça a que se reportara o sofredor? — pensava eu. Desejei interrogar o Amigo dileto. O momento, porém, não comportava outras informações. Aquietei-me, aguardando, aprendendo mais pela observação e pelo serviço ao próximo. Teria oportunidade de referir-me ao assunto.
Observei que os cooperadores encarnados, em recolhimento, pressentiam a magnitude daquele momento. Pairavam expectativas felizes e uma aragem suave penetrava-os agradável, balsâmica. O círculo, em oração, mantinha os elos da concentração em perfeita identidade, ligando-se uns aos outros por delicados filamentos luminosos, cujo teor vibratório atestava a potência mental e moral de cada.
O médium-doutrinador, auxiliado pela inspiração do Diretor Espiritual, em admirável fenômeno de clarividência, passou a registrar a cena que se desdobrava além da esfera física. Perfeitamente sintonizado com o labor que realizávamos, teve aguçados os sentidos, adquirindo consciência correta do abençoado esforço prestes a colimar no diálogo iluminativo.
— Ajuda-o com o teu amor — escutou na mente a voz do Instrutor falar-lhe. Mais amor do que palavras necessita ele. Atende-o!
— Sê bem-vindo, meu irmão! — saudou-o, sem interromper as ligações que o retinham em nossa esfera de ação.
Emulado pelo convite, o visitante, com hesitação e laconismo na voz, falou:
— Sou infeliz!
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REVELAÇÕES SURPREENDENTES
Pergunta: 280. “De que natureza são as relações entre os bons e os maus Espíritos?”
Resposta: “Os bons se ocupam em combater as más inclinações dos outros, a fim de ajudá-los a subir. É sua missão.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 6º.
Um frêmito percorreu os companheiros, colhidos pela surpresa.
- Quem se pode considerar ditoso, realmente ditoso, por enquanto? — retrucou, inspirado, o diretor. — Só os bem-aventurados que se doaram à felicidade dos outros podem fruir essa recompensa. Não nós.
— Eu, porém, sou infeliz, porque odeio e quero odiar, pois não sei outra coisa fazer.
— O ódio é desvio, não estrada; é o amor revoltado, não a saúde; é brasa viva queimando a quem o retém... Nenhuma ofensa merece a resposta do ódio, antes o revide pelo perdão. Odiar é do instinto, perdoar, da razão.
— Não por mim, que sou ignorante, fui enganado, sou um animal...
— Enganado, meu amigo, está quem ilude. Toda vítima, hoje ou mais tarde, é abençoada, não o algoz. Não te cremos um animal; não, no sentido que desejas dar à palavra.
— A vítima, porém, recorda o que sofreu, qual o animal que foi ferido...
— Porque te agrada sofrer. E como preferes não te libertares da doença para a paz da saúde, não será fácil ajudar-te.
— Pergunte-lhe — estertorou, quase a chorar, — pergunte-lhe se se recorda de mim.
— Claro que não recorda. Estamos em planos diferentes da vida. Ele não te vê, não sintoniza contigo, envolvido pela densidade da matéria. Ës desencarnado. Nem todos te podemos ver, embora muitos te possamos sentir e até sofrer-te, qual ocorre com Ester.
A voz do dirigente se encontrava impregnada de doçura e clareza, bondade e fé, vibrações que alcançavam o interlocutor de forma benéfica, apaziguadora.
— Embora não seja importante — continuou — não nos disseste, sequer, o nome. Como identificar-te? Aqui te recebemos na condição de irmão enfermo e isto nos basta para desejar auxiliar-te.
— Pois, bem, chamo-me Matias. Morri na guerra por ordem dele... Pergunte-lhe. Talvez não recorde. Quem lembraria de um reles soldado raso, infeliz? Fui, porém, seu ordenança, seu escravo (*) Chamavam-me “o baiano”... Ele era, então, capitão e dava a impressão que a guerra era dele... Estávamos na Itália... Era dezembro de 1944... O inverno cruel nos desgraçava em Monte Castelo... E a guerra em volta... Algumas batalhas haviam redundado em pesadas baixas para nossas forças... O dia 12 não chegou a raiar, tão frio, úmido, brumoso, de chuvas contínuas... As ordens eram para tomar a Cordilheira de Monte Castelo em anterior tentativa fracassada... Eu participara da última batalha e retornava ao combate... Então.
(*) Algumas informações apresentadas pela Entidade perturbada foram supressas, outras mereceram tratamento especial, por motivos óbvios. Algumas opiniões sobre o purgatório, inferno são decorrência do estado mental e da antiga confissão religiosa da mesma personagem.
Segundo dados oficiais, durante o período das hostilidades, que abrangeu de 16-09-1944 a 28-04-1945, a Força Expedicionária Brasileira experimentou, na Itália, a perda de 21 oficiais, 444 praças, com 2.722 feridos, 16 desaparecidos e 35 prisioneiros. (2ª Guerra Mundial)
O Espírito sofredor começou a deblaterar, dolorosamente.
O abnegado Bezerra, que o socorria carinhosamente, presto lhe aplicou recursos balsamizantes, de modo a auxiliá-lo no depoimento esclarecedor, ajudando-o a descarregar as energias negativas que o enlouqueciam.
Concentrados e observando o Espírito em deplorável desespero, podíamos acompanhar as cenas que lhe afloravam à mente e se condensavam em vigoroso processo ideoplástico.
Tão reais eram as evocações que Matias se retorcia na aparelhagem mediúnica, deformando a fisionomia do intermediário convulsionado e reexperimentando as dores cruciais do momento da partida...
O Coronel Sobreira, inspirado pelo Mentor, acercou-se do médium e acudiu Matias incorporado com o recurso da aplicação de passes magnéticos de longo curso com a função calmante...
Concomitantemente, falava-lhe, confortador:
— Guarda a calma, meu irmão, e conserva a confiança em Deus. Tudo já passou... As lembranças más se corporificam facilmente, tornando-se algoz impenitente... Asserena-te.
— Sofro, e o ódio me desarvora! — baldoou, agônico. — Agora ele se lembrará de mim.
Posso, ainda, refrescar-lhe a memória...
— Meu irmão — asseverou o doutrinador — a guerra passou há mais de quinze anos com todas as suas dores e te demoras nesse infeliz estado! Que tens feito do conhecimento da Imortalidade? Que necessidade há de vingar-te em alguém, a quem responsabilizas pela tua partida para o Mundo Espiritual? Desencarnação é fenômeno natural...
— Não comigo! — interrompeu-o, lancinante. — Ele matoume, empurrou-me para a morte... E não é tudo. O tratante traíume... Odeio-o, odeio-o!...
- Melhor repousares, meu irmão... O ódio é ácido destruidor!... Rearmoniza-te, agora. Procura acalmar-te. Isto passará...
A voz pausada, melódica, rítmica do Coronel Sobreira influenciado pelo Mentor, produzia indução calmante no atribulado perseguidor.
Utilizando-nos da mentalização ambiente, procuramos aumentar a nossa cooperação mediante a prece intercessória, enquanto o Instrutor sustentava o adversário de Ester, a fim de que se pudesse deslindar dos fortes laços da animosidade, revelando a trama da própria desdita.
Os irmãos Melquíades e Ângelo, adestrados na enfermagem psíquica, acercaram-se do casal Santamaria, tranqüilizando os angustiados genitores.
O Coronel recordava, revia os tumultuosos dias da Segunda Guerra Mundial, aquele rude dezembro e as duras batalhas... Não se lembraria de Matias não fosse a alcunha com que todos o identificavam: o baiano, considerando sua procedência..
“Que mal lhe fizera? — interrogava-se. — Nunca maltratara quem quer que fosse? Que lhe devia?”
Havia lágrimas que lhe refrescavam a face escaldante. Desde há muito vinha sopitando o desejo de chorar. No silêncio e calma que se fizeram de inopino deixou-se luarizar pelo pranto sem revolta. Sentia opressão angustiante no tórax.
Os mistérios da vida eram muitos, a colhê-lo, agora, em surpresas contínuas.
Afiançava-se a si mesmo que tudo ao alcance faria para apaziguar o irmão infeliz, recuperando a filhinha.
— Oh! Deus meu, piedade! — balbuciou, sem dominar a emoção.
A esposa carinhosa, igualmente vencida pelas circunstâncias, inspirada, porém, por Melquíades, segurou-lhe a destra, sustentando-o.
- Tenha calma! Confiemos, sim, em Deus! Ajudemos com a nossa oração contrita.
Pai Nosso...
A intervenção oportuna teve o feliz efeito desejado.
Enquanto isso, o doutrinador aplicava recursos através de passes no médium Joel, que continuava incorporado por Matias, estertorando, em ligeiras convulsões.
A fluídoterapia oportuna recompôs a Entidade, que, estimulada pelo afável Bezerra deu curso à narração dos infaustosos acontecimentos:
— Nunca morri de amores por ele, apesar disso sempre o servi com respeito... No íntimo experimentava surda antipatia que sufocava, considerando a sua posição de relevo.
Fez uma pausa, como a ordenar as lembranças tumultuadas na mente aturdida.
— Prossegue, meu irmão. — Estimulou-o o diretor. — Estamos interessados em conhecer toda a extensão do teu drama, para melhor ajuizar as tuas angústias e ajudar-te com mais segurança. Prossegue!
Sentindo-se menos desesperado, graças ao auxílio que recebia de ambos os planos da Vida, pigarreou, dando continuidade:
— Sempre acreditei em sonhos... Pois eu sonhara que ia morrer naquele dia. Dormira quase nada e, mesmo assim, me viera o aviso. Rezei, e dirigi-me ao capitão a pedir-lhe para ser colocado em qualquer serviço, menos ser mandado para a linha de fogo.
Expliquei-lhe o motivo. Ele zombou de mim, e gritou que todos estávamos ali para morrer... Esse era o nosso dever: dar a vida pela Pátria e aquela era a hora.
“É claro que eu compreendia mas... Sem saber como, eu lhe pedi um favor. Se eu morresse conforme eu acreditava que ia acontecer, eu lhe suplicava que ajudasse minha mãe e uma irmã, que deixara na minha terra... Ele me olhou sério e compreendeu a gravidade do meu pedido... Prometeu que o faria. Anotou meu número de identidade, o endereço da minha família... Foi um momento solene para mim...
Voltou a ser acometido pela asfixia, pelo desespero.
As amargas como as ditosas lembranças que se cultivam são transformadas em algemas ou asas para quem as vitaliza. Assim, Matias sofria a injunção das malévolas idéias do ódio e das recordações penosas que o ulceravam cada vez mais, sem lenir-se com a oração, a esperança ou o otimismo, em relação ao futuro.
O doutrinador atento, acudiu-o, concitando:
— Narra sem paixão, meu amigo. Recorda sem ódio. Experimenta expor com lealdade para rever melhor as ocorrências sucedidas. Não estás aqui a sós...
— Sim, o anjo bom me olha e concorda que eu fale...
“Pois bem: segui e tombei... Não há palavras para exprimir o que me aconteceu... Nunca soube realmente como foi... Era somente a zoada na cabeça, a dor, o sangue a jorrar, a agonia, o clarão e a morte... O clarão e a zoada... Perdia a consciência para acordar na mesma desgraçada situação... Gritava e outros gritos abafavam o meu... Segurava os pedaços do corpo que estourara... Não sei, não sei! Durou a eternidade..
“Um dia, — quando? — não sei quando, ouvi um choro e o meu nome sendo chamado... Tudo em mim eram dores e eu era frangalhos... Alguém me chamava com tanto desespero que me despertou, me arrastou. Subitamente, vi de joelhos minha mãe gritando por mim. Ninguém pode avaliar o que foi isso.
“Corri para ela, cambaleante. Respondi-lhe: estou vivo, mamãe, estou doente, mas não morri!... Ela não me ouvia... Eu a sacudi, então, gritei mais, desesperei-me... e nada. Ataquei os transeuntes para que lhe dissessem que eu estava vivo... Tudo inútil. Fiquei pior... Ela falava em pranto: “Oh! Senhor, se meu Matias fosse vivo nós não estaríamos nesta miséria: nem eu nem Josefa...
“Josefa era minha irmã. Onde andava? Notei que mamãe tornara-se uma sombra do que eu deixara, embora fosse ela mesma. E Josefa? Passei a deblaterar, na esperança de que ela me ouvisse.
Tudo isso na rua...
“O que aconteceu... foi superior à minha capacidade de entender... Não sabendo o que se passava comigo, já que eu estava vivo, senti-me arrastar por desconhecida força e deparei-me numa casa de cômodos, próxima ao cais do porto... Mulheres andrajosas, descabeladas, ferozes, brigavam e xingavam, numa desenfreada perdição... Era uma casa de pecado... Subi as escadas impelido por uma desesperada busca... Parei num quarto, que era mais um chiqueiro e dali, olhando o mar, estava minha irmã... Crescera... Mudara tanto! Dela, somente os olhos grandes, negros, tristes e os cabelos.
“Não podia ser... Às minhas dores se juntavam, agora, novos horrores... Ela chorava e devia estar pensando em mim... Eu sentia pelo coração que ela me chamava com saudade, com mágoa.
E tossia... Transparente e fraca, quase a desfalecer, deixava as lágrimas cairem... Aproximei-me, toquei-a, também, em pranto, sem forças... Ela estremeceu... chamei-a, chamei-a... Ela ficou com o olhar de louca, agitou-se, enquanto eu a chamava... Creio que me viu porque deu um grito e saiu a correr... O alvoroço tomou conta do lupanar infeliz. .. Então, minha irmã estava ali... Não suportei e desmaiei.
Matias chorava copiosas lágrimas, vertidas em lava do íntimo excruciado.
Estávamos comovidos. Toda dor inspira compreensão fraternal, piedade. As dilacerações selvagens, apesar da rudeza, produzem compreensíveis amarguras.
O doutrinador e a equipe de encarnados escutavam-no com simpatia, envolvendo-o em eflúvios de cordial e sincera compaixão que o reconfortavam.
Amparado, em clima de real estima, “o baiano” prosseguiu, narrando:
— O tempo era sempre sem fim. Quando despertei, lentamente, sem saber-me onde estava, as vagas recordações fizeram-me refletir...
O que eu sofria no corpo e na alma não tenho como dizer...
“Na balbúrdia em volta, dei-me conta de que uma chusma de desordeiros da mais baixa classe zombava de mim com doestos e gargalhadas ensurdecedoras.
“A duras penas, por eles descobri que morrera... Aquilo que eu sofria e ainda sofro era a morte... Que horror tomou conta de mim!
“Não foi fácil acostumar-me com a idéia... Encontrava-me como quem irá morrer e já fora vítima da morte... Você entende?”
— Claro, meu amigo — redargüiu, compreensivo, o Coronel Sobreira. — Quando vivemos para o corpo, temos muita dificuldade em deixá-lo. Nossos hábitos são nossa vida. .. Continua, porém, deixando que até à última gota se derrame o veneno que te vence, a fim de conheceres a madrugada que já te está raiando, em nome do dia novo de repouso e alegria.
— Na minha mente, — voltou a expor — procurava encontrar a ordem das coisas... Embora sofrendo a impiedade daqueles infelizes piores do que eu, porque eles não eram tementes a Deus, blasfemavam, enquanto eu estertorava, fui-me ajustando à idéia e compreendendo porque mamãe não me vira... E a fome, a sede que eu sofria? A morte não acaba com tudo?
“Com o tempo, — quanto tempo? — inteirei-me, naquela triste convivência, do que era morrer... e que ali estávamos no purgatório, a caminho do Inferno. Quem tivesse dívidas, que logo as cobrasse, até o momento em que viriam os Encapuçados selecionar os que podiam ficar e os que deviam partir para as mãos de Satanás.
