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domingo, 20 de fevereiro de 2011

Espiritismo Dialético-J.Herculano Pires

 

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J. Herculano Pires

Espiritismo Dialético

Prefácio da obra Dialética e Metapsíquica, do filósofo portenho Humberto Mariotti, originalmente publicada pela “Édipo – Edições Populares Ltda.” em fevereiro de 1951, e republicado em livro por “A Fagulha”, de Campinas - SP, editora do Movimento Universitário Espírita (MUE), em 1971.

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Eugene Bodin

A Natureza

Conteúdo resumido

Esta monografia constitui o prefácio da obra Dialética e Metapsíquica, do filósofo espírita argentino Humberto Mariotti.

O autor descreve resumidamente a evolução do espiritualismo em geral, e do Espiritismo em particular, em oposição ao materialismo defendido por alguns importantes filósofos dos séculos mais recentes.

Em oposição à triste filosofia materialista, segundo a qual a consciência individual do homem nasce em um determinado momento e deixa de existir algum tempo depois, Herculano demonstra que somos seres espirituais em processo infinito de evolução, e devemos trabalhar sempre em prol da melhoria do mundo em que vivemos, cuja condição social, boa ou má, se refletirá em nós mesmos.

José Herculano Pires (1915-1979), jornalista, filósofo, tradutor e grande intelectual espírita brasileiro, autor de mais de 80 obras sobre Espiritismo, Filosofia, Psicologia, Parapsicologia, romances, poesia, etc.

Sumário

Introdução 4

Posição do materialismo dialético 5

Justificativa do equívoco marxista 5

Um gesto de fraternidade 6

Nem um passo à frente 7

O desprezo pela dialética 8

A sobrevivência contra a evolução 9

A tese das “materializações românticas” 9

Mais vale um pássaro na mão 10

Interpretação do homem 11

O velho e o novo 12

Vagas aspirações 12

Da especulação à experimentação 13

Situações novas 14

O choque apocalíptico 15

Hora de libertação 15

O indivíduo e o meio 16

Por uma consciência humanista 17

Elevar a Terra na escala dos mundos 18


Introdução

A história do conhecimento é uma seqüência de erros, equívocos e frustrações. Este o motivo pelo qual Sócrates costumava explicar: “Só sei que nada sei, e que a filosofia começa quando começamos a duvidar.” Outra coisa não tem feito o homem, desde as cavernas da era pré-lacustre, do que errar para aprender. A história da civilização não é, portanto, somente a da luta de classes, segundo o materialismo dialético, mas a própria história do erro. Como, entretanto, do erro, do equívoco, da frustração, nasceram sempre e em todos os tempos o conhecimento e a sabedoria, mais uma vez se comprova, no terreno do pensamento, o processo dialético da natureza, que do pântano arranca os lírios, da larva a borboleta, do pecador o santo, do caos da sociedade capitalista os contornos do socialismo.

Quando Demócrito firmou o princípio atômico da constituição do mundo, cometeu toda uma série de erros, atribuindo à suposta partícula indivisível a diversidade de peso no vácuo, e dotando-a de ganchos para a composição da matéria. Não obstante, havia descoberto, mais de trezentos anos antes de Cristo, o segredo da constituição do mundo, que a física experimental só encontraria vinte e quatro séculos depois.

Ao formular a base dialética da sua filosofia, Hegel unificou o “ser” e o “pensar” de Kant, mas caiu no equívoco da “idéia universal”, espécie de encarnação filosófica do caprichoso deus antropomórfico das religiões. Feuerbach teve a coragem de fazer a filosofia descer do empíreo hegeliano à terra, para ligá-la às ciências naturais, mas caiu na frustração da “antropologia”, novamente separando o “ser” do “pensar” e transformando este último numa simples função da matéria. Não obstante, apoiados na dialética de Hegel e no materialismo de Feuerbach, Marx e Engels criaram o materialismo dialético, dando novo impulso ao pensamento filosófico, abrindo novas possibilidades à investigação dos processos históricos e sociais, oferecendo base científica às aspirações do socialismo empírico.