“Muito vagarosamente consegui ordenar as lembranças... Nessa ocasião foi que me recordei do capitão... Teria morrido? Se minha família enfrentava tal penúria, certamente ele morrera, sem poder fazer nada... Meu pensamento se cravou nele... Onde andaria?.
como saber?... Atormentado, por essa dúvida, se ele estava morto ou vivo, o ódio me ia dominando. Se estivesse vivo ele me havia traído...
Houve uma pausa. A narrativa chegava ao seu ponto culminante.
Matias prosseguiu. A voz se alterara, a respiração voltara àdificuldade. O Mentor acolitava-o, socorrista.
— Num momento de ódio vigoroso, senti-me desvairar... Aos gritos e imprecações, desejando encontrá-lo, senti o mesmo ímã desconhecido arrastar-me e encontrei-me na sala rica onde ele, mais velho, forte, feliz, sorridente, exibia a filha.
“Agredi-o diversas vezes, sem que ele o percebesse... Havia, ali, outros mortos como eu e piores do que eu, misturados aos convidados...
“Quando a filha começou a tocar... Da idade de Josefa e tão diferente!... Aproximei-me e senti que ela me sentiu... Segurei-a e ela tremeu... Agarrei-lhe os braços e percebi que os seus ficaram nos meus braços... Entonteci-me e ela cambaleou... Pensei e ela atendeu... Levantei-a e caminhamos... Esbofeteei-o e enlouqueci de ódio, de vingança, de alegria, descobrindo-a louca comigo, misturados...
“Assim estamos, e assim seguiremos.
“Agora, pergunte-lhe se sabe quem sou eu?”
A Entidade, ofegante, no médium em agitação, parecia triunfante.
Bezerra entregou o controle psíquico de Matias ao irmão Ângelo e acionando os centros de captação dos Coronéis Santamaria e Sobreira, dirigia-os com vigor.
O doutrinador, tocado por toda a história, ripostou, sereno:
- O teu não é um drama isolado... A tragédia do Gólgota possuía um inocente, que perdoou...
Tu, que também és culpado de toda a ocorrência e dizes-te “temente a Deus”, no entanto, te alegras promovendo sofrimentos... O desespero do teu próximo acalma a tua agonia? A pobre Ester, enlouquecida, recupera Josefa, perdida? A angústia de dona Margarida diminui a pobreza de tua mãe? Não estás vingando-te, estás mais destruindo e destroçando os teus. Tu não amas a família, nunca a amaste...
A palavra bem posta e as interrogações oportunas desarmavam o vingador.
— Amo, sempre amei os meus — revidou, algo possesso.
— Quem ama auxilia na dor, não foge para cometer crimes e negar assistência. Será amor deixar a irmãzinha num prostíbulo, a fim de levar outra jovem ao Hospício? Que diferença há entre aquele que corrompeu Josefa e tu que infelicitas Ester?
— Eu faço justiça!
— Não confundas justiça com indignidade e covardia moral, atacando nas sombras. Se amasses, verdadeiramente aos teus, procurarias socorrê-los, deixando que Deus cuidasse dos demais, porqüanto Ele é o Pai Ünico de todos...
O Espírito começou a chorar diferente pranto.
Nesse instante, o diretor, dirigindo-se ao amigo, sob o telecomando do Instrutor, sugeriu:
— Deseja falar-lhe, Constâncio? Tem algo a dizer? Na Casa de Jesus todos se podem expressar, confiantes.
— Sim, — respondeu, com hesitação na voz, o Coronel Santamaria — eu gostaria de poder dizer quanto estou, também sofrendo. Sou réu, não de um crime conscientemente praticado... Recordo-me do... Matias, que serviu comigo... Jamais desejei trair, desconsiderar... Prometi-lhe fazer alguma coisa, caso ele não voltasse... Aqueles dias pareciam-me tão longe e, todavia, neste instante, muito próximos. Revejo, pela mente, o dia terrível, a vitória e as baixas, as novas lutas, a movimentação da tropa, as ansiedades e os receios.
“Veio a paz, meses depois... O retorno à Pátria, a readaptação, novas atividades e velhos compromissos... Fui traído pela memória... Meu Deus, oh! esqueci-me... Jamais... me lembrei...
Só, então, agora.
“Perdoa-me, tu, que tens tanto sofrido! Perdoa-me! Não agi por mal. Dá-me a oportunidade de reparar, antes da minha partida, tantos danos.”
A inesperada atitude do genitor de Ester infundia respeito. Todos nos encontrávamos na mesma elevada emoção.
Sua emotividade caracterizava elevação de propósitos.
— Não o perdoarei! — Redarguiu Matias.
— Tens razão em castigar-me, não a Ester. Transfere para mim a tua dava e alcança-me.
— Esta é a única forma. Sua filha Ester.
— Dá-me oportunidade, então, de ajudar Josefa e socorrer tua mãe. Tenho recursos, que para mim não são úteis e poderiam ampará-las.
— Ajudá-las? Como? O lobo auxiliar as ovelhas?
— Dize-me onde se encontram e irei vê-las. Narrarei tudo à tua mãezinha... Dela farei minha irmã e da tua irmã uma filha.
Não negocio a saúde de Ester com a reparação do mal. Sempre tenho procurado ser coerente comigo mesmo, digno nos meus atos. Quando me descubro em erro, não me envergonho de recuperar-me. Ajuda-me!
— Não creio no que você diz. Enganou-me uma vez. Por que não me iludiria novamente?
— Não te rogo liberdade para minha filha. Prossegue até quando Deus o permitir, porqüanto, até as “folhas que caem da árvore” representam a vontade dEle. Como hoje soa o meu dia, virá, também, o teu. Experimenta, Matias... Tu que sabes quanto macera a dor. Ajuda-me!
A grandeza da cena, o elevado desejo de reparação criava um magnetismo ambiente de alta vibração.
Após alguma reflexão, o Espírito indagou:
— Como fará?
— Tu me dirás em que cidade, em que rua, se possível, e eu cuidarei do restante.
— Veremos, então. Vivem na Cidade do Salvador, à rua... Os detalhes apresentados ensejavam maiores reflexões.
- Deus te pague! e perdoa-me, se possível... – Concluiu o Coronel Santamaria de voz embargada.
O doutrinador indagou:
Então?
— Não assumo qualquer compromisso... O problema é dele. Demais estou muito cansado...
- Tudo isto me faz padecer demasiadamente.
— Procura, então, repousar. Pensa em dormir... dormir...
Enquanto isso, atendendo ao alvitre do diretor espiritual, acorri a cooperar na indução hipnótica do comunicante, desligando-o com especial carinho dos liames que o prendiam ao médium Joel, em profundo transe inconsciente.
Ato contínuo, através da psicofonia de Rosângela, o sábio Instrutor procedeu às diretrizes finais, antes do encerramento dos trabalhos.
— Nosso irmão Matias — elucidou, após as palavras iniciais —acaba de entornar o gral miasmático de que se intoxicava com os venenos que absorvia e refertava o vaso.
— Como se faz necessário punçar o abscesso para drená-lo, restabelecendo a vitalização das células e evitando que apodreçam, indispensável que, em momentos próprios, se deixem que extravasem das infecções morais a purulência e a vasa pestilencial depositadas no espírito lúrido, vencido...
“Graças ao Senhor, iremos colimando resultados felizes: o esclarecimento com a paz do nosso irmão desditoso e o reequilíbrio mental com a saúde da nossa Ester.
“Seria de bom alvitre que nos mantivéssemos serenos, depois de encerradas as tarefas, demandando os lares em paz, demorando-nos em elucubrações superiores, a fim de prosseguirmos, logo mais, quando o sono físico os recolher ao refazimento orgânico, ensejando possibilidades outras.
“Evitemos ressentimentos para com o irmão doente, interrogações adiáveis ou ansiedades inoportunas...
“Jesus, meus amigos, nossa Fonte de Paz, facultar-nos-á concluir os deveres à hora própria.
A Ele nos devemos entregar, aguardando, pacientes, os resultados.”
Despediu-se o venerando amigo.
Incontinente, o Coronel Sobreira, mal sopitando a emoção de indefinível júbilo, humildemente orou com efusão de sentimentos, reconhecido, encerrando o edificante cometimento espiritual.
Enquanto formulava a prece, radiosa luz adentrou-se pelo recinto, procedente das Regiões Felizes. flocos delicados caíam suavemente, desfazendo-se ao contato com os corpos. As harmonias do ambiente repetiam as células do Cristianismo primitivo, nas noites inesquecíveis do intercâmbio espiritual que as sustentavam, quando visitadas pelos Embaixadores do Senhor, nos dias do testemunho...
20
INCURSÃO AO PASSADO
872. “A questão do livre arbítrio se pode resumir assim: O homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que seja arrastado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que sobrevenham, mas será sempre livre de agir ou não agir.”...
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 3ª — Capítulo 10º. - Comentário
Fomos incumbidos de acompanhar pessoalmente o Coronel Santamaría e senhora, cuidando de trazê-los de volta àquele recinto, à hora programada para a segunda fase das operações de socorro da noite.
Embora o silêncio a que se entregaram os cônjuges, eu podia acompanhar-lhes a evocação mental das cenas desenroladas minutos antes. Chegando ao lar, enquanto se serviam de lanche frugal, os esposos teceram considerações elevadas sobre os acontecimentos, conseguindo o pai de Ester traduzir a esperança e o júbilo que ora sucediam à angústia que dele se apossara em face das revelações de Matias. Agradecia a Deus a salutar oportunidade, prometendo empenhar-se quanto lhe permitissem as forças a fim de se reabilitar do doloroso drama, que ocasionara, sem o desejar.
Havia no lar, ora bafejado pelas saturações da prece constante e sob o contínuo das vibrações edificantes, decorrentes das leituras e comentários elevados, uma psicosfera superior, envolvente, que produzia bem-estar, diferindo expressivamente de quando fôramos ali por primeira vez.
Recolhendo-se ao leito, não sem antes lerem oportuna página mediúnica de excelente Obra que mantinham na mesa de cabeceira e orarem, paulatinamente adormeceram.
Ato contínuo providenciamos a recondução dos mesmos, em desdobramento parcial, pelo sono, à sede da Sociedade Espírita e os alojamos em local adredemente reservado.
Entidades amigas que cooperavam com o responsável pelas tarefas encontravam-se presentes, depois de terem conduzido outros membros da equipe.
A pouco e pouco chegaram os demais participantes da nobre realização.
Chamou-me a atenção a facilidade com que se movimentava o médium Joel e a alta lucidez que o possuía, em incontida alegria com a esposa desencarnada. Com simpatia o nubente terreno apresentou-nos a consorte que o auxiliava quanto lhe era permitido em realizações dessa natureza.
Cativou-nos a segurança do esposo e a confiança tranqüila da perene noiva... Aquilo traduzia o lenitivo que o amor coloca na ferida da saudade, mas, sobretudo, resultava do conhecimento da vida espiritual aplicado à vivência no cotidiano.
Sopitando o desejo de tecer considerações sobre como acompanhava a tarefa do marido, estando na Espiritualidade, vi-os dirigirem-se aos nossos companheiros, exteriorizando as justas alegrias que os possuíam.
À hora própria o benfeitor Bezerra de Menezes convidou-nos à observância do silêncio e da concentração, enquanto se afastava, convidando-nos a mim e ao irmão Melquíades.
Dirigimo-nos à Casa de Saúde, a fim de trazer Ester, cuja presença se fazia imprescindível àquele momento.
Graças às superiores possibilidades do Diretor espiritual, este prestamente desenovelou a paciente das densas malhas em que se enredava, nos fluídos orgânicos, conduzindo-a em espírito, dominada por sono profundo e reparador.
Os passes ministrados pelo irmão Melquíades, com regular freqüência, na enferma, desde que se iniciara a terapêutica desobsessiva, com o afastamento de Matias, retido em nosso círculo de atividades, produziam estimulantes resultados. Da agressividade e da apatia em que se alternavam os seus estados emocionais, passou à reflexão, com momentos de lucidez e discernimento que constituíam refrigério no tormento demorado em que sucumbia.
Lamentavelmente. o descaso a que fora relegada e diante da negligência que lhe era votada por pessoas irresponsáveis, não se davam conta, no Hospital, dos bonançosos sinais da recuperação.
A Rosângela, porém, interessada pela padecente, toda sintomatologia nova, abençoada, era observada e narrada com emoção estimulante aos pais, que registravam os efeitos benéficos com crescente entusiasmo.
Supõem muitos profissionais da Medicina e da Enfermagem que de outra terapêutica não dispõem, quando falham os recursos clássicos... Em razão disso, relegam os pacientes à própria sorte, deles cansados, procurando não perder tempo com os casos irrecuperáveis. Olvidam, no entanto, a terapia do amor, a psicoterapia do entendimento e da atenção.
Quando o dr. Pinel foi criticado por desejar libertar das correntes em que sofriam os loucos aos seus cuidados, em Bicêtre, em Paris, perguntaram-lhe, zombeteiros, os colegas:
— “Se não os puderes curar, que farás com eles?
— “Amá-los-ei” — respondeu, como sacerdote do espírito. —Farei sentirem-se criaturas humanas outra vez. Dar-lhes-ei atenção.”
Quando os métodos de qualquer mister, na Terra, estiverem sob a diretriz segura da técnica e o inspirador amparo, simultâneo dos braços de Jesus, muitos males serão evitados e frutos opimos recolhidos.
Chegando ao recinto da sessão especial, Ester foi colocada próxima aos pais, igualmente inconscientes, sob o amparo do sono salutar.
As atividades e cuidados para o cometimento já haviam sido iniciados. Aparelhagem especializada para a assepsia psíquica do ambiente fora posta a funcionar, fazendo-nos lembrar os aquecedores terrestres à base de resistências elétricas, que produziam ondas especiais de calor e simultaneamente lâmpadas de emissão infra-vermelha e ultravioleta diluíam as construções mentais imperantes, vibriões resultantes das ideoplastias habituais de alguns dos membros tanto do círculo como da enferma.
Percebi delicada aparelhagem de som e imagem que era utilizada nos dias de trabalhos normais de socorro aos desencarnados que se encarregava de projetar os diálogos e as atividades fora dos muros de defesa da Casa, por meio de projetores sonoros, com objetivo de despertar alguns transeuntes da artéria em que se localizava a Sociedade. À porta, atraídos pelo labor mediante os eficazes comentários, reuniam-se perturbadores e enfermos desencarnados, alguns dos quais não obstante a bulha reinante e os doestos dos mais empedernidos, se sensibilizavam, passando a meditar e ensejando possibilidades de serem recolhidos ao recinto para posterior tratamento.
O aparelho receptor de imagem dava conta de preciosas informações do diretor espiritual, não apenas dos acontecimentos de imediata importância como de valioso recurso utilizado para a diagnose de muitas enfermidades dos candidatos que solicitavam orientações particulares para a saúde. Concomitantemente, ensejava maior percepção da aura dos consulentes, de cujo estudo decorriam as orientações para o comportamento moral e as atividades mais compatíveis a desdobrar.
Engrenagens que faziam lembrar os secadores para cabelos, eram aplicados em operações de hipnose mais profunda, criando condicionamentos subliminais com a fixação de imagens positivas no inconsciente atormentado dos comunicantes em sofrimento, de modo a se transformarem essas induções ideoplásticas em vindouras edificações mentais, conseguidas com o esforço dos próprios pacientes, de verdadeiras sementes de vida, nas paisagens turbilhonadas das mentes em tratamento.
Pequenas caixas, umas para medir a intensidade vibratória dos Espíritos hospedados sob cuidados, outras para cotejo de resultados, para registros e impressões de dados, num complexo e emaranhado mecanismo de precisão e utilidade incontestável.
Não são os Espíritos operosos anjos detentores do conhecimento total e da total sabedoria. Evoluem adquirindo experiências que constituem conquistas que se incorporam ao patrimônio de que são detentores.
Na Esfera Espiritual procede-se à criação de sutis, delicadas e mui complexas elaborações para os elevados fins de progresso, e que muitos Missionários da evolução trazem à Terra, transformando em utilidades para os impulsos da técnica da civilização e do desenvolvimento das criaturas humanas.