Foram os gênios transformadores do século XIX, tornando-se credores de todos os que – e são a humanidade – desfrutam hoje da possibilidade de uma caminhada mais rápida nos rumos da civilização socialista. Stanley Jones, o grande missionário protestante, conhecido como “o cavaleiro do Reino de Deus”, observa, em Cristo e o Comunismo, que Marx impulsiona a história, limpando o templo da praga dos vendilhões, à semelhança do chicote do rabino, que ainda hoje espanta os cristãos comodistas.

Entretanto, a filosofia que Marx e Engels ofereceram ao mundo, como a mais alta expressão do conhecimento, não passa de uma forma híbrida, que se travestiu de síntese. A tese de Hegel e a antítese de Feuerbach não se conjugam na moderna escolástica do materialismo dialético, pois ali estão, sem dúvida, forçadas pela violência gráfica, duas palavras contraditórias e irredutíveis, que não encontram caminho para o desenvolvimento da síntese. O materialismo é a porta fechada, diante da qual se interrompe, abruptamente, o processo dialético de Hegel.

Marx condenou a “incapacidade burguesa” de Proudhon para compreender a lei fundamental da dialética hegeliana, a “unidade dos contrários”, e chamou-o de falsificador, por ter feito a escolha indébita de um dos contrários, a propriedade “boa”, rejeitando dessa maneira a própria dialética. Mas, em compensação – rejubile-se o Espírito de Proudhon! –, ele e Engels não fizeram outra coisa. A luta dos contrários foi simplesmente frustrada na elaboração da dialética moderna, que se formou pela mesma e indébita escolha de um dos contrários. O materialismo dialético considerou “mau” o princípio espiritual, escolhendo como “bom” apenas o material. Por isso mesmo, não obstante a enorme contribuição que trouxe à marcha do conhecimento, não é mais do que uma tentativa de síntese.

Posição do materialismo dialético

Não resta dúvida que o materialismo dialético é o mais avançado passo da filosofia materialista, graças ao aproveitamento da tríade básica da mais antiga filosofia espiritualista, que podemos encontrar desde o taoísmo chinês ao druidismo gaulês, do antigo bramanismo à filosofia jônica, de Sócrates e Platão ao Evangelho do Cristo.

Diante da sua concepção do mundo e do seu método de análise histórica, o materialismo fixista do século XVIII e o próprio mecanicismo parecem conjecturas infantis. Na Dialética da Natureza, Engels observa, a propósito: “A ciência natural da primeira metade do século XVIII estava muito acima da antigüidade grega no tocante ao conhecimento e à classificação dos materiais, mas ao mesmo tempo abaixo dela, no domínio ideal desse material, na concepção da natureza.”

O mesmo podemos hoje dizer, no tocante à posição do materialismo dialético em face à filosofia idealista alemã do século XVIII, e particularmente à escola hegeliana. Repete-se, nesse caso, o que se verificara com Feuerbach diante de Hegel, no terreno da análise das relações sociais. A dialética marxista se nos apresenta, por isso mesmo, como um pássaro de asa quebrada, que, apesar de bater com energia a asa que lhe sobrou intacta, não consegue elevar-se além da poeira da terra. Falta-lhe a visão tão-somente de metade da realidade objetiva, dessa realidade que ele tanto defende e a que tanto se apega. Marx e Engels preferiram ignorar essa metade, que Hegel lhes oferecera, com os seus olhos de condor, para se reduzirem à miopia de Feuerbach. E cometeram assim o maior equívoco da moderna história da filosofia; tomando, como o fizera Proudhon, a exclusão pela síntese.

Justificativa do equívoco marxista

Sobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos condenar Marx e Engels, bem como Feuerbach, em última instância, se este último, rebelando-se contra a “divinização dos fenômenos naturais impressionantes” pelo homem primitivo, pela razão instintiva, quis apegar-se à raiz latina da palavra religião, o verbo “religare”, para construir uma religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos transcendentes, como Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até mesmo a velha raiz, tomados de uma verbofobia que ainda hoje impregna os seus seguidores. E levantaram, no pó do planeta, a primeira grande revolução filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.

Foi, não um temporal num copo d’água, mas uma tormenta num grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Kardec, nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois “tal é a lei”, a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de importância igual à rebelião dos anjos, no princípio dos tempos.