Atendendo ao impositivo da hora, o Instrutor convocou-nos ao serviço de despertamento dos membros do grupo, ali reunidos, facultando a cada um a percepção ambiente relativa ao próprio estado psíquico e espiritual.
Cada mente, na condição de fixador e seletor de aptidões, somente permite ao espírito o que este cultiva e grava nas engrenagens do perispírito, conseguindo ligeiras conquistas que decorrem da Misericórdia de acréscimo de Nosso Pai, não se podendo permitirem maiores incursões por ausência de condições psíquicas e energias encarregadas de produzir-lhes o “peso específico” para movimentar-se ou permanecer nas diversas faixas vibratórias acima das densas correntes do corpo somático.
Assim, o homem é sempre o que pensa, porqüanto da fonte mental fluem os rios das realizações. As matrizes mentais demoradamente fixadas por viciações, desequilíbrios, não podem de inopino ser removidas ou alteradas, constituindo os fulcros da ideação e da vida, onde cada ser, encarnado ou desencarnado, habita... Da mesma forma ocorre com as aspirações superiores que fomentam a dispersão das forças densas e grosseiras que decorrem no mergulho do magnetismo da Terra mesmo, ensejando sintonia com mais nobres ondas de emissão espiritual, sutilizando o perispírito e liberando-o dos condicionamentos mais fortes do corpo físico que vitaliza e a que se vincula...
Podíamos perceber, desse modo, as diversas reações dos convidados. Alguns variavam desde a perplexidade ao medo, enquanto outros, à surpresa sucediam o júbilo e a emoção de identificarem o ambiente em que estavam, compreendendo, de pronto, as razões de ali se encontrarem.
Matias prosseguia dormindo, enquanto Ester não dava sinais de lucidez, atendida pelo enfermeiro Melquíades, prestimoso, ao seu lado.
A posição dos encarnados fora providenciada para a formação de um círculo quase fechado, à frente de cujas bordas se postava o incansável Bezerra.
O Cel. Sobreira encontrava-se próximo ao Benfeitor e regular-mente detentor de lucidez. Notava-se-lhe a condição espiritual de destaque no grupo, somente superada dentre os encarnados pelo médium Joel, que, adestrado e conscientizado pela fé e a dedicação incansável, granjeara superiores conquistas de que se utilizava para o ministério da caridade a que entregava a existência.
Obedecendo à austera disciplina no exercício de tais elevados misteres, o Diretor, com harmônica emissão de voz, exorou:
— Senhor Jesus!
“Aqui estamos, teus servos imperfeitos que reconhecemos ser, tentando o ministério da caridade fraternal, que nos ensinaste com o exemplo da renúncia e do sacrifício.
“Desinvestidos dos recursos que se fazem imprescindíveis para os relevantes labores, não dispomos da necessária capacidade para discernir e ajuizar com segurança, atender e agir como de desejar.
“Mais vinculados aos julgamentos humanos e às humanas reações, sentimo-nos impossibilitados de tomar as medidas melhor acertadas e enunciar as palavras na condição de terapêutica santificadora.
“Ainda imantados pelos fluídos densos, faz-se tardo nosso raciocínio e vagarosa nossa ação. Em conseqüência, convidados a ajudar, conhecer mais para socorrer melhor, procedemos como crianças caprichosas que apenas desejam para agora, sem a responsabilidade de esperar, adiar, confiar e prosseguir inalteráveis, no árduo labor.
“Face a isso, recorremos à tua fonte de inexaurível bondade, suplicando inspiração e socorro, iluminação e caridade.
“Não nos encontramos, aqui, na posição de Espíritos Felizes ou Mensageiros da Verdade, que sabemos não sê-los, mas na condição de irmãos, igualmente necessitados, que, na dor alheia, identificamos a própria dor e na limitação imposta pela ignorância no próximo, descobrimos em nós as ausências de luz e sabedoria.
“Há, todavia, Amorável Amigo, o desejo sadio de lenir as exulcerações que nos são apresentadas, oferecer a tua claridade aos que tropeçam nas sombras e doar as mãos ao trabalho, para nos transformarmos em cireneus junto aos que desfalecem sob o peso da cruz que se impuseram por leviandade e loucura, teimando em desconhecer tuas santas lições.
“Enriquece-nos de amor a fim de que nosso verbo lenifique e encoraje, nossas energias despertem e vitalizem, nosso esforço conjugado se converta em elo de união contigo.
“Sê o Sábio Diretor desta realização que nos entregas a executar, nas condições de obreiros incipientes quais o somos, necessitados de segura condução.”
O Mentor, em atitude de indefinível emoção, adquirira tonalidades safirinas que lhe adornavam a beleza seráfica.
Experimentávamos a superioridade das vibrações que nos penetravam, fazendo-nos reflexionar sobre as nossas legítimas limitações e deficiências, num exame da grandeza da humildade e do poder da oração.
Transcorridos breves minutos passou a algumas considerações.
— Reunimo-nos, neste momento — elucidou, compassivo —, para estudar com maior profundidade o problema Ester-Matias, nossos irmãos em prova libertadora.
“Conforme ouvimos, há algumas horas atrás, o nosso Matias, sentindo-se desconsiderado pelo genitor da paciente e atribuindo-se direitos de desforço que realmente não pode exercer, ainda mais em considerando que a pseudo—ofensa de que se diz vítima e na qual inclui a mãezinha e irmã, em verdade é improcedente, dá-nos a idéia de que se fossem legítimas as acusações resgatava a filha o débito do pai...
“Caso isto ocorresse, defrontaríamos grave acontecimento a depor contra a justeza das leis do equilíbrio e a segura, insuspeita ação da Justiça Divina, nas ocorrências e engrenagens da vida.
“No processo que entreliga esses destinos na rude peleja, compete-nos aprofundar pesquisas, a fim de localizar a participação de Ester, no intrincado da sementeira do ódio, que ora frutifica em dor acerba.
“É óbvio que não nos encontramos estimulados pela curiosidade perniciosa, mas pela inspiração da verdade de modo a agir com acerto e socorrer com segurança.
“Alguns amigos dos irmãos envolvidos na trama dos imperiosos sucessos estão também enredados nos seus destinos, desde que através da abençoada família universal estamos cada dia atando ou desamarrando laços de compromissos e ajustamentos salvadores.
“Compreendamos o impositivo de cooperar com elevação de propósitos, esquecendo-nos do “eu”, dos problemas e conflitos habituais para melhor nos desincumbirmos da realização a que nos candidatamos.
“Que o Senhor nos auxilie e guarde!”
Os ouvintes encarnados denotavam natural apreensão, sem qualquer tormento ou receio que traduzisse insegurança.
Os genitores da paciente traziam compungida a face e estavam sinceramente comovidos.
O Coronel Sobreira, muito calmo, expressava grande confiança, refletida na face.
O médium Joel, assistido pela esposa, ao lado de Ester, localizada, também, junto ao Coronel Santamaria, exteriorizava perfeito equilíbrio, que transmitia à necessitada em repouso um como anestésico eficiente.
Os demais, surpresos, oravam em união de pensamento equilibrado, graças aos exercícios contínuos e à dedicação com que se apresentavam nos serviços da desobsessão, verdadeira escola disciplinante e iluminativa.
Imediatamente o Instrutor acercou-se de Matias e aplicou-lhe passes de longo curso, despertando-o para a realidade do momento.
A um sinal, antes convencionado, o irmão Melquíades teve o mesmo procedimento com Ester, que, mais lentamente, recobrou a lucidez mental, após despertar.
Encontrava-se menos aturdida do que da vez em que leváramos seus pais ao Manicômio, apresentando expressiva melhora. Compreensivelmente, a menor incidência constrangedora de Matias, em parte, afastado, produzia um desencharcamento dos fluídos venenosos e da telepatia perturbante que este conseguia, enviando-lhe contínuas mensagens de teor apavorante, destrutivo.
Depois de examinar em redor, procurando localizar-se, deparou com os pais, entregando-se ao Coronel Santamaria com expressões de contentamento e queixa, em que relatava o suplício no qual se debatia sem saída.
O emocionado militar olhou o Espírito Bezerra como a solicitar-lhe permissão para algumas palavras à filha, no que foi atendido com leve sorriso de aquiescência do Diretor vigilante.
— Confie em Deus, filhinha! — Exclamou, afável, o progenitor. — As dores de hoje prenunciam a liberdade de amanhã, da mesma forma que estas lágrimas retratam a prisão que erguemos no passado e nos empareda nos dias atuais.
— Mas estou louca, papai! — Retrucou a jovem com golorosa entonação de voz. — Sou um animal enjaulado... Nenhum amigo ao meu lado. Sem sol e sem esperança... Abandonada. Nem você, nem mamãe jamais me visitaram... Por que, papai?
— Loucos nos encontramos — respondeu com paciência —, quando ferimos e fazemos o mal... Esta atitude, sim, é de arrematada loucura. Quando, porém, sofremos de uma ou outra forma, nos encontramos liberando da alucinação. O desequilíbrio da mente é transitório, mas o da alma é de demorado curso... Não se preocupe mais. Tudo se aclara já e logo mais, mercê de Deus, o problema estará solucionado, com a nossa conseqüente paz...
“Visitamo-la vezes muitas... Por orientação dos médicos evitamos acercar-nos de você, a fim de conceder-lhe o competente e calmante tratamento prescrito. .
— Eu queria saber — ia prosseguir Ester...
O pai, todavia, afagando-a, impôs-lhe silêncio, solicitando que se mantivesse em reservada atitude de observação, conclamando-a à oração.
Só nesse momento dei-me conta de que os conceitos vertidos pelo pai, obedeciam a telementalização dirigida por Bezerra.
Tudo deveria transcorrer sob cuidadoso controle, de modo a serem colimados os resultados superiores.
Ester retornou, incontinenti, aos cuidados do irmão Melquíades, que, telepaticamente, a acalmou com sugestões positivas, agradáveis.
Matias, ora desperto e ajudado pelo irmão Ãngelo, não dominando a surpresa, interrogou:
- Por que novamente me encontro encarcerado neste círculo? Não ficamos deliberados a aguardar o resultado das tentativas de reabilitação do Capitão? Por que devo enfrentá-lo outra vez?
Correu o olhar pelo grupo e, defrontando Ester, descontrolou-se:
— Que faz ela aqui? — bradou, encolerizando-se.
A jovem, ante o verdugo, estremeceu e começou a gritar, modificando-se-lhe o aspecto. A serenidade foi substituída pelo pavor e a tranqüilidade da face pela máscara de horror.
Como esperasse aquele acontecimento, o Diretor prosseguiu, sereno e concentrado.
Ester, embora seguramente controlada pela mente e pelas vibrações do irmão Melquíades, se ergueu, pela primeira vez, revelando-se agressiva.
Aproximou-se de Matias e, na alucinação que a surpreendera, prosseguiu, agora, colérica:
— Odeio-te, sim, odeio-te... (E gargalhou em estado lancinante).
O irmão Ângelo, cuidadoso, pôs-se a trabalhar na sede do centro cerebral de Matias, fazendo-o recuar no tempo, recordar-se, adentrar-se pelo passado.
— Lembro-me, agora, infame, traidor — objurgou a enferma. —Traíste-me e pagaste. Assim mesmo não te perdoei. Não se despreza uma mulher apaixonada, que possui dinheiro e posição.
Subitamente, Matias, como se conscientizando das diatribes, e recordando, revidou:
— Bem o sabia, infeliz. Odiava teu pai, mas sentia prazer em perseguir-te. Tudo está claro, megera..
— Meu pai!? — Inquiriu — Tu sabes que eu não tenho pai...
Matias ia revidar, porém, sob a diretriz mental do Instrutor, respondeu:
- Como eu não compreendi isto antes. Ë ele; é ele, sim, o infame! Olha-o diretamente.
Procura recordar... Mudou de aparência, no entanto, é o teu mísero amante, o odiento executor das tuas malfadadas ordens. Qual o pior dos dois: o mandante ou o atuante? Que importa, porém! Os dois estão no mesmo barco, porque merecem as mesmas condições de pagamento.
“Irei desforrar-me. Nada de negociatas. Eu o antipatizava mesmo antes e não sabia porquê.”
— Sou eu quem se vai vingar... — estertorou, furiosa. Exploraste minha madureza, roubaste-me, deixando-me ao abandono, a fim de ires viver com outra... Nunca te permitiria. Mandei matar-te e o faria outra vez, porqüanto o meu ódio continua virgem...
— Tu, sim, estás sob o meu comando e irei eu matar-te..
Os contendores prosseguiam em ofensas recíprocas e acusações contínuas.
A surpresa de Ester, defrontando Matias, causou-lhe um choque que lhe libertou as lembranças guardadas no inconsciente, impelindo-a a reviver as atitudes inditosas dos dias agitados da última reencarnação na Terra...
Podíamos ajuizar, agora com firmeza, que- a jovem, débil e insana, inspiradora de compaixão, a padecer por um erro que o atual genitor houvera cometido, sofria necessariamente com justiça...
Entrementes encontrávamos nela mesma as matrizes propiciatórias às ligações para o reajuste pelas trilhas da obsessão. As tomadas por onde vertiam e se renovavam as ondas do ódio não aplacado facultavam que os “plugs” da raiva de Matias se conectassem com vigor, em perfeita sincronia com a antiga sicária, apesar da mudança na roupa física e da experiência nova, que ensejava aquisições para a ventura...
As mãos fortes da Lei alcançavam os infratores e os colocavam no cadinho da dor desde que se recusavam o sagrado cálice das libações do amor, sustentáculo do sacrifício e êmulo da abnegação, no qual nasce a renúncia que santifica, acrisolando.
“Feriste-vos, reciprocamente, e ambos sois culpados da própria amargura que sofreis. Recordar para revidar, porém, e agredir, mais complica, não resolvendo a disputa.
“Aqui viestes para recomeçar, ajustar, programar o futuro.
“O ontem vale pelas lições que encerra, pelo tributo que espera aproveitamento, na dor ou na edificação do bem, a que somos chamados cada dia para conduzir como bênção lenificadora.”
Enquanto falava com inflexão que não dava margem a contra-ditas, os enfermeiros impediam que os altercadores prosseguissem e ouvissem atentamente os conceitos preciosos.
O médium Joel aproximou-se de Ester, transfigurada em matrona portuguesa dos primeiros dias do século passado e sentou-a. Sem modificar a expressão psíquica na face impressa em ricto de soberba e ira incontidas, obedeceu. Joel repetiu a providência com Matias, que retratava no semblante traços de nobre beleza física no ardor da juventude, havendo dele desaparecido naquele momento os sinais deformantes motivadores da desencarnação na Segunda Guerra Mundial.
O poderoso vigor da mente, atuando nos tecidos plástico-modeladores do perispírito, ali estava perfeitamente demonstrado, através da transfiguração que o ódio — com sua força de fixação e atuação imediata — imprimia nos partícipes da trama redentora.
Prosseguindo, acentuou o humilde e nobre Orientador:
— Ninguém aqui se apresta para julgar, nem se candidata a perdoar ou condenar. Desnecessárias, portanto, as ácidas acusações mútuas.
“Permitimos a reminiscência das ocorrências entre Casimiro e Eduardina para solucionar as dificuldades vigentes em Matias e Ester... O passado deve constituir ponto de partida para o avanço, não local de retorno para o atraso...
“A vitória, realmente cabe a quem perdoa e ajuda, esquece o mal para fazer o bem, sepulta a mágoa para libertar a confiança. .
“Em vós se encontra, desse modo, a decisão da peleja, através da fórmula com que ireis elaborar os ingredientes das vossas vidas.
Atentai: o veículo da oportunidade passa e quem se obstina em perder o comboio atrasa-se e se perturba na estação em que se aloja, aguardando o próximo...
“Quem ruma às alturas aspira paz; quem se reserva às baixadas, atordoa-se nos espaços exíguos e úmidos, onde o sol não penetra.
Sem poder dominar a exaltação que o tomou, o Coronel Santa-maria passou do choro resignado à convulsão do desespero... De repente levou as mãos à cabeça, como se a mesma ardesse ou estivesse a estourar.
O Mentor aproximou-se, aplicou-lhe recursos magnéticos e propôs-lhe, amoroso:
— Recorde, meu filho! Quando encontramos Jesus, verdadeiramente, descobrimos a vida. Recorde, a fim de encontrar-se com a consciência e purificá-la no presente.
“Voltemos à cidade de Braga... Recuemos... Os últimos dias
do século XVIII... As notícias da revolução francesa... Braga, a
cidade-reduto da fé... A nobre cidade dos Braganças, originários da
antiga fortaleza de Guimarães... Recorde...
Houve um silêncio, somente interrompido pela voz pausada, segura, vibrante do Diretor Espiritual.
Todos nos concentramos em atitude de oração socorrista, confiantes.
Eduardina-Ester, com os olhos fora das órbitas cravou-os no Coronel Santamaria, enquanto Casimiro-Matias, demonstrando inquietação, agitava-se, receoso, como a pressentir desagradáveis ocorrências.
Face à sugestão, em processo regressivo da memória, uma transfiguração ocorreu no genitor da obsessa, modificando-lhe a aparência.
O rosto fez-se anguloso, com os zigomas salientes, os olhos algo desmesurados, o nariz aquilino, a pele macilenta, calvície pronunciada, suíssas e cavanhaque, boca prognata. Com o aspeto desagradável, grunhiu, fanhoso:
— Braga! Eterno santuário de Portugal, berço de cavaleiros, santos e nobres, louvada sejas!
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CRIMES OCULTOS
“O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e, assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou nas suas mais caras afeições. Nesse fato reside a causa da maioria dos casos de obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e possessão. O obsidiado e o possesso são, pois, quase sempre vítimas de uma vingança, cujo motivo se encontra em existência anterior, e à qual o que a sofre deu lugar pelo seu proceder. Deus o permite, para os punir do mal que a seu turno praticaram, ou, se tal não ocorreu, por haverem Faltado com a indulgência e a caridade, não perdoando.”...
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 10º — Item 6.
Diante da transformação operada no Coronel Santamaria, que reassumira a total aparência da última reencarnação, o Mentor providenciou a colocação de um aparelho muito parecido aos receptores de televisão da Terra, com aproximadamente quinze polegadas por dez, na face do vídeo, que de imediato, qual se estivesse acionado por desconhecida energia, passou a apresentar formosa cidade, colorida e movimentada.
Ato contínuo, o Mentor aproximou-se do agitado Coronel e sugeriu:
— Recorde mais. Lembre-se de Eduardina Rosa Montalvão do Alcantilado. Pense, mergulhe nas lembranças, Monsenhor Severo Augusto dos Mártires... Recorde...
À força da idéia plasmadora, a transmutação se fez presente em todos os detalhes.
A face macilenta apresentou-se sulcada e os lábios finos contraídos; os olhos se tornaram brilhantes, denunciando na vista direita um piscar nervoso que retorcia o lado correspondente da boca.
Sentando-se, apoiou a cabeça nas mãos e, concentrando-se, mergulhou em profundo transe.
As imagens mentais evocadas reviviam no receptor com a pujança de vida e cor da realidade.
O casario apresentado era antigo e barroco, de três andares com ruas tortuosas, lajeadas, surgindo entre colinas verdes, de pequeno porte, em que se destacavam, como agulhas negras de pedra burilada, as torres de inúmeras igrejas católicas.
Sombreando as ruas ladeiradas, velhos e amplos casarões com inúmeras portas e janelas, protegidas por sacadas de ferro em colorido esfuziante, com o verde-escuro em predominância.
O dia de sol e a movimentação na praça da Sé (velha) anunciava uma procissão. Na intimidade da igreja, que datava do século 14, a missa concelebrada por diversos sacerdotes e dignitários de alta estirpe do Clero chegava ao momento culminante.
A multidão atenta e contrita acompanhava os últimos cantos-corais, quando foi erguido o andor e iniciado o préstito.
Levantado o pálio, alguns membros da nobreza e o alto Clero iniciaram o desfile, enquanto o bispo, acolitado por jovens sacristães que lhe sustentavam o paramento bordado a ouro, erguia o ostensório, obrigando os devotos a se ajoelharem à passagem do cortejo.
Logo após, próximo e à frente do padroeiro da cidade, o Monsenhor Severo dos Mártires recitava litanias e jaculatórias.
Incenso abundante se transformava em fumo claro nos turíbulos de prata, agitados por rapagotes de alta ascendência familial.
Quando a procissão se acercou de formosa herdade, que ocupava todo um quarteirão, ajoelhada ao portão principal com um séqüito de pagens, servas e aias, uma dama de avançados quarenta anos respondeu com aceno de cabeça à saudação do Monsenhor. Tratava-se da temida senhora Eduardina Rosa de Montalvão do Alcantilado.
O semblante contraído da mulher pareceu agradar ao velho sacerdote que sorriu, escarninho, entre os lábios finos e murchos.
Embora a decadência orgânica, ele ainda não ultrapassara os cinqüenta e dois anos. De temperamento forte, asceta, estava fulminado por mórbida paixão pela resoluta senhora, que ostentava pesado luto, a retratar-lhe a situação civil.
Cai a tarde. O sacerdote tem nas mãos pequeno papel dobrado, com lacre e o sinete de identidade. Abre-o e o lê com sofreguidão. Imediatamente toma a capa negra, atira-a aos ombros, coloca o chapéu de largas abas à cabeça e sai, agitado.
Alcança a mansão entre as sombras de velhas árvores e após acionar a campainha ruidosa deixa-se conduzir a uma câmara atapetada, com as janelas defendidas por pesadas cortinas.
A serva pede-lhe sentar-se enquanto sai a avisar a ama. Suave claridade azulada se derrama de um candeeiro de opalina sobre consolo de madeira trabalhada. O mais são as sombras da noite em vitória no céu piscando estrelas e o silêncio em volta.
Quando a porta, que se comunica à intimidade da casa, se abre, ele se ergue e oscula a destra que a viúva lhe distende.
Nota-se-lhe a arrogância e o asco. Ela se domina, porém.
— Vim, imediatamente, assim recebi o aviso — inicia ele a conversação.
— Não há muito de que falar, Eminência — retruca ela —Estou disposta a volver ao passado, tudo recomeçar e até mesmo a pedir-lhe perdão. Vejo que me enganei miseravelmente... Não agüento derrotas... Estou morta moralmente e, quiçá, físicamente, porqüanto não suportarei o ultraje... A não ser. .
— Que deseja que eu faça?
— Se me ama, conforme apregoa, que me lave a honra ultrajada.
— Como, assim?
— Vingando-me a ofensa que me espezinha. Como não ignora, não resisti aos encantos de dom Casimiro, razão das desinteligências havidas entre mim e Sua Eminência... Ele espoliou-me e agora, após despedaçar-me o coração com a crueldade das palavras viperinas, levando-me à humilhação, inclusive de suplicar-lhe que não me abandonasse, esbofeteou-me com duras verdades e desprezo... Odeio-o! Pagarei qualquer preço para alcançá-los.
— Alcançá-los? — Indagou, sem compreender.
— A ele e a quem mais?
— À minha sobrinha, Maria do Socorro...
— Que tem ela a ver com o caso, a pobre rapariga que mal desponta como mulher...
— Entregou-se a ele, traindo-me e desgraçando-se. Será mãe de hediondo rebento do canalha.
— Deus meu! Não será isto uma infâmia? Recorde-se dos castigos que recebem os caluniadores e injuriosos.
— Cale-se, sua Eminência e não me fale em pecado, castigo, penitência... Não a mim; não conosco que nos temos utilizado da Igreja para proveito próprio, para nossa própria desgraça... Em Deus eu creio... No resto, não sei, não sei.
— Não blasfeme!
— Sou sincera. Basta-me a hipocrisia de sentir ânsia de amar, como fazem os franceses, e viver aqui, perdida, fulminada pela ignorância, pelos preconceitos.
— Não me fale dos franceses, esses traidores de Deus, que há menos de um decênio, vândalos que são, usurparam e espoliaram a Igreja, expulsando sacerdotes e freiras, quando instituíram o 1º regime constituinte. E você sabe que Napoleão é inimigo da nossa Pátria...
— Deixemos essas questões e volvamos ao que interessa. Desejo vitória sobre os dois... Qual o preço a pagar?
O sacerdote se levantou, abriu a cortina e, voltando-se, bruscamente, encarou-a e grunhiu:
— Sua fidelidade a mim até a morte, pela morte dele, o desrespeitador.
— E ela?
— É sua sobrinha. Que deseja? Ela sabia do seu amor?
— É claro! Surpreendeu-nos algumas vezes e o tomou de mim com a sua juventude e louçania, que odeio.
— Sugiro, então, encarceramento num Convento de arrependidas... Que lhe parece?
— Aprovado!
Apertaram-se as mãos.
Tomando pequena garrafa de cristal e derramando-a em delicados cálices, sorveram precioso licor de fabricação especial.
O conciliábulo funesto selava os destinos para o futuro, em compromissos demorados de dor e sombra imprevisíveis.
Nesse momento Bezerra, que dirigia as lembranças do Coronel Santamaria, como o visse ofegante, recorreu aos passes de reequilíbrio e fez que cessassem as lembranças deixando-o, no entanto, despertar. Acercou-se de Matias e sugeriu:
— Recorde, Casimiro. Lembre-se de quando lhe chegou a precatória para apresentar-se ao Tribunal.
— Sim, sim, foi como aconteceu...
Revivendo as ocorrências pretéritas, passou a projetar no aparelho sensível as imagens retidas no inconsciente, enquanto se retorcia.
Leviano, que se utilizava da aparência para seduzir moçoilas trêfegas, chegara a Braga, procedente de Leiria, onde sua família possuía largos tratos de terras e título de nobreza.
O moço esbelto e belo viera à cidade para tentar a carreira eclesiástica, por lhe parecer rendosa e favorável à vasão dos pendores negativos que o dominavam.
Tornando-se invejado, até mesmo odiado pelos mestres, no Seminário, e não suportando as disciplinas, enfermara, conseguindo licença especial com posterior dispensa.
Nesse período, por solicitação da família, em Leiria, hospedara-se na residência da viúva do Alcantilado, conhecida dos seus, enquanto tratava a saúde afetada.
Datava de então a vinculação infeliz com a senhora.
Recusando-se com ela casar, conforme impunha a apaixonada amante, já lhe havendo seduzido a sobrinha, num desafogo sob pressão, narrou-lhe a verdade, ameaçando unir-se à jovem, por amor, a fim de “limpar-lhe o nome e honrar o filho. .
Depois de cenas lamentáveis, com a dama, preparava-se para transferir residência de retorno a Leiria, preferindo temporariamente agasalhar-se no lar de amigos antes da viagem, quando foi alcançado pela íntimação do Santo Ofício e encaminhado ao Tribunal, sendo incontinente encarcerado, para responder ao processo que se instaurava contra ele.
Era acusado de roubo, atitude indecorosa para com a Igreja, prostituição de menores, mediante sedução diabólica...
Por trás da acusação estava a interferência pertinaz, odienta de Monsenhor dos Mártires, detentor de grande prestígio na Comunidade civil e na Organização religiosa da cidade quanto do país.
Sofrendo julgamento arbitrário, sigiloso, as hábeis torturas reduziram-no a escombro humano, com decorrente morte prematura, antes de ser decretada a sentença.
Após a desencarnação, realizaram-se atos litúrgicos de absolvição dos seus pecados, a família foi consolada com condolências e promessas de vida eterna, passando o crime ao olvido.
Durante as evocações Casimiro alternava lágrimas com ameaças, desespero com promessas de vingança.
Despertado, sem que lhe fossem censuradas as recordações, permaneceu sob a custódia fraternal do enfermeiro desencarnado.
Aplicando o mesmo recurso nas recordações da viúva Eduardina Rosa, sua mente imprimiu o desforço contra a sobrinha, encaminhando-a a um Convento de religiosas, que cuidavam de jovens equivocadas e iludidas, como se encarregavam de ocultar o que muitos pais consideravam vergonha, vivendo essas inditosas jovens praticamente sepultadas entre as fortes paredes dos Monastérios-presídios, em que o desespero as alucinava e a revolta lhes marcava os espíritos por longos períodos, quando não o fazia por sucessivas reencarnações.
No Convento das Religiosas Reformadas de Nossa Senhora da Conceição, em Lisboa, fez-se mãe, não voltando a ver a filhinha, encaminhada a outra Confraria, que se dedicava aos órfãos e aos abandonados em vergonhosa roda, para impedir a identidade dos que os desprezavam.
Estavam, agora, reencarnadas: a filha órfã como a genitora de Matias e Maria do Socorro como sua atual irmã Josefa.
Na mente de Eduardina Rosa novas imagens se formavam, apresentando nobre dama que a acarinhava, do Mundo Espiritual... Recordando-se, tentava fixá-la melhor, enquanto balbuciava:
— Mamãe, mamãe! Por que não ficaste mais tempo comigo? Terias evitado as minhas insânias, tu que podias e exercias santa ascendência sobre mim?
Lágrimas abundantes eram vertidas pela viúva desequilibrada, a escorrerem pela face escaldante, de Ester.
Os cenários esmaeceram e os socorros aplicados trouxeram-na àatualidade.
Sob a inspiradora orientação do Diretor Espiritual, aplicaram-se passes com o objetivo de libertar as mentes dos envolvidos nos acontecimentos.
Em breves minutos, o Coronel Santamaria, Ester e Matias retomavam as aparências da jornada atual.
Dona Margarida, que permanecera serena, enquanto se operavam os fenômenos de regressão da memória, plasmando na tela do visor as imagens vivas do passado, comoveu-se, quando acompanhou o destino de Maria do Socorro, ao Convento, e o conseqüente abandono da criança... Entrementes, ao ouvir o apelo surdo e dorido de Eduardina, toda ela vibrou de superior emotividade, experimentando, no íntimo, uma força que a compelia a socorrer a sofrida possuidora de terras... Desejou falar-lhe com enternecimento, socorrê-la com carinho, alentá-la... Não se sentiu, porém, encorajada a fazê-lo. A hora, de alta gravidade, infundia equilíbrio e exigia cooperação. Percebia o valor da vigilância e se reservara paciência e fé. Identificava-se, no entanto, com aquele ser maternal, recordado, descobrindo-se viva na lembrança de Eduardina, novamente sua genitora, na condição de Ester, de modo a com ela sorver a taça da amargura salvadora...
Esforçar-se-ia para contribuir com eficiência no atendimento à atual família de Matias, recebendo aquelas que a impulsividade e insânia da filha expulsara do lar, arrojando-as ao desabrigo e à cela presidiária, no disfarce da religião, na condição de irmã bem-vinda e sobrinha do coração. Assim, Ester conviveria com a rival em clima de fraternidade e se recuperaria ao lado da anciã, tributando-lhe a ajuda que negara no passado, quando despontara pela porta da infância...
Arregimentava raciocínios e edificava o futuro sobre os alicerces do amor, sem dar-se conta que o sensível aparelho registrava as reflexões, acompanhadas por todos, inclusive por Matias, que surpreendido pela nobreza da estóica senhora, se comoveu, sem dominar a emotividade que lhe aflorava superior por primeira vez, nos últimos anos de angustiante desassossego.
O Mentor, que auscultava e seguia os elevados pensamentos da mãezinha de Ester, concitou-a à fixação desse programa santificante, conclamando-a ao ministério do amor indiscriminado, por ser este o local impessoal para o reequilíbrio e a paz.