A esses novos lúciferes assistiam as razões poderosas da mistificação religiosa da época. A religião, distanciada da sua velha raiz, convertera-se em instrumento de opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem foi por outro motivo que Kardec declarou, em A Gênese, com a clareza e a precisão que o caracterizavam: “As religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome, exploram a credulidade, em proveito do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cômodo viver na dependência dos iludidos. A religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas.” [1]

As igrejas haviam corporificado o princípio religioso, no terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de dominação. Os sacerdotes nada mais eram do que os negociantes do culto. E este, como bem o definiram os materialistas dialéticos, “o suborno da divindade”. A corrupção capitalista invadira os céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo, com Tcheskiss: “O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião.” Já Kardec o dissera, no mesmo livro citado: “Se a religião se recusa a marchar com a ciência, a ciência marchará sozinha.”

Querer que a capacidade de análise objetiva de Marx e Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da religião e ao seu verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro lado, supor que esses anátomo-patologistas da sociedade capitalista pudessem agir, diante do corpo enfermo da sociedade da época, como psiquiatras, descobrindo a malversação dos elementos espirituais no desequilíbrio religioso, seria desconhecer o fenômeno das especializações no campo da ciência.

Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O que assombra, porém, é que um século depois os seus discípulos e continuadores ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem compreenderem a necessidade de avançar na concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao “processus” da sua própria dialética.

Um gesto de fraternidade

A explicação do fenômeno religioso como simples “humanização da natureza”, como a “projeção do homem ao infinito”, é mais literária do que filosófica, não tendo absolutamente nada de científica. O próprio Marx quase o reconheceu quando acrescentou à tese contemplativa de Feuerbach os seus princípios dinâmicos. Perdoa-se como um dos muitos equívocos, através dos quais se elabora dialeticamente o conhecimento. Admitir-se, porém, a sua perpetuação no mundo filosófico seria um crime de lesa-cultura.

Primeiro, por que não há nenhuma base positiva, experimental ou de observação, para comprovar essa teoria de emergência; depois, porque há uma infinidade de provas em contrário, suficientemente documentadas, com base na mais rigorosa investigação científica, feita por cientistas insuspeitos, tão materialistas e descrentes como Feuerbach, Marx, Engels e os seus continuadores.

Ora, parece evidente que uma teoria, contraditada pelos fatos, mormente através da investigação científica, não apenas uma, mas milhares de vezes, está irremediavelmente falida. Por outro lado, a afirmação de que “a sociedade burguesa tem interesse na explicação religiosa, teológica, dos fenômenos sociais” (Tcheskiss) nada tem a ver com a realidade do fenômeno religioso em si, como a realidade das alterações fisiológicas não se invalida nem se obscurece em virtude da exploração dos charlatães da medicina. Além disso, é preciso notar que a filosofia espírita é tão contrária à teologia e às explicações teológicas da natureza quanto as próprias ciências naturais, não correspondendo, por isso mesmo, aos interesses de classe da burguesia.

No seu trabalho Dialética e Metapsíquica, afirma Humberto Mariotti: “A simples análise de um único caso de materialização deita por terra o raciocínio filosófico, e queiram ou não, uma nova idéia do ser e do mundo começará a mover-se na mente do pensador.” Com isto, sim, temos uma afirmação científica, devidamente comprovada pelos fatos, de que nos dão exemplo os casos clássicos de Richet, Myers, Lodge, Lombroso, materialistas convertidos ao espiritualismo, diante da realidade incontrovertível da fenomenologia espírita. Quando, pois, o materialismo dialético reduz à mesma pauta da superstição primitiva a religião ancestral, com as suas formas de exploração social, e os modernos trabalhos de pesquisa científica no terreno da sobrevivência, comete uma heresia filosófica de proporções catastróficas. Em outras palavras, reduz a tese dialética à antítese do dogma-de-fé, traindo a síntese ou fechando a porta.

Não há, ao mesmo tempo, nenhuma justificativa para os homens que, “bem situados” no mundo capitalista, deturpam os fatos históricos e a própria realidade presente, para sustentar a velha tese superada do materialismo científico, graças ao costumeiro processo da exclusão, ainda agora repetido pelos behavioristas e pavlovistas. Nessa categoria de irremissíveis estão o Dr. Emilio Troise, com o seu Materialismo Dialético, e entre nós os drs. Murilo de Campos, Leonídio Ribeiro, Henrique Roxo, – o humorista científico do “delírio espírita episódico” – e, ultimamente, como a mais recente contribuição da “cultura” indígena à luta contra o Espiritismo, o professor Silva Mello, com o seu Mistérios e Realidades Deste e do Outro Mundo. Homens de ciência, que preferem negar as experimentações rigorosamente científicas de personalidades como Crookes e Richet, ou desnaturá-las e deformá-las, para sustentar uma teoria sem base, ou melhor, cuja suposta base se esvai aos olhos de todos, com a própria evaporação da matéria, na era da física nuclear.

O livro de Mariotti não é, por isso mesmo, apenas um esforço no sentido de colocar a verdade filosófica e científica da sobrevivência no seu devido lugar. Mais do que isso, é um gesto de fraternidade, um apelo do coração a esses transviados do conhecimento, na esperança de salvá-los, ainda, do implacável naufrágio da história.

Nem um passo à frente

Quando Engels escreveu o seu artigo contra o método empírico-indutivo de Bacon, ou melhor, confundindo esse método com “o êxtase e a vidência, importados da América”, de que se fazia vítima o empirismo inglês, na pessoa do “eminentíssimo zoologista e botânico Alfred Russel Wallace”, o homem que, simultaneamente com Darwin, apresentou a teoria da evolução das espécies pela seleção natural, o materialismo dialético era uma conquista recente, um equívoco em forma de desenvolvimento, e não nos caberia censurá-lo por essa digna atitude de combate. Engels não poderia entender de outra maneira o “desencaminhamento” de Wallace. Vê-se, não obstante, desse mesmo artigo, que Engels não ficaria no terreno da teoria. Embora mal, com a imperícia de quem jamais se interessara pelo assunto, procurou justificar as suas afirmações, através da observação e da experimentação.

O artigo de Engels foi publicado pela primeira vez em 1898. Devia ter sido escrito, segundo encontramos na edição brasileira da Dialética, em 1878. Engels criticava também os trabalhos de Crookes, Aksakof e Zöllner. É uma crítica violenta e irreverente, em que ele chega a considerar o Espiritismo “a mais estéril de todas as superstições”. Como se vê, a afirmação não era dialética, mas empírica, inteiramente gratuita, e o longo roteiro das experiências espíritas e metapsíquicas aí está para desmenti-la. Mas tinha a sua razão de ser. Podemos dizer, com Hegel, que o Zeitgeist, o espírito da época, a justificava. O que espanta, entretanto, é que ainda hoje, quase um século depois, o artigo de Engels seja a única pauta dos que, como o professor Silva Mello, desejam eliminar do mundo em que vivemos, por incômoda, a realidade dos fenômenos espíritas, sem seguir sequer o exemplo de Engels no tocante à experimentação própria.

O desprezo pela dialética

Dizia Engels, no artigo: “...não se pode desprezar impunemente a dialética.” E dizia bem. Senão, vejamos: observados os fatos com o máximo rigor científico, através de centenas de sessões – nas quais obteve-se, inclusive, na presença de Gabriel Delanne, a célebre e impressionante materialização de Bien-Boa, na casa do general Noel, na Argélia –, Charles Richet se convence da realidade dos fenômenos, escreve o Traité de Métapsychique, A Grande Esperança e O Sexto Sentido, mas só concorda com a sobrevivência depois que a poderosa dialética de Ernesto Bozzano lhe demonstra a obscuridade das teorias que atravancam a sua própria ciência (expressões da carta de Richet a Bozzano, publicada no número de 30 de maio de 1936, da revista londrina Psychic News).

César Lombroso, o grande criminologista e psiquiatra, autor de severas críticas ao Espiritismo, encontra-se, não apenas em uma, mas em várias sessões realizadas em Milão, Gênova e Turim, com a materialização de sua própria mãe, graças à mediunidade de Eusápia Palladino, e proclama o fato com entusiasmo e emoção, na revista milanesa Luce e Ombra. Mas o professor Silva Mello descobre, algumas dezenas de anos mais tarde, em nosso país, que a médium era simplesmente “uma embusteira”, e afirma: “descobriu-se que ela fraudava de maneira sistemática e com a maestria de uma velha perita na questão”. Lombroso, como se vê, não fora mais do que um beócio, deixando-se empolgar pela emoção mais estúpida que se possa imaginar, quando tomou um boneco ou um farsante pela ressurreição da sua própria mãe! Que se admitisse a farsa numa comédia de Hollywood, vá lá, mas na vida de um homem como Lombroso é o que de mais grotesco se possa imaginar.