Confirmou-lhe a identificação com a Senhora na existência passada e considerou a justeza das Leis, que reúnem os implicados nas tramas dos destinos, para que refaçam a vida, dispondo de todos os recursos, inclusive, das vinculações familiares, de modo que as dependências emocional, afetiva, física, econômica, criem os vínculos para o reajustamento e o perdão, na pauta da ascensão vitoriosa para Deus.
— Numa análise mais profunda — asseverou o Mentor —constataríamos que o mesmo grupo procede de outros tipos de experiências, que engendraram os reencontros nos quais fracassaram há pouco, infelizmente.
“Desarmados, naquela oportunidade, para o entendimento fraterno, capaz de transformar cupidez em renúncia, concupiscência em castidade moral, presunção em simplicidade, mergulharam nas águas turvas da desdita, utilizando-se da astúcia e do despudor, da vindita e da traição, com que agora são despertados para novas arremetidas, que devem conduzir com as ferramentas da mansuetude, da abnegação.
“Caminho longo todos deveremos percorrer, ainda, antes do encontro com a felicidade almejada. Nesse trilhar contínuo, iremos desfazendo os erros e gravames deixados à orla da estrada, simultaneamente semeando flores de alegria e plantando ações de beneficência, que nos servirão de fiadores para os propósitos acalentados de santificação. .
Fez uma oportuna pausa, que a todos ensejava maior apercebimento do conteúdo das lições há pouco aprendidas e das palavras que fixávamos para posterior reflexão.
Quem se pode considerar vitorioso, antes de lograr o último passo numa jornada? O porvir pode trazer surpresas não supostas, fracassos não previstos... Para os que estão reencarnados, cada minuto é desafio, no corpo. A advertência da “vigilância” implica em necessidade de cuidados contínuos. Um pensamento consolador, uma idéia deprimente, uma lembrança feliz, um apego que ressuma no instante da desencarnação marcam a aflição ou a serenidade, no ato da passagem de um para o outro estado da vida, influindo consideravelmente no comportamento do recém-chegado ao Mundo Espiritual.
Desespero ou harmonia se encontra ao alcance de quem a um ou outro melhor se afeiçoe, ou com o qual prefira afinizar-se.
Os demais circunstantes, com os espíritos visitados pela paz dos esclarecimentos, denotavam confiança no futuro e expressavam alegria sem ruído.
Retomando a palavra, o Diretor prosseguiu:
— Alguns dos irmãos aqui presentes, amanhã, despertarão recordando uma viagem a estranho país, lutando com fantasmas odientos e crueis... Outros terão as reminiscências de salutar encontro espiritual, onde se cuidaram de pessoas enfermas, em adiantado estado de alucinação... Uns lembrarão de socorros ministrados a Ester e Matias, com um pano de fundo confuso, em paisagem de imagens fugidias, imprecisas... Alguém crerá em pesadelo... Outrem suporá uma visão do paraíso...
“Todavia, estamos num mundo que interpenetra o sensorial, baliza de uma esfera com a outra, suave linha divisória entre os dois estados: físico e espiritual, na Terra mesma, nossa mãe, nossa escola de progresso.
Voltando-se para os membros do processo obsessivo de Ester, que se encontravam sob perfeito controle, graças ao labor dos Assistentes e Enfermeiros, complementou:
— Recordastes de que sois todos responsáveis uns pelos insucessos dos outros, incidindo na arregimentação da própria desventura. Dispensável que vos soliciteis perdão reciprocamente... Inadiável, porém, que vos ajudeis uns aos outros, conforme a sempre atual recomendação evangélica.
“A paz de Matias será decorrência da caridosa ajuda fraternal do Coronel Santamaria...
“Muito justo que o destruidor da esperança se converta em edificador da alegria...
“Ninguém fruirá, jamais, o júbilo que não soube, ou não quis outorgar, ou repartir com o irmão em pranto, nascido do desazo de quem o afligiu.
“A saúde total de Ester, sua recuperação dependerão da diretriz que vier imprimir à vida.
“Os males praticados cobram juros de esforço contínuo para anulação de danos... A mediunidade que lhe tem facultado perfeita sintonia com Matias poderá ela converter em ponte de misericórdia para resgatar os sofredores que se demoram na outra margem: a do desalento!.
“O que dividimos com o próximo, não diminui nossos recursos de amor, antes, multiplica-os.
A árvore que oferece ramagens para a enxertia multiplica-se, enquanto se reparte...
“Toda doação, pois, de sacrifício por alguém, mediante os tesouros da mediunidade edificante, representa conquista de inapreciável valor para a iluminação da consciência em crescimento.
“As irmãs Abigail e Josefa, genitora e irmã, respectivamente, do nosso Matias, serão o campo experimental para os propósitos que acalentamos.
“Esta é a batalha na qual não há vencido: todos saem triunfantes se lutam com as armas da caridade e do bem.
“Na Terra, os triunfadores, normalmente, brilham por pouco tempo, para logo depois tombarem sobre os que foram vencidos. Com Jesus, porém, os caídos nas refregas levantam-se como vitoriosos que a todos alçam às elevadas plataformas da ventura sem limite.
“Portanto, consideremos as próprias deficiências e entendamos-nos.”
Eu tinha a impressão de que cada um dos presentes fazia oportuna auto-análise, tal a vibração reinante, reafirmando-se propósitos superiores e prometendo-se esforços hercúleos pela preservação do equilíbrio e vivência da verdade.
Alguns encontravam-se comovidos, em atitude de profundo respeito.
- Logo depois continuou o amoroso amigo:
— Não encerramos aqui os nossos compromissos espontâneos de solidariedade fraterna”O LIVRO DOS MÉDIUNS”udam-se, tão-somente, os mecanismos e locais de ação, para o futuro...
“Prosseguiremos o labor em prol de nós mesmos, através dos nossos irmãos mais sofredores. Ajudados até aqui, estais convidados a ajudar.
“Confiai em Deus, abri-vos ao amor e ide unidos na direção do porto da fraternidade onde vos aguarda a embarcação da felicidade.
“Agora, oremos.”
O Mentor, com voz clara e comovida, agradeceu a Jesus e a Deus as concessões luminescentes da noite, enquanto dúlcidas vibrações de paz e esperança nos penetravam, transformadas em acordes suaves de uma melodia angélica, parecendo provir de muito longe, alcançando-nos a acústica da alma com musicalidade inesquecível.
22
COMENTÁRIOS OPORTUNOS
Pergunta: 410. “Dá-se também que, durante o sono, ou quando nos achamos apenas ligeiramente adormecidos, acodem-nos idéias que nos parecem excelentes e que se nos apagam da memória, apesar dos esforços que façamos para retê-las. Donde vêm essas idéias?”
Resposta: “Provêm da liberdade do Espírito que se emancipa e que, emancipado, goza de suas faculdades com maior amplitude. Também são, freqüentemente, conselhos que outros Espíritos dão.”
Pergunta: a) — “De que servem essas idéias e esses conselhos, desde que, pelos esquecer, não os podemos aproveitar?”
Resposta: “Essas idéias, em regra, mais dizem respeito ao mundo dos Espíritos do que ao mundo corpóreo. Pouco importa que comumente o Espírito as esqueça, quando unido ao corpo. Na ocasião oportuna, voltar-lhe-ão como inspiração de momento.”
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Parte 2ª — Capítulo 8º.
No dia seguinte, os membros do grupo que participaram da exitosa reunião, conforme previra o Instrutor, traduziam suas impressões de maneira diversa. Somente o médium Joel conservava lucidez quase total das ocorrência felizes.
O casal Santamaria não recordava detalhe algum, exceto de que participara de uma reunião, sem maiores contornos que traduzissem pontos de identificação com o trabalho desenvolvido. Revelavam, no entanto, excelente disposição interior e um otimismo inusitado.
Dona Margarida, em conversação telefônica com a senhora Sobreira, narrara a leveza de que se sentia possuída, qual se lhe houvessem sido extraídas amargas impressões que a deprimiam, mesmo antes da enfermidade da filha.
O Coronel Sobreira, a seu turno, despertara animado por incomum satisfação. Cria haver dialogado com o venerando Bezerra e haurido preciosos informes sobre o tratamento da obsidiada. Não lograva coordenar os esclarecimentos, entretanto, algo estimulava-o. As imagens difusas na memória pareciam prestes a tomar contorno, e pronto diluíam-se...
Rosângela, por sua vez, acordou com a presença de Ester vigorosamente assinalada nas lembranças da véspera. Evocava-a com feição diferente da atual, e não obstante sabia tratar-se dela.
Chegando ao Hospital, foi incontinente ao Pavilhão em que a jovem se encontrava internada. Conseguiu da Enfermeira-Chefe aproximar-se da moça, que se mantinha no leito, em demorado cismar.
Saudando-a com cordialidade, a moçoila respondeu com breves palavras e apresentou os olhos grandes imersos em lágrimas.
Desaparecera a expressão de ferocidade e ela voltava a ser uma jovem assustada, arrojada a singular local, sem maiores explicações.
Rosângela perguntou-lhe, estimulando-a ao diálogo:
— Sente-se melhor, hoje, Ester? Note como o dia lá fora está claro. Não quer falar?
— Sim — contestou, receosa Sinto-me confusa, cansada... Tenho medo... Tudo isto me parece um pesadelo... Eu sairei daqui?
— É claro — confirmou a enfermeira, — muito em breve. Você está, realmente, melhor. Necessita cuidar-se, alimentar-se, a fim de alegrar seus pais.
— Tenho pais? — inquiriu, algo surpresa — Se tenho, porque não me visitam? Você os conhece? Eu só me lembro de um homem, desejando matar-me... Logo depois ele se transforma num mancebo muito belo, que luta com um padre perverso... Eles vão matar-me. Tenho medo... Acuda-me...
Ester, combalida pelas contínuas pelejas, com a mente abalada, esforçando-se por arregimentar lembranças, divagou, e, por momento, voltou a perder o contato com a realidade.
Rosângela buscou acalmá-la, sugerindo idéias agradáveis.
Não teve dúvidas: Ester recobrava a lucidez.
À noite, após a sessão de estudos doutrinários, no Centro, o Coronel Santamaria convidou o dr. Albuquerque, senhora e Rosângela, o casal Sobreira e o médium Joel a um lanche na sua residência, quando desejava ouvir os amigos, em torno dos planos delineados, a fim de dar-lhes conhecimento detalhado.
Não desejava equivocar-se outra vez. Desse modo, pretendia agir sem precipitação, porém com segurança.
Concluída a reunião e chegados ao lar dos Santamarias, ora acolhedor, depois do chá, o Coronel expôs:
— A reunião de ontem foi-me incomparável bênção de Deus. Em verdade, não há mistério de qualquer natureza, separando a vida da morte. Uma é continuação da outra, através de cuja ponte — a desencarnação — se transferem as aquisições e as perdas de um para outro lado, logo recambiadas para a futura viagem corporal.
“Consciente do que me cumpre fazer, necessariamente informado da localização de dona Abigail e Josefa, as familiares de Matias, pretendo visitar a Cidade do Salvador, numa tentativa de fazer alguma coisa por ambas.
“Minha esposa, a quem dei ciência do meu desejo, concorda plenamente com o plano. Como naquela Cidade disponho de excelentes amigos, não creio difícil encontrar as pessoas que buscarei. Não me ocorreu, porém, idéia de o que me compete fazer por elas.
“Posso ajudá-las monetariamente com algum recurso. Será isso o bastante?
“Orando, hoje, resolvi confiar na inspiração dos Bons Espíritos, face à decisão a tomar no momento próprio. Receio não ser bem compreendido e isto me aflige, como se fora uma conspiração contra os meus planos.”
— O essencial, meu amigo — reforçou o Coronel Sobreira —são os seus propósitos de amizade e cooperação. Os resultados, embora devam preocupar-nos, não nos podem afligir. Nesse sentido, a prescrição evangélica é clara: fazer o melhor da nossa parte.
— Tem razão! — acrescentou o médium Joeb— Forrados pelas intenções superiores, defendemo-nos das arremetidas negativas de qualquer procedência. O problema, a incompreensão que surja não nos deve quebrantar o entusiasmo ou arrojar-nos na faixa da desconfiança ou do desagrado.
“Naturalmente o seu gesto causará uma compreensível suspeita por parte da sofrida senhora e de sua filha, cujo clima em que vivem não é o da cortesia e da gentileza, exatamente.
“Parece-me que a honestidade que o caracteriza persuadi-las-á, mas não de imediato, o que considero perfeitamente normal. No caso delas, creio que eu agiria da mesma forma. Convém, todavia, que não vejamos apenas as possibilidades negativas que impliquem em insucesso da empresa.
“Além disso, o caro Coronel, como está informado, não agirá a sós. .
— Muito oportunas ambas ponderações. Sinto-me aliviado —concluiu o anfitrião com jovialidade.
Como o ambiente fosse propício e se fizesse muito descontraído, dona Margarida, dirigindo-se a Joel, indagou:
— Recorda-se o amigo das ocorrências da última noite? De minha parte, conforme confessei a Mercedes, somente ficaram uma sensação de paz, um alívio imenso, permanecendo comigo ao despertar. Poderia, o irmão, mais treinado em tarefas de tal magnitude, esclarecer-nos algo?
A interrogação da senhora recebeu apoio de todos, que se encontravam interessados em anotar apontamentos novos, adicionar esclarecimentos, preparar-se como conveniente para futuros cometimentos.
O abençoado servidor, procurando bem coordenar as idéias e vivamente inspirado pelo Benfeitor Bezerra, que participava espiritualmente do encontro, fez um resumo feliz, apresentando correlações nos fatos, aclarando pontos obscuros, narrando as malogradas experiências dos envolvidos na questão supliciante.
Ao concluir, ante o bom humor geral, Rosângela solícitou permissão para relatar seu encontro com Ester.
Os pais receberam a notícia com lágrimas de júbilo.
O médium Joel, traduzindo com fidelidade as palavras do dr. Bezerra, sugeriu que Ester fosse transferida do Frenocômio em que se encontrava para um Hospital em que pudesse receber assistência geral, ajudando-a no restabelecimento da saúde.
Quando o Coronel retornasse, após a viagem, sugeria o Emissário Espiritual, seria, então, oportuno trazê-la de volta ao lar definitivamente.
A medida, agora, providencial desintoxicá-la-ia dos fluídos deprimentes do local em que estava, quase sem medicação própria, e, simultaneamente, facultaria nova convivência, com a genitora, através de visitas contínuas, em reais, expressivos resultados para o seu estado geral.
As atividades espirituais a seu e a benefício de Matias prosseguiriam inalteradas.
A emoção incontida que se apossou dos genitores da enferma foi comovedora, generalizando-se.
O pai, com a voz embargada, exclamou:
- Louvado sejais, meu Deus! Raia, novamente, o sol em nossas vidas de sombras e de dor...
Já não esperávamos essa ventura, acostumados como nos encontrávamos ao rigor da Lei...
Não temos palavras para vos agradecer!
Joel, igualmente ditoso, porqüanto, ali, todos se irmanavam na conjugação do verbo ajudar, arrematou:
— Assevera nosso Benfeitor, que a Lei é, sim, de justiça, mas que a justiça de Nosso Pai se chama Amor.
— Oh! graças! — proferiram todos, conjuntamente.
Quando se dispersaram os companheiros encarnados, indaguei ao Orientador:
— Desde que os participantes da terapêutica do mergulho no passado não iriam guardar lembranças, por que a presença deles?
— Miranda, — respondeu, afável — nenhuma experiência, mesmo as não recordadas, se perde em nosso cabedal de aquisições pessoais. O importante, no caso, não é recordar o erro, mas dele libertar-se, expulsando o débito praticado dos painéis da alma.
“Os assuntos perniciosos que são sepultados sem a elucidação que os anula, ressurgem, quando menos se espera, em forma de ansiedade, frustração, receio ou insegurança.
“As impressões do ódio, quando sufocadas, por falta de oportunidade de serem diluídas no amor, geram enfermidades que afetam o corpo e a mente.
“Procedendo ao ressumar das lembranças, programamos uma psicoterapia de grupo — hoje utilizada na Terra por alguns de forma algo imprevidente — realizando uma catarse verbal, com que desarmamos as ciladas da ira e despindo as personagens da vindíta, cujos braços fortes são a traição e a sombra.
Após uma breve pausa, continuou:
Recordas-te de Jesus, na casa de Zaqueu, o rico cobrador de impostos?
- Sim — redargüi, atencioso.
— Pois, ali, — prosseguiu, calmo e seguro —. sabendo-se o anfitrião sem mérito para receber o Divino Amigo sob o seu teto, a primeira preocupação foi inquirir à massa que seguira o Senhor, se alguma vez prejudicara ou espoliara injustamente alguém. Se o fizera, estava disposto a ressarcir o dano várias vezes... Como o silêncio informasse que era detestado coletor de impostos, mas, não infelícitador do próximo, afirmou ao Mestre, que dividiria parte dos seus bens com os servos e auxiliares, em ação de graças por recebê-lo em sua casa. O Senhor, então, asseverou-lhe: “Zaqueu, a felicidade entrou hoje na tua casa”.
“A intenção inicial de Zaqueu, acusado pela consciência de ser avaro, era libertar-se dos remorsos íntimos e recompensar os que lhe foram vítimas.
“Assim, os atos são nossos benfeitores ou perseguidores cruéis. Imperioso libertar-nos do mal que existe dentro de nós, ao preço de honesta reabilitação.
“Fazendo nossos amigos recordarem-se das causas anteriores que os afligem hoje, propiciamos-lhes o ensejo de se enfrentarem, uns diante dos outros, sem ardilosidades nem desculpismo vulgar, aquilatando cada um a inutilidade de conduzir ácido e lodo nos depósitos da alma, queimando-se e manchando-se eles próprios inicialmente.
“A recordação total, no entanto, para alguns, na esfera física, não treinados para a vida nos dois planos, simultaneamente, constituiria aflição e distonia desnecessárias. Daí, a misericórdia do Senhor facultando-lhes o olvido.”
Era lógico, sem dúvida, o oportuno argumento.
Crianças espirituais, muitas pessoas propõem-se informações das coisas negativas, que passam depois a carregar, sem forças, como tormentos que poderiam ter evitado.
Enquanto se procedia à execução dos planos futuros com a famflia de Matias, este fora totalmente desvinculado do psiquismo de Ester e mantido em tratamento cuidadoso, de adaptação à nova fase, no próprio Centro Espírita, onde, igualmente, em caráter precário, se alojavam outros necessitados em processo de urgente recuperação.
23
ABIGAIL E JOSEFA
“Sendo livre o homem de agir num sentido ou noutro, seus atos lhe acarretam, e aos demais, conseqüências subordinadas ao que ele faz ou não. Há, pois, devidos à sua iniciativa, sucessos que forçosamente escapam à fatalidade e que não quebram a harmonia das leis universais, do mesmo modo que o avanço ou o atraso do ponteiro de um relógio não anula a lei do movimento sobre a qual se funda o mecanismo. Possível é, portanto, que Deus aceda a certos pedidos, sem perturbar a imutabilidade das leis que regem o conjunto, subordinada sempre essa anuência à sua vontade.”
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 27º — ~Item 6.
A orientação oferecida pelo Mentor, quanto à transferência de Ester para outro Hospital, foi acolhida com insopitável felicidade.
Como o dr. Ivan Albuquerque mantivesse estreito círculo de amigos médicos, sugeriu que a jovem fosse encaminhada a respeitável Casa de Repouso, recém-inaugurada, em local próximo à cidade, no bairro de Jacarepaguá e que tinha na direção excelente esculápio, verdadeiro sacerdote da Medicina.
Aceito o alvitre, o passo inicial foi apresentar o Coronel Santa-maria ao Dr. Armando Bittencourt, que ouviu os detalhes clínicos da paciente necessários para ajuizar o caso e encarregar-se pessoalmente da orientação especializada.
Espiritualista abnegado e conhecedor de veneráveis doutrinas, era crente afervorado na reencarnação, conhecendo os fundamentos das obsessões, que ora investigava com esmero e acuidade.
O agradável encontro, ensejou, en passant, entre o dr. Gilvan,
o Coronel Santamaria e o dr. Bittencourt considerações relevantes sobre o Espiritismo, criando elos de simpatias recíprocas.
Ficou constatado que Ester seria removida no dia imediato, para o que ficara reservado agradável apartamento, no andar térreo com ampla área próxima ao jardim e contígua ao pomar.
D. Margarida acompanharia a fflha, enquanto o esposo se deslocava à cidade do Salvador.
Era muito importante esse período de reajustamento psicológico e adaptação familial para a egressa do sombrio corredor da obsessão tormentosa.
Seguindo, ainda, instruções oportunas do benfeitor de Rosângela e por ele acolitado, o Coronel Santamaria dirigiu-se ao Frenocômio, expondo, com franqueza, ao diretor o ensejo de remover a filha, imediatamente, para outro local, por motivos que considerava imperiosos.
Obviamente, o diretor-clínico advertiu o genitor resoluto, expondo que não se responsabilizava pelos resultados da medida extemporânea, apresentando argumentos técnicos, que, de forma alguma, modificaram a decisão do Coronel.
Tomadas as providências compatíveis e regularizados os trâmites indispensáveis, a ficha de “alta” foi firmada. Tentando impedir futuras complicações, o pediatra dispôs-se a• assumir as responsabilidades do caso, ao lado do genitor da enferma.
Ficou, então, assentado, que, no dia seguinte, estes voltariam acompanhados da senhora Santamaria, a fim de providenciarem a transferência da jovem.
As horas foram passadas ao embalo das expectativas ditosas em relação ao futuro.
No dia imediato, à hora aprazada, os genitores de Ester e o abnegado médico, em sala especial, receberam a jovem convalescente.
A surpresa que dominou os pais foi dolorosa. Não obstante preparados para o momento grave, o estado de deperecimento da filha lacerou-os. Cambaleante, exaurida e revelando na face o longo cativeiro e o abandono que sofria, a moça parecia um escombro humano. Dir-se-ia que saía de um campo de extermínio, não de um Hospital...
Os pais abraçaram-na, enquanto esta foi acometida de um vágado, decorrente da debilidade e da emoção.
O dr. Ivan tranqüilizou os pais e, logo, a jovem recuperou parcialmente a lucidez, solícitou uma maca, transferindo-a para o veículo que os aguardava à porta.
Não recobrara totalmente a razão. Dava-se conta, porém, da ocorrência e identificava sem maiores expressões de discernimento os pais ansiosos ao seu lado. Supunha-se numa esfera penumbrosa de sonho que ruma para a claridade objetiva da realidade.
Balbuciava palavras inintelegíveis umas, desconexas outras, entremeadas de soluços e suspiros entrecortados.
Os pais acariciavam-na angustiados, animando-a:
— Tudo passou, filhinha querida. Coragem e confiança em Deus!
O olvido do passado para os viajores carnais ali estava demonstrando mais uma vez constituir bênção imensurável.
A Casa de Repouso, além da privilegiada situação em local bucólico, sem os ruídos do bulício fervilhante da cidade tumultuada, possuía pessoal selecionado e atencioso que cuidava dos enfermos, utilizando-se dos recursos oficiais da ciência bem como os generosos dotes do coração. Sabiam da eficiência em qualquer aplicação terapêutica dos recursos da paciência, da atenção, do amor.
Por sugestão do dr. Bittencourt, nos primeiros dias deveriam ser evitadas maiores emoções, sugerindo a técnica sonoterápica em tempo breve, de modo a ajudar o organismo seviciado pela demorada conjuntura.
A genitora poderia acompanhá-la, quando adviesse a lucidez, reeducando-a e reconduzindo-a com o carinho e a paciência indíspensáveis ao reingresso nas atividades do cotidiano. A providência sonoterápica e de curta duração teria caráter experimental.
Indubitavelmente, amenizando o fator cármico nos destinos da família vivamente interessada em recobrar a serenidade, os meios eficazes para a saúde se faziam promissores e apareciam, afortunados.
A paz bonançosa do Cristo visitava os endívidados em resgates mútuos, concitando-os à vitória final.
Logo pôde organizar o programa de viagem, o Coronel Santa-maria, sem qualquer protelamento, trasladou-se para a cidade do Salvador, onde o aguardavam amigos generosos e dedicados.
À chegada, entre sorrisos e evocações queridas, sem minudenciar as razões da viagem, fez questão de declinar a gentileza dos companheiros que lhe ofereciam o conforto do lar, preferindo as facilidades de movimento que lograria num Hotel, a que se recolheria.
Obsequiado com um almoço típico, no dia imediato procurou com gentil colega inteirar-se da situação de alguns familiares de pracinhas desencarnados na guerra, obtendo, a pouco e pouco, informações que o capacitaram a encontrar em afastado bairro da cidade a casa da genitora de Matias, conforme dados por ele mesmo fornecidos...
Dominado por compreensível emoção, aproximou-se da choupana pobre guindada em ladeira íngreme, não logrando encontrar a Sra. Abigail. Vizinhos prestimosos elucidaram que somente à noite ela retornava a casa, após os giros que dava pela cidade.
Sem atender a curiosidade ardilosa da vizinhança, o visitante procurou desviar o interesse, informando quanto à possibilidade de um retorno, e partiu.
Mais tarde, às vinte horas, regressou, com redobrada ansiedade. A senhora o aguardava, igualmente curiosa... Mandou-o entrar, algo aturdida, desculpando-se pela aparência do lar.
Deveria ter a mesma idade que ele. No entanto, macerada pelos maus tratos da vida, caminhava vergada como se carregasse fardo pesado às costas cansadas. A cabeça, quase branca, tez que fora de delicada cor morena, enrugada, assinalava profundos sulcos de dor e de desventura. O traje, humilde, como o lar, apresentavam esmerado asseio.
Instintivamente, recordou-se de Matias. Nos olhos da senhora triste revia os olhos do jovem que, servindo a Pátria, trabalhara sob suas ordens... Comoveu-se, desejando abraçar aquela pobre, solitária mulher.
“Quanta penúria teria sofrido, quantas humilhações deveria ter provado, durante os demorados anos de miséria e vergonha curtidos amargamente! Se ele o houvera sabido! — Pensava. — Quiçá no passado, antes do desencadear de todos os sucessos se lhe chegassem ao conhecimento os dramas daquele lar, não se comovesse! O orgulho cegava-o. Não defrontava nas ruas, humildes velhinhas cansadas, sobraçando problemas e tropeçando nos destroços de que se constituíam?
Que fizera até então, por qualquer delas? Fora um cego, sim. Agora, porém, felizmente, via.”
Tinha lágrimas, que não se encorajavam extravasar da comporta dos olhos.
Como o silêncio se alongasse, dona Abigail, algo tímida, interrompeu-lhe as reflexões, dizendo:
— Eu soube que o doutor esteve aqui, na parte da tarde. Aconteceu alguma coisa?
Havia hesitação na pergunta. Não se saberia dizer se era medo de ver-se envolvida em algum novo problema ou era a cautela natural que o sofrimento oferta aos que vivem com a dor.
— Não, não, desculpe-me! — Acudiu, pressuroso, respondendo.
— Não sou doutor, não, conforme a senhora pensa. Sou militar e conheci seu filho, que serviu comigo, na guerra... Por isso, venho aqui...
A expressão de espanto que se desenhou na face amargurada da mulher, logo se transformou em vertente de agonia.
Levou a mão ao coração, como desejando desatar a compressão que sentia e exclamou:
— Meu Deus, Senhor meu! O senhor conheceu meu filho Matias!?
E desatou a chorar. O pranto convulsivo, represado por largo período, espocou, volumoso.
Ela se desculpava e prosseguia, vencida.
O Coronel sabia o valor daquelas lágrimas. Conhecia-o de motu proprio. Deixou-a extravasar a angústia, a fim de prosseguir.
Bezerra e nós outros que o acompanhávamos no elevado desiderato participávamos, também, do encontro fraternal.
O Benfeitor, diante do desespero incontido da saudosa mãezinha, aplicou-lhe providencial recurso magnético, diminuindo-lhe a aflição e acalmando-a.
Nós outros orávamos, contritos, buscando criar e manter um ambiente favorável à consecução do programa espiritual, no qual estavam engajados aqueles espíritos em prova, lição para todos nós.
Cessada a tormenta, e inspirado, o Coronel explicou:
Ouça-me com calma. Depois pergunte-me o que quiser. Trata-se de uma história longa.
Não há, porém, pressa. Se a senhora não se estiver sentindo bem ou disposta, hoje, voltarei quando lhe convier. Necessito que me ouça, porém, com atenção e calma.
— Perdoe-me, senhor! Já estou melhor. São as saudades do meu filho... Ando um pouco atordoada ultimamente... Depois a presença do senhor... Sou toda ouvidos e que Nosso Senhor me dê o entendimento que me falta!
Historiando os acontecimentos já narrados, omitindo aqueles que poderiam afligir mais à senhora humilde, tais o estado de perturbação de Matias, a obsessão da filha, elucidou-a no que poderia constituir-lhe consolação e esperança, de modo a cumprir a promessa que fizera ao ordenança...
Explicou-lhe sobre a crença espírita que lhe dulcificava a alma e o veemente desejo de reparar o que considerava imperdoável esquecimento.
Por vezes emocionado, minuciou-lhe a razão por que aderira ao Consolador, graças à crucial enfermidade da filha, sem explicar, compreensivelmente, a causa do demorado infortúnio que era também o motivo da sua inabalável convicção religiosa atual. Expôs-lhe que Matias, comunicando-se, mediunicamente, relatara os sofrimentos dela e da irmã, fazendo-o, desse modo, recordar-se do compromisso que não tivera ocasião de regularizar.
A senhora o ouviu, paciente, em alguns momentos lacrimosa. Digna, escutava, e ele, nobre, narrava.
A confissão de alto porte, selava sagrada comunhão espiritual, enfatizando os deveres entre as criaturas, todas irmãs, conforme o ensino de Jesus.
Não lhe vinha trazer moedas, comprar a paz. Rogava-lhe ajuda, compreensão e bondade, a fim de socorrê-lo com a caridade de conceder-lhe a honra de tê-la como irmã..
Ao terminar, lívido e transpirado, após o comovedor processo de reabilitação, solícitou abraçá-la.
Muito embaraçada, dona Abigail agradeceu-lhe toda a gentileza e elevação.
Não compreendia bem pelo cérebro tudo que lhe fora narrado. Todavia, sentia, pelo coração.
A seu turno, confessou-lhe, também, a crença no Espiritismo...
A soma de dores atingira o clímax, quando a filha, perturbada, há quase quatro anos atrás, abandonou o lar e foi homiziar-se em reduto de degradação moral, onde a abandonaram, ali teimando continuar.
Houve um dia que supôs enlouquecer. Ajoelhou-se na via pública e gritou por Deus, desesperada, recordando que se o filho não houvesse desencarnado, talvez, lhe fossem evitados os sofrimentos amaríssimos que passava. Não saberia dizer quanto durou a desesperação. Sentiu a sensação de que o filho acudira aos seus apelos, no entanto, não conseguira qualquer luz para a perturbação que a arrojava em densas trevas...
Passado algum tempo, procurou o socorro de uma Casa Espírita que passou a constituir-lhe o último reduto para a esperança e a paz.
Pelos Benfeitores Espirituais foi informada que o filho sofria, no Além, necessitando das suas orações intercessórias e das suas lembranças, sem mágoas nem rancores... Que oportunamente seria libertado da situação em que se encontrava, podendo conversar com ela em radioso dia do abençoado futuro...
Naquele mesmo período, soubera pela filha, que tivera ocasião de vê-lo, deformado, aterrador, passando a defrontá-lo noutras oportunidades, o que lhe causava horror indescritível...