A frase de Engels se aplica também, como luva, ao caso do trio H. G. Wells, Julian Huxley e G. P. Wells. Não cometeram eles, é verdade, a gafe de negar a realidade dos fenômenos. Pelo contrário, como o Dr. Troise, reconheceram, prudentemente, que os fatos existem e não podem ser riscados da história ou apagados com a esponja da negação. No volume Science of Life, da coleção Man's mind and behaviour, traduzidos e publicados entre nós com os títulos A Nossa Vida Mental, coleção A Ciência da Vida, reconhecem eles: “Não podemos absolutamente rejeitar a evidência de tais fenômenos”. E acrescentam, aliás com muita oportunidade, censurando os que os negam: “Lembremo-nos, segundo Richet, de que grandes cientistas, como Bouillaud, declararam que o telefone era ventriloquia, e cientistas ainda maiores, como Lavoisier, afirmaram decisivamente que não poderiam cair pedras do céu, pela razão muito simples de que no céu não há pedras...”

Não obstante – ah, o desprezo pela dialética! –, terminaram apelando, num desesperado esforço de rejeição à tese espírita, ao “realismo” da Idade Média, para explicar os fatos: “Quando filosofamos – dizem eles – nas horas de recolhimento e de silêncio, talvez essa filosofia não parta unicamente de nós, mas seja o próprio Homem, na plenitude de si mesmo, que se revele através dos nossos pensamentos”.

Entenderam os leitores? Esse Homem (com “H” maiúsculo) é a verdadeira ressurreição da múmia filosófica da controvérsia entre “nominalistas” e “realistas”, arrancada à força dos baús medievais para enfrentar a realidade fenomênica do Espiritismo, em plena era atômica.

A sobrevivência contra a evolução

Mas não fica nisso o desprezo dos autores pela dialética. Depois desse gigantesco retrocesso histórico, afirmam eles, como se dissessem uma novidade: “a morte do indivíduo é um dos métodos da vida” (que dúvida!). E continuam: “Cada indivíduo é uma experiência biológica. Cada espécie progride pela seleção, rejeição ou multiplicação dos indivíduos. Biologicamente, a vida deixaria de continuar para diante, se os indivíduos não tivessem um fim e não fossem substituídos por outros. A idéia da imortalidade individual é absolutamente contrária à idéia da evolução contínua”.

E logo mais, numa dessas tiradas que se repetem de boca em boca e de livro em livro, enquanto alguém não pede, como Sócrates, a definição do seu verdadeiro sentido: “São os moços, e não os velhos, os que desejam a imortalidade pessoal.”

É pena que não mencionem a fonte desse espantoso dado estatístico, pois gostaríamos de confrontá-lo com o número de mocidades espíritas, católicas, protestantes, teosofistas, e dos muitos outros jovens espiritualistas não filiados a nenhuma seita, por que estranho motivo não deixam o terreno exclusivamente aos velhos, monopolizadores modernos da velha aspiração humana da sobrevivência.

Dizer, além disso, que a imortalidade individual é contrária à evolução contínua, é “fazer de conta” que essa imortalidade seja biológica. Ora, absurdo dessa monta ninguém poderia aceitar. Como, pois, interpretar-se a atitude desses homens habituados a lidar com as coisas do pensamento, a acompanhar e divulgar os conhecimentos científicos, senão pelo desprezo à dialética?

A tese das “materializações românticas”

Não se pense, porém, que o desprezo ficou no que dissemos. Longe disso, ele foi e vai muito além. Quando se trata de contradizer o Espiritismo e de fatos espíritas, tudo parece permitido aos homens de ciência e aos homens de letras. Não há fronteiras para a imaginação, nem limites para o raciocínio.