Fora informada que Josefa era médium. Não conseguira, apesar dos reiterados esforços, qualquer mudança de atitude na jovem, que, sem dúvida, era obsidiada por dominadores vampiros do sexo...
— Deus nos escutou, senhor Coronel! — arrematou dona Abigail. — Que fazermos, agora?
— Permita-me uma entrevista com Josefa — propôs, confiante.
— E se ela não aceitar? — interrogou, receosa.
— Nada perderemos. Hemos de encontrar uma outra solução. Demais, confiemos em Deus e façamos o melhor ao nosso alcance.
A hora seguia, vertiginosamente.
Chegara o momento da despedida. Nada de concreto se estabelecera, porém, estava lançada a ponte para o trânsito feliz, na direção da vitória.
— Já que somos espíritas — argumentou, solicitando a senhora — poderíamos encerrar esta noite orando... por Matias... por todos nós?...
— Com imenso prazer, senhora! — concordou o visitante.
E com as almas tocadas de elevada unção oraram, comovidos, agradecendo ao Senhor as dádivas e suplicando-Lhe inspiração para as providências que pretendiam tomar, nos dias próximos.
A choupana modesta saturou-se de fluídos superiores, em conseqüência da prece fervorosa.
Os Céus desceram à Terra, atendendo aos que confiavam em Deus.
O Coronel tomara a providência de deixar com dona Abigail Ventura um cartão com o nome do Hotel em que se encontrava. Receando um justificável problema, combinou retornar no dia imediato, à noite, no mesmo horário.
Quando se despediram, passava da meia-noite e o empíreo era um festival de estrelas, fitando o mar na distância, entre mistérios insondáveis, duradouro convite à meditação.
De volta, aspirando o ar benevolente da noite, em ônibus veloz, não pôde sopitar todas as reminiscências que lhe afloravam à mente, em caleidoscópio vertiginoso.
“Como a vida encerra caprichos e sutilezas estranhos! — refletia, num ensimesmamento. — Examinadas, agora, as dificuldades pareciam transpostas e as angústias uma dádiva de Deus para mais ampla visão dos objetivos da existência...
“Ele mudara expressivamente — reconhecia. — Ao homem rígido sucedera o coração afável que compreende e se comove. Não que se lhe modificasse a estrutura moral, mas se alterara a forma de considerar os valores. Transferindo as realidades para a vida espiritual, reformara compulsoriamente o mecanismo de exame dos conceitos humanos...
“Intimamente, sentia necessidade crescente de Deus, almejando maior identificação com a fé, de modo a honrá-la até com o sacrifício, se se fizesse mister.”
Estava sensibilizado. Pela tela mental anteviu os dias em que o Evangelho conseguiria triunfar nas criaturas humanas...
Chegara ao local em que se hospedava sem perceber o percurso vencido.
Buscou o leito, vivamente tocado pela grandeza do gesto que o reabilitava no próprio conceito e diante das sagradas Leis que ninguém burla indefinidamente.
Adormeceu, de imediato, consciência em paz e alma reconhecida.
Dona Abigail Ventura não conseguia, no entanto, encontrar-se, totalmente...
“O filho desencarnara — refletia no leito pobre, desprovido de qualquer conforto — fazia quase dezessete anos... Parecia, agora, ressuscitar do túmulo para trazer aos seus amargurados dias um convite ao júbilo.
“Tudo quanto ouvira parecia-lhe real e o senhor Coronel se lhe apresentava despido de todos os artifícios e impositivos mundanos, que ele conquistara a valiosos esforços.
“Chamara-a irmã, com tal naturalidade e elevação, que ela sentira a vibração pura do gesto.
“Vinha ele do passado, acreditava, sustentá-la no último alento pela caridade do Céu. Seria o socorro de que lhe falaram os Espíritos para a filhinha estremunhada e enferma da alma.”
Recordou-se das lições escutadas sobre a reencarnação, as “leis de causa e efeito” e, como estivesse cansada do serviço excrucial de doméstica, adormeceu, orando...
Bezerra de Menezes e nós, horas adentradas da madrugada, fomos ao local em que estagiava Josefa e lhe recolhemos o espírito aturdido, desembaraçando-a, em caráter parcial, dos densos fluídos da organização física.
Em sono profundo conduzimo-la ao lar da genitora, enquanto o Mentor e um novo auxiliar, o irmão Izidro, seguiram a buscar o Coronel Santamaria. Encarregava-me de atender a jovem em transe e sua mamãe, igualmente, ali retida.
Fui surpreendido pela amorosa presença de José Petitinga, que aumentava a equipe, trazendo o genitor de Ester, com o nosso Izidro...
Após nos abraçarmos, informou-nos que fora convidado pelo Diretor, em considerando ser dona Abigail militante em Casa Espírita que lhe recebia a cooperaçao.
Naquele instante adentraram-se o irmão Melquíades e Ester, a dormir suavemente.
Tudo estava organizado com esmerada meticulosidade.
No Mundo Espiritual são programadas as ocorrências boas ou infelizes que irromperão mais tarde, entre as criaturas, em conexões ditas casuais... Crimes, reabilitações, tragédias, sacrifícios são, inicialmente, concertados cá...
A sala estava referta com outras presenças de amigos de Josefa e dona Abigail interessados, por sua vez, na tranqüilidade de ambas.
Conjugavam-se esforços múltiplos para se colimarem os resultados felizes e gerais que todos anelávamos.
Não havia tempo, porém, para mais amplas informações.
O amorável Bezerra, colocando os participantes encarnados em volta da sala singela, visitada por ondas saturadas de perfume e adornada de fulgurações procedentes do nosso lado, convidou Petitinga à oração, depois de haver despertado os convidados...
A meiga voz do apóstolo baiano, exorando a Jesus e a Maria as dádivas do amor e da inspiração indispensáveis ao momento, tocou o cerne de todos nós.
Em seguida, o amigo generoso explicou:
“Filhos do coração!
“Encontramo-nos reunidos, a fim de abrirmos a alma ao Senhor, liberando-a das reminiscências amargas e dos ódios injustificados.
“O passado é algema para quem nele se fixa e asa de luz para quantos o transformam em experiência bendita.
“A aduana da consciência cobra as taxas dos erros de todos, mas não dispõe de direitos para alcançar a bagagem moral do próximo, exigindo tributos...
“Assim, examinemo-nos para acertar e ajudemos para que nos ajudem...
Fez uma parada, enquanto aguardava que as mentes assimilassem o conteúdo das palavras, predispondo-se para as informações posteriores. Logo depois, adiu:
— Monsenhor Severo Augusto dos Mártires, arrependido da defraudação sistemática aos postulados da fé abraçada, no pretérito, dá início à redenção, após as excruciantes dores que o vêm depurando, ao lado de Dona Eduardina Rosa de Montalvão do Alcantilado, de quem se fizera cúmplice em ardilosos crimes e que agora está corporificada em filha do coração.
“O amor que por ela nutria e o desgovernava, santifica-o hoje, mediante o desvelo e a ternura que lhe tem dado; inobstante, até há pouco encontrar-se a mesma encerrada num Hospício expiando parte das loucuras antes perpetradas. .
Quando Josefa escutou as últimas referências, foi acometida de um riso histérico passando ao desacato verbal.
— Quer dizer que Deus alcançou a infeliz? — interrogou, visivelmente transmudada.
Maria do Socorro volvia dos dias agitados do ontem para aquele momento. Chorava e detinha o pranto para gargalhar.
- Como me recordo. Tia infame e perversa! — Pôs-se a imprecar. — Roubou-me o amante e encarcerou-me, desterrando meu filho... Arrojou-me a uma “Casa de Deus”, na qual a revolta e o desespero fizeram-me odiá-lo... Nunca soube do ser que eu carregava comigo; nem sequer me deixaram vê-lo... Alegro-me por saber que ela paga... E Casimiro, onde se encontra... Diga-me, alguém...
Como o amo!
— Casimiro, filha — elucidou-a o venerando Benfeitor, — como tu mesma, retornou à Terra.
“Ouve: a Justiça de Deus não erra, nem tarda, manifesta-se, não conforme nosso agrado, porém no momento oportuno.
“Eduardina, conforme informei, ressurgiu no corpo de filha do Monsenhor dos Mártires; Casimiro envergou as roupagens físicas de Matias, teu irmão, a quem te apegavas e de quem recebias as santas carícias da fraternidade; tua filhinha, pois que fora uma menina o teu rebento, e que teve vida efêmera, volveu na condição de tua mãe, que ora por ti se sacrifica, qual tu mesma fizeste, a fim de conceder-lhe a bênção do corpo...
“Observa a justeza e a sabedoria das Leis Divinas...
“Nosso Matias, em momento de exacerbação, ergueu-se como vingador, cobrando a dona Eduardina o débito que lhe não cabe exigir... Graças, no entanto, a essa circunstância de que o Celeste Amor se utilizou, aqui estão os algozes oferecendo proteção às vítimas..
“Não lhes negues o teu concurso.
— Estou confusa — arremeteu Josefa. — No local a que me arrojaram, alimentei tanto desprezo pelo corpo e corrompi-me, mentalmente, de tal forma.
— Que agora transitas num lupanar de hediondez — concluiu o Instrutor. — Pobre filha! O corpo é sagrado patrimônio de que se há de respeitar e dar conta ao Criador.
- O amor, todavia, passará à tua porta, sob outro aspecto, porém. O desvario do sexo não aplaca a sede de quem aspira ao amor.
Aqueles que buscam na sofreguidão do corpo o lenitivo para a febre interior preferem não ignorar que o desespero mais produz ardência e desgaste, alucinando a razão.
“Estás presa a amarras obsessivas onde te demoras, tendo necessidade urgente de fugires, dali, hoje, amanhã, no mais tardar... Imediatamente.
“O Senhor, no entanto, enriqueceu-te com recursos psíquicos que te auxiliarão na escalada de luz, se te dispuseres à ascensão desde já... Ajudar-te-emos, em nome do Cristo Jesus, se te fizeres maleável à nossa voz...
“Atenta, agora, para a realidade do momento. A nossa Eduardina deseja falar-te.”
Ester, que se encontrava regularmente consciente, conduzida pelo irmão Melquíades, acercou-se de Josefa e, inspirada, abraçou-a. Ambas, desgastadas pelos diferentes rumos que tinham as existências, eram quase da mesma idade.
— Como te abandonei — propôs Ester — na condição de tia, invigilante e perdida, ajuda-me a amparar-nos como irmãs arrependidas, em recuperação... Dá-me a mão que desprezei... Eu estava louca e não sabia.
Josefa, igualmente sofrida, abraçou-a, redargüindo:
— Ajudemo-nos, sim! Ambas precisamos de paz!
Foi o momento de dona Abigail afagar as duas moças, teleguiada pelo Mentor e amparada por Petitinga, aduzindo:
— Nas águas claras do amor dilui-se o lodo pestilento do ódio, que se desintegra e desaparece. Louvado seja Deus!
O Benfeitor conduziu o Coronel Santamaria, que estreitou as três personagens em nobre gesto de carinho, informando:
— Rogarei a Deus tornar-me digno da reabilitação a que nos propomos todos. Tudo farei por ser fiel ao Pai, a vocês e à santa fé que me infunde vida e forças ao espírito calceta.
Tomadas as providências cabíveis e proferida a prece de júbilos foi encerrado o encontro, com a carinhosa recondução dos participantes aos seus compromissos habituais...
Amanhecera. A aurora, entre as nuvens ruborizadas de rosa, refletia-se sobre o mar imenso, transformado em espelho sem fim.
Um novo dia nascia com as dadivosas messes do amor de Nosso Pai.
24
DIA NOVO DE LUZ
“Quando diz: “Ide reconciliar-vos com o vosso irmão, antes de depordes a vossa oferenda no altar”, Jesus ensina que o sacrifício mais agradável ao Senhor é o que o homem faça do seu próprio ressentimento; que, antes de se apresentar para ser por ele perdoado, precisa o homem haver perdoado e reparado o agravo que tenha feito a algum de seus irmãos.”
“O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 10º — Item 8.
Josefa despertou após o sonho ditoso. Recordava-se com surpreendente nitidez da ocorrência espiritual. Aproximou-se da janela e através das persianas quebradas recebeu o influxo do dia de sol em convite irrecusável à vida. Lá fora estuavam a luz, os arvoredos, a movimentação do dia em começo. Voltou-se para trás: o quarto exíguo, nauseante, sombrio e abafado amargurou-a mais do que noutras vezes.
Sob as vibrações que haurira há pouco, foi acometida de súbito pavor pelo recinto, por si mesma e, qual se se encontrasse eletrizada por uma decisão superior, reuniu os escassos pertences em surrada valise, saindo, apressadamente...
Tremia como varas verdes. As pernas negaram-se, no entanto, ao avanço. Um terror dominou-a. Temia o desforço dos comparsas de ilusão.
É verdade que não devia coisa alguma à casa em que se hospedava na enxerga imunda — pensou.
Sentiu-se desvairar, antes de vencer os lanços da escadaria velha que a separava da portaria da liberdade.
A cabeça rodopiou e os comensais desencarnados da vampirização sexual tentaram agredi-la.
Bezerra e nós, que aguardávamos sua decisão, porqüanto, o livre-arbítrio é país sagrado de propriedade particular, vimo-la no claro-escuro do momento importante da sua existência planetária. Ruína ou vitória oscilavam naquele momento. Cercada pelos malfeitores que acolitava e escolhera por vontade própria, atônita, recordou-se do sonho novamente... Então começou a orar, apoiando-se, agitada, ao portal.
A prece ansiosa e confiante envolveu-a em vibrações diferentes. Apelava, comovida, necessitada.
Como nenhum pedido aos Céus se demora sem resposta, o Benfeitor aproximou-se, expulsou os parasitas espirituais, concentrou-se e falou-lhe enérgico:
— Vem! Jesus está aguardando por ti. Vem! Agora, ou só muito tarde...
Ela não registrou o chamado com os ouvidos carnais. Na acústica da alma, porém, a voz vigorosa dava-lhe forças.
— Valei-me, Mãe Santíssima! — rogou, com lágrimas. — Socorrei-me, Senhora!
daqui!
— Vem, filha! — Concitou-a, incisivo e carinhoso. — Saiamos
Cobrando alento, Josefa começou a descer a escada que rangia aos seus pés.
Ao passar pelo balcão de entrada, o vigilante indagou-lhe:
Para onde vais a esta hora?
— Embora! Adeus!
Acelerou o passo, tomou o primeiro coletivo e rumou para o lar materno.
Dona Abigail despertara, também, muito cedo. Embora não recordasse dos pormenores, tinha em mente o sonho agradável.
Antes das sete horas foi surpreendida pela presença de Josefa que lhe rogava proteção.
A genitora, supondo tratar-se de algum delito que a filha houvera praticado, afligiu-se, a princípio. Depois que esta lhe narrou o sonho — o de quanto recordava — e a decisão que a visitava, acalmou-se.
— Não posso ficar aqui, mamãe! — exclamou. — Virão buscar-me. Não podemos libertar-nos, assim, tão facilmente. Não somos pessoas, ali; somos coisas, objetos de uso... Que fazer, mamãe? Socorra-me! Tenho medo!
— Calma, filha! — Buscou tranqüilizá-la a genitora. — Tomemos café e conversemos. Afortunadamente, há muito que conversar. Deus existe, minha menina e Ele nos irá ajudar!
Alegre e nervosa, a senhora preparou o desjejum, enquanto Josefa a acompanhava, inquieta.
À mesa, a mãe narrou sucintamente, com a clareza possível, a visita do Coronel Santamaria, seu desejo de ajudá-las, suas esperanças...
— E ele sabe o que sou? — indagou a filha, apreensiva.
— Claro! Eu mesma falei-lhe. — Respondeu a mãe. — Não ficou surpreso ou chocado sequer. .. Creio que já o sabia.
— Quando voltará?