É assim que, ilustrando o volume com várias fotografias espíritas, os autores reproduzem um quadro de Tissot e o comparam à famosa fotografia da “cabeça materializada”, obtida por Notzing e madame Bisson, com a médium Eva Carriere. Para concluírem: “Antes da época dos flagrantes fotográficos, o grande pintor Tissot mostrou-nos o que acreditava ser a reencarnação de uma mulher amiga, acompanhada do seu Espírito-guia; é uma bela pintura, onde ele reproduziu a impressão de verdadeira beleza, recebida numa sessão espírita. Os métodos mais rigorosos, que hoje se usam, já não permitem essas sublimações do testemunho visual: as câmaras fotográficas mostram as coisas como elas se passam. E vemos que essas figuras e rostos materializados começam pequenos e às vezes desproporcionalmente. Quaisquer que possam ser essas figuras e faces achatadas e amarfanhadas, não são, certamente, materializações em carne e sangue humano”.

Richet escreveu o Traité sem aceitar a tese espírita, mas contudo jamais cometeu a heresia de dizer que as materializações eram fantoches amarfanhados. Encontramos no Traité essa mesma cabeça de que se servem os Wells e Huxley, mas apresentada em outro sentido, ou seja, no bom e verdadeiro sentido que se lhe deve dar: como uma das mais belas fotografias já obtidas, revelando e documentando, de maneira insofismável, uma das fases do processo de materialização. Não tivéssemos essa e outras fotografias obtidas por Notzing e madame Bisson, e esses mesmos ilustres cavalheiros nos acusariam de não havermos surpreendido jamais uma das fases daquilo que chamamos “processo de materialização”. Não teriam dúvidas em utilizar esse fato como argumento “poderoso” contra a teoria da formação progressiva do fantasma, com a matéria plástica do ectoplasma ou teleplasma.

Perguntaremos, porém, a esses ilustres divulgadores do conhecimento, se não tiveram a oportunidade de ver outras fotografias, como a médium Linda Gazzera, constantes do seu livro Fotografias de Fantasmas, no qual elas figuram, não através de clichês, mas nas próprias cópias fotográficas, para que não haja dúvidas.

Mais vale um pássaro na mão

Essas fugas pela tangente representam o método mais freqüente de combate ao Espiritismo, inclusive por parte dos materialistas dialéticos. Para os observadores serenos e sensatos, bastaria essa insistência na deturpação dos fatos e na distorção do raciocínio, para comprovar a seriedade e a importância desses mesmos fatos. Aliás, ainda com Engels, encontraremos o argumento mais apropriado: “A única questão consiste em saber se o pensamento está ou não certo, e o desprezo pela teoria é, evidentemente, a maneira mais segura de se pensar de maneira naturalista, e, conseqüentemente, de modo errado.”

Engels não ficaria mal nas fileiras espíritas. De fato, ele via bem estes problemas. O desprezo pela teoria espírita, única que pode explicar os fenômenos, tem levado esses homens a trair a dialética a todo momento, entrando a fundo e às cegas pela Sofisticaria. A punição da dialética, porém, não se faz tardar. Os que pensam de maneira naturalista, voltando as costas à teoria, terminam de encontro à parede, com a espada do ridículo no peito. Porque a “maneira naturalista de pensar”, a que Engels se refere, é a do pensamento a priori, instintivo, que não provém da razão orientada pelo processo da civilização, mas da herança comum e obscura do passado biológico da espécie. Age por meio de impulsos mecânicos, é um automatismo inconsciente. Dir-se-ia, diante das suas manifestações, que o homem tem a vocação da fuga. Como a lebre, colhida de surpresa na beira da estrada, precipita-se no mato, assim o homem, colhido na sua posição materialista pela surpresa dos fatos supranormais, precipita-se no matagal das lembranças ancestrais. Improvisa teorias e fabrica rótulos com a desenvoltura inconseqüente da avestruz ao enterrar a cabeça na areia. Comete, com uma confiança absurda na impunidade, o crime da desfiguração da verdade, ou passa apenas a negar, indiferente a todas as provas e argumentos, como a criança teimosa que não quer ver a louça quebrada. É o outro lado da crendice, o reverso do fanatismo religioso.

Por isso, o médico Sergio Valle nos lembra, no livro Silva Mello e os Seus Mistérios, recentemente publicado: “Enquanto não se realize o fiat da ciência (que se mantém, teimosamente, orgulhosa e cega), para iluminar os fatos que possuímos, não é justo que uma criatura sensata despreze o que se acha detido, seguramente detido nas suas mãos, por mínimo que seja, pelo que voeja no espaço do fanatismo religioso ou do fanatismo científico”.

Interpretação do homem

O homem, segundo o materialismo, seja ele mecanicista dialético, é um animal pensante. Para Marx, e portanto para o dialético, é ainda o resultado da ação simultânea do trabalho, sobre ele e a natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo. Essa concepção materialista do homem não se enquadraria na doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. Apenas a amplia, ensinando que o princípio inteligente, no homem como no animal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos materialistas.

No capítulo III de O Livro dos Espíritos, de Kardec, encontramos esta definição: “O trabalho é lei da natureza, por isso que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.” Logo adiante: “Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência.”

A lei de causas e efeitos é o princípio fundamental da doutrina, a evolução constitui a sua própria essência. Por outro lado, não se estruturou o Espiritismo através de formulações hipotéticas. Todo o seu edifício doutrinário se assenta na observação e na experimentação. Richet, que condenava a “credulidade excessiva” de Kardec, já o notara, no Traité. Dialético por natureza, em essência e pelos métodos que emprega, o Espiritismo, se bem estudado, revela-se o legítimo e natural herdeiro do título a que se candidata o materialismo dialético: síntese do conhecimento.

Realmente, o Espiritismo, diante dos mundos em litígio do materialismo e do espiritualismo, não peca por exclusão, não comete o pecado proudhoniano ou marxista da escolha. Na sua estrutura encontraremos aquelas duas concepções, não apenas conjugadas ou ajustadas, mas superadas na transfiguração de um novo corpo – a síntese –, em que a ciência, a filosofia e a religião, as três províncias antagônicas do conhecimento, aparecem encadeadas no verdadeiro “processus” da mais pura dialética, uma resultando da outra.

No Anti-Dühring, Engels lembra as origens do marxismo e expõe a doutrina como a seqüência lógica destas fases: a filosofia, a economia-política e o socialismo. No Espiritismo, a seqüência se tresdobra na ciência, na filosofia e na religião. Partindo da observação e da análise dos fenômenos materiais, de natureza supranormal, criamos a filosofia do ser, e atingimos, logo a seguir, a religião. Esta, porém, não se traduz na organização de uma nova igreja, de um novo culto, de um novo “suborno da divindade”. Nem se traduz no antropomorfismo socialista, erguido no altar da produção. Mas é, ao mesmo tempo, a comunhão de bens, de corações e de espíritos, pela qual todos ansiamos, espiritualistas e materialistas, para a construção do mundo melhor amanhã.

Porque o homem, para o Espiritismo, não é apenas “o último anel da vida animal na terra” (A Gênese, Kardec), nem o produto quase exclusivo da ação simultânea do trabalho; mas também aquele ser que se mostra nos fenômenos de materialização, de aparição, de visão, de voz direta, de incorporação, de psicografia ou de tiptologia, para demonstrar “aos que ficaram” que ele não se extinguiu com a morte, e que o seu conteúdo moral continua a viver e a se desenvolver indefinidamente, na multiplicidade das formas, sem prejuízo da identidade substancial.

O velho e o novo

É evidente que o conhecimento da sobrevivência alarga a concepção humana da vida e do mundo, muito além dos limites terrenos ou orgânicos da concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de “nova revolução copérnica”. Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do geocentrismo, a revolução espírita desloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do efeito pela causa o chamado “materialismo-psicológico”.

Em conseqüência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de Kardec.

Vagas aspirações

Alegam os mais ferrenhos materialistas que o conhecimento da sobrevivência – se de fato ela existisse – não serviria senão para perturbar a visão presente do homem, desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa, e pregou a necessidade da ação contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante espírita, replica: “...a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que o homem se lance, com uma espécie de frenesi, sobre as da vida material.”

A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência natural, em escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesi na procura dos bens materiais. A advertência de Bacon: “Busca primeiro as boas coisas do espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta”, com base naquela do Cristo: “Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais te será dado por acréscimo”, não soa no coração, mas apenas nos tímpanos desatentos do homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do princípio de Hahnemann, – similia similibus curantur – para curar o mundo desse delírio febril?

Kardec diz ainda: “Esse é o inevitável efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O homem é como o adolescente, que não tem mais a crença ingênua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir.”

A sociedade socialista, baseada na filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas “vagas aspirações” de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A hipótese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das realidades do Universo.