— À noite.
— Não poderei ficar aqui até à noite; não poderemos. Eles virão buscar-me e a agredirão.
— Iremos, então, ao Hotel e eu o chamarei. Antes passaremos no lar do irmão Teófilo, o presidente do Centro, a fim de ouvi-lo, e lhe pediremos ajuda.
— Boa idéia! Ele é um homem experiente e bom. Poderá ajudarnos, orientar-nos. Tudo isso é tão repentino! A visita desse senhor, o sonho... sem que eu soubesse de nada. Mamãe, há mesmo Espíritos? Os mortos voltam?
— Se há, minha filha! Você pode crer que a vida se acaba para sempre? Parece-lhe possível que sejamos, apenas, um corpo?
— Não, não. Perguntei, não sei porquê...
— Adiantemo-nos! Hoje será um longo dia. Ê domingo, o que nos fácilita. Aguarde-me lá em baixo, na rua, a fim de que os vizinhos não a vejam. Irei dar alguma instrução ao lado, para o caso de me procurarem. Melhor prevenir...
A senhora solícitou à bondade de uma amiga, que informasse a quem viesse procurá-la, que só voltaria no dia imediato. Pretendia viajar...
Seguiram, incontinente, na direção do lar de Teófilo.
De nossa parte, com o Mentor, acompanhamos a senhora Ventura e a filha, encorajando-as com pensamentos edificantes e otimistas.
O irmão Teófilo recebeu-as eufórico, conduzindo-as à conversação em sala reservada do domicílio. Era um homem septuagenário, cuja vida se transformara em viva lição de fé e amor. Os sofredores nele encontravam um irmão abnegado. Encarregado de parte da administração da Casa Espírita, seu exemplo constituía sua força.
Dona Abigail pormenorizou-lhe toda a ocorrência desde a véspera, auxiliada pela filha, na parte a esta referente.
O generoso velhinho escutou-as, enxugou os olhos e depois de refletir aconselhou-as paternal:
— Fiquem-se aqui. Irei eu ao Hotel, a convidar o senhor Coronel a que venha à nossa Casa. Desde que se trata de um confrade nosso, será recebido como irmão em nosso lar e, como irmão, nos relevará as faltas. Aqui, com calma, conversaremos, acertando os planos para o futuro, sob a inspiração dos nossos Guias Espirituais e de Nosso Senhor Jesus Cristo. Hotel não é lugar para determinados assuntos.
Sem permitir contestação, arrumou-se, deixou-as sob a assistência da esposa e dirigiu-se ao Hotel.
Encontrou o Coronel Santamaria que se dispunha a sair, pensando preencher as horas com um passeio pela orla marítima da cidade.
Identificando-se e antecipando os motivos que ali o conduziam, seu alvitre foi muito bem aceito pelo militar que o seguiu, entusiasmado.
O reencontro do Coronel com dona Abigail foi muito fraterno.
A jovem Josefa, embora desfeita, com o semblante cansado, traía irradiante simpatia, apesar do ar de constrangimento que lhe transparecia nas atitudes.
Inteirado de toda a ocorrência e louvando o acontecimento, o pai de Ester rogou licença para ser objetivo, sem mais necessidade de rodeios.
— Vim a Salvador — disse-o, de uma vez — pensando em levá-las comigo. Disponho de recursos suficientes para todos nós, no que minha esposa está plenamente concorde. Agora percebo que o Mundo Espiritual nos ajuda, em face da resolução de Josefa, que se deve prevenir, a distância, a fim de livrar-se de vinditas... Providenciaremos a viagem imediatamente, podendo seguir amanhã ou depois... Dona Abigail confiaria a casa ao nosso Sr. Teófilo. Se não se sentirem felizes, no meu lar, poderão residir noutro a minhas expensas ou retornar, mais tarde, quando a sanha dos exploradores de Josefa estiver passada. Enquanto isso, submetê-la-emos a conveniente tratamento de saúde...
— Parece-me um plano bendito — concordou o irmão Teófilo, — programado pelos Espíritos Excelsos. Não devem perder a oportunidade.
Dona Abigail olhou a filha, demorada, silenciosamente, como a dizer que tudo faria pela sua felicidade.
— É a minha chance, mamãe! — concordou a jovem, — Agora ou nunca! Estou muito cansada e mesmo apavorada; receio destruir-me... Ajudai-nos, Senhor!
Ficou, ali mesmo estabelecido, que dona Abigail retiraria do lar apenas o indispensável, confiando os parcos pertences e a casa humílima ao irmão Teófilo, que lá colocaria algum dos seus necessitados, a fim de preservá-la, enquanto ela se demorasse fora...
Dispôs-se a acompanhar a senhora até o antigo lar, a fim de poupá-la de alguma cilada, ao tempo em que o Coronel providenciava as passagens aéreas para daí a dois dias, tempo suficiente para as providências que a senhora deveria tomar.
À noite daquele mesmo domingo, a servidora doméstica, que trabalhava vez por outra, foi despedir-se dos antigos patrões e acenar adeuses a alguns poucos amigos, sem, no entanto, informá-los para onde se trasladava.
Simultaneamente, o irmão Teófilo colocou a residência às ordens da mãe e da filha, em cujo período aplicaria passes em Josefa, iniciando pela técnica fluídoterápica o tratamento desobsessivo e a sua reeducação moral, à luz do Evangelho.
Não foi sem lágrimas, que Dona Abigail tomou essas providências. Rompia com o passado próximo, como se se estivesse preparando para a desencarnação, mediante cuja intervenção o espírito é obrigado a deixar tudo o que constitui fardo material, na retaguarda.
No aeroporto, osculou a destra do seu orientador espiritual, emocionada e, com o novo benfeitor e a filha lacrimosa, rumou, preocupada, para um novo dia na atual existência.
Informada por telegrama do esposo, dona Margarida foi aguardar o querido companheiro no aeroporto, ao entardecer, e receber os novos membros que pretendiam incorporar à família.
As saudações foram amistosas, espontâneas. Embora a condição humilde e, quiçá por isto mesmo, dona Abigail causou profunda, agradável impressão, na dama gentil, que, a seu turno, despertou reminiscências antigas na cansada genitora de Josefa.
A moça, compreensivelmente, retraída, talvez em face das emoções novas e das perspectivas do futuro, apresentava-se abatida, encabulada.
Rumaram para o lar, que as surpreendeu, graças à diferença expressiva entre o antigo e o novo domicílio.
A primeira noite transcorreu calma, concitando os viajantes emocionados ao justo repouso.
Na imediata, compareceram ao Centro Espírita “Francisco de Assis”, participando dos serviços doutrinários e travando contatos com a equipe amiga, encarregada do socorro a Ester. A simpática senhora a todos cativou. Josefa, porém, sentia-se perturbada... Não somente as circunstâncias novas afligiam-na, como, também, os perseguidores desencarnados que se lhe vinculavam pelos hábitos perniciosos perturbavam-na, atrozmente, exaurindo-lhe as energias vitais que vampirizavam...
Às despedidas, o médium Joel sugeriu, por inspiração de Bezerra, que ambas fossem trazidas ao serviço especial de desobsessão.
Outrossim, o Benfeitor recordou que Josefa devia submeter-se a cuidadoso tratamento médico, a fim de reequilibrar o organismo debilitado, sendo conveniente, mesmo, interná-la na Casa de Saúde em que Ester se encontrava, para cuidadosa assistência objetivando sua adaptação emocional, psicológica e social.
O Coronel Santamaria aceitou os alvitres com justificada alegria, prontificando-se executá-los, após discuti-los com a mãezinha da jovem e com ela mesma.
De retorno ao lar, enquanto se serviam de lanche frugal, apresentou às hóspedes as sugestões do Instrutor, aceitas com júbilo, sem qualquer dificuldade.
Açulada pelas mentes perturbadoras, Josefa permaneceu inquieta, atormentada, naquela noite, recorrendo a dona Abigail, que a assistiu com orações lenificadoras, animando-a em relação ao futuro.
As decisões felizes exigem o contributo de muitas dores, a fim de se tornarem atividade sadia, comportamento superior. O desejo veemente é apenas o passo inicial da reabilitação.
A jornada, porém, do vale à altura é lenta, acidentada, até que a visão dos cimos coroe de alegrias, luz e belezas a vastidão das sombras donde se provém...
As duas familiares de Matias estavam lutando pela ascensão e isto lhes facultava receber mais direta ajuda do Alto.
D. Margarida, mediante o compromisso de acompanhar Ester em tratamento sonoterápico, passou as horas diurnas ao seu lado.
Josefa foi encaminhada ao dr. Bittencourt, que a examinou com carinho paternal, solicitando diversos exames complementares com que se armaria de informações precisas para a competente terapêutica. Tomando dados para o cuidadoso prontuário, Josefa explicou os tormentosos caminhos transitados, desde há quatro anos atrás, dispondo-se a ajudar o médico na própria recuperação...
Deveria retornar depois dos resultados, para iniciar a cuidadosa assistência. Receitou-lhe, de imediato, medicamentos para acalmá-la e fortificar o organismo depauperado.
A lealdade da conversação e a firmeza de propósitos, da moça sensibilizaram-no, encorajando-o a aceitar a responsabilidade do tratamento...
À hora regulamentar, na noite seguinte, todos os membros, sinceramente jubilosos pela colheita dos resultados eficazes, se cumprimentaram, otimistas, no santuário espírita que os acolhia.
Dando curso normal à sessão, o Coronel Sobreira, como de costume, abriu os trabalhos e foi ouvida a instrução preliminar através de Rosângela.
No nosso plano de atividades, conduzimos Matias que se demorava sob á caridosa assistência dos enfermeiros prestimosos.
Convenientemente desperto, o Mentor elucidou-o quanto ao ocorrido naqueles dias e narrou-lhe que a genitora e irmã se encontravam presentes, auspiciando-lhe falar a ambas. Advertiu-o, porém, quanto ao conteúdo da mensagem e a alta significação daquele momento em sua trajetória espiritual.
O ex-pracinha surpreendido pela evidência dos fatos e a nobreza de propósitos do antigo desafeto, prorrompeu, em comovida súplica:
- Ajudai-me, anjo bom! Temo não saber como ou o que fazer.
— Sou apenas teu irmão — insistiu o Benfeitor, sempre sereno Estarei ao teu lado. Controla a emoção, pensando na grandeza do momento e Ele, o Senhor de nossas vidas, a cuja proteção estamos recorrendo, nos concederá os indispensáveis recursos para o êxito do cometimento.
Em transe profundo o médium Joel recebeu Matias com a alegria de irmão que exultava ante o seu sucesso.
Lágrimas nascidas nas fontes do arrependimento sincero transbordavam da emotividade do Espírito pelos olhos do intermediário.
A face amenizada pelas perspectivas de felicidade moldava no médium
a renovação da Entidade.
— Mamãe! Querida mãezinha!
Foram suas palavras iniciais, O tom de voz embargada, a vibração de amor e sofrimento davam-nos a paisagem feliz do conceito evangélico: “Há mais júbilo no céu quando um pecador se arrepende.
Dirigido pelo venerável Mentor, o filho atônito falou à mãe saudosa, concitando a irmã enganada à vida nova.
Recordou cenas da infância, descuidos inocentes da juventude, evocações inesquecidas.
Riu, chorou, vivendo o momento precioso, auspiciado pela misericórdia do Supremo Pai que nos rege os destinos.
A mãezinha, quanto a irmã, ouviam-no comovidas e felizes, seguras da legitimidade do encontro indefinível.
— Também ele procuraria a rota da regeneração — prosseguiu, — na esperança de um dia encontrar a paz e poder ser útil.
“Jamais me esquecerei, senhor — arrematou, honestamente —, do que foi feito pelas minhas amadas familiares. .. Perdoai-me pelo quanto vos fiz sofrer, à vossa esposa e filha! Que Ester também me possa perdoar! Sou o filho pródigo, suplicando indulgência antes que perdão.
“Mercê de Deus, irei tentar a própria elevação, a fim de reparar-vos os males infligidos e as dores que vos impus...
“Dizem-me que me irei daqui, qual estudante sequioso de saber, de modo a voltar um dia com os celeiros de amor enriquecidos de bençãos...
“Orai por mim... Deus vos pague em paz a paz que me proporcionastes!.
“Abençoe-me, mamãe! Coragem e fé, Josefa. A vida é o que dela fazemos. Teu irmão vive e não te esquece. Até breve!”
Ao desligar-se do médium, tínhamos a vitória da caridade no seu dossel de paz, construindo vidas em harmonia, na direção de Deus.
Os cônjuges Santamaria se deram as mãos, ternamente, enquanto, dominados por inaudita gratidão, louvavam o Senhor.
Nesse momento, o Instrutor tomou a instrumentação psicofônica de Joel.
Após tecer considerações edificantes sobre o arrependimento honesto como condição primeira para a reabilitação, estimulou os irmãos encarnados ao prosseguimento das tarefas de enobrecimento, lutas e sacrifícios, conclamando à constante vigilância.
O “caso” Ester-Matias estava concluído. Os recursos da Medicina ao lado da jovem, por alguns dias mais e a assistência de passes completariam o seu restabelecimento.
O conhecimento e exercício da mediunidade, na salutar vivência espírita, contribuiriam para que a jovem ex-obsidiada se integrasse nas hostes abençoadas do Espiritismo e na comunidade social, na qual seria chamada a cooperar ativa, arduamente.
Josefa poderia participar das reuniões mediúnicas normais da Casa, onde suas faculdades medianímicas receberiam carinhoso tratamento, eficiente orientação. Sua problemática obsessiva, paulatina-mente, se regularizaria, mediante o esforço de auto-iluminação e devotamento ao bem.
— O amanhã — prosseguiu, otimista — é o nosso dia de colher. Semeemos, hoje, as férteis messes de esperança, em flores de bondade.
Aqueles trabalhos especiais estavam concluídos.
O momento era de oração e reconhecimento.
Os dois mundos confraternizavam.
Os irmãos Melquíades, Ângelo, os auxiliares e benfeitores espirituais dos presentes, Petitinga e Izidro, Matias e alguns sofredores que receberam, também, ajuda, ouvimos pelo médium Joel a prece de encerramento, enquanto os encarnados, vibrando em uníssono, formavam a corrente da plena sintonia.
A palavra do augusto Orientador, que postara de pé o médium, nimbado por claridade incomparável, soou em oração:
“Divino Benfeitor!
“A terra agradecida ao arado se reverdece. abrindo-se em flores e frutos;
“A nuvem abençoa o solo com chuva fertilizante, agradecendo às nascentes donde proveio;
“A ave, cantando, agradece o novo dia que surge;
“O grão triturado, em louvor à mó que o despedaça, agradece à vida, transformado em pão;
“A semente esmagada, agradece ao solo gentil, repetindo a matriz que se estiola..
“A vida canta louvores nas mil vozes da Natureza, agradecendo a Nosso Pai todas as sublimes concessões do Seu amor.
“Teus discípulos incipientes e temerosos que sabemos ser, tocados pelo amor que de Ti dimana, agradecemos, também, a honra imerecida de servir-Te na pessoa do nosso próximo do caminho redentor.
“Concede-nos o favor de prosseguirmos, incessantemente, contigo, porque se não Te tivermos para onde ou para quem nos dirigiremos, pois somente em Ti encontramos o caminho, a verdade e a vida!...
“Esperança nossa, recebe nossa gratidão e apiada-te de nós!”
Quando concluiu, embargado pelas superiores emoções do espírito, choviam miríades de corpúsculos luminosos sobre todos, penetrando-nos e transfundíndo-nos valor, abnegação e fidelidade a Jesus.
A sala se transformara numa via-láctea coruscante.
O amor vencera o ódio, a caridade conquistara as vidas e resgatara os destinos.
Em breves palavras o Coronel Sobreira encerrou a reunião.
Amanhã começava um dia novo de luz, convocando-nos aos deveres da retidão e do bem.
Fim