Da especulação à experimentação

Mas Kardec não fala “por ouvir dizer”, ele não foi jamais um homem levado pela imaginação: foi um observador rigoroso. E é através da mais pura dialética que nos explica a razão dessas vagas aspirações.

“Se a questão do homem espiritual permaneceu até os nossos dias em forma de teoria, é que nos faltaram os meios diretos de observação, que tivemos para constatar o estado do mundo material, e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de sistema em sistema, no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Deu-se na ordem moral o mesmo que na ordem física; para determinar as idéias faltou-nos o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava reservado à nossa época, como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos. Até o presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica, tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é inteiramente experimental.”

Chegados a este ponto, defrontamo-nos com o aspecto mais crítico da hora presente. De um lado, temos em marcha, com indiscutível eficácia, a aplicação do método dialético à história, à política, à sociologia etc., como a mais alta conquista do espírito no terreno prático e objetivo. De outro, o abuso, que perdura, do método empírico, nas questões espirituais, com as conseqüentes explorações e deformações da realidade. E no meio, lutando entre as duas correntes, ambas poderosas, o Espiritismo, que não pode trair a realidade espiritual, para endossar a aplicação materialista da dialética, e não pode trair a sua própria natureza dialética, para apoiar o empirismo da prática espiritual. O resultado, infelizmente, é o que vemos: ele também, o Espiritismo, deformando-se, no aspecto sectário e místico de uma nova religião, ou na estrutura fria e materialista da simples observação metapsíquica.

Todo o esforço do homem moderno tem de convergir para a superação dessa tremenda crise do conhecimento. E a superação somente se fará possível com a compreensão dos verdadeiros princípios do Espiritismo como doutrina dialética, por isso mesmo capaz de aplicar à história, à política, à sociologia, à economia, à arte, os seus métodos de análise, de observação, de pesquisa, sem se perder na mística de confessionário, nem se confundir com o tumulto dos comícios subversivos. Além do misoneísmo das religiões, do reformismo do socialismo político-liberal e da violência do materialismo-dialético, o Espiritismo indicará ao homem o caminho seguro das transformações substanciais da vida social, ou perderá a sua razão de ser. Como esta última hipótese não nos parece possível, o mais certo é que a história nos esteja empurrando, segundo observa Mariotti, apesar da incapacidade geral e desoladora dos espíritas de hoje, na direção do Espiritismo Dialético, verdadeira síntese do conhecimento, com que nos acena Kardec.

Humberto Mariotti afirma que “a realidade visível” da ação espírita no mundo se traduz no cultural, e “mais do que em qualquer outra parte, no bibliográfico”, faltando-lhe, entretanto, entrosar-se “no processo histórico da humanidade”. Esse entrosamento se faz pela penetração nas massas através do seu aspecto “ingênuo”, de seita religiosa. Mas, se não houver, neste momento, a ação da alavanca da filosofia espírita, salvando o Espiritismo da “ingenuidade popular” e transformando-o, não mais em simples crença, mas em conhecimento, o processo natural desse entrosamento pode ser desvirtuado, pelo trabalho de sapa das forças contrárias.

Aos espíritas, portanto, cabe o dever indeclinável de lutar para que esse entrosamento se realize. A bibliografia espírita – “quiçá insuperável pela de qualquer outro movimento filosófico” – deve descer das estantes e penetrar nas massas, não para se submeter à “ingenuidade” destas, mas para orientá-las no sentido da sua libertação moral, espiritual, intelectual e social. Para tanto, é necessário um novo trabalho de elaboração, de aglutinação, de sistematização do conhecimento espírita, na forma de compêndios culturais e de manuais populares.

O aspecto religioso ou “ingênuo” do Espiritismo salvou-o da indiferença e da hostilidade conjugada de todas as forças dominantes dos séculos XIX e XX, escondendo-o no coração do povo, onde ele viveu e progrediu em silêncio, e permitindo, ao mesmo tempo, o trabalho cultural dos intelectuais espíritas. Temos hoje uma população espírita no mundo, e temos uma cultura espírita. Mas não temos a sociedade nem a civilização espíritas, como observa Mariotti, e nem mesmo a necessária e prévia ligação entre as massas espíritas e a cultura espírita, para a criação daquelas. Estamos, porém, no caminho dialético do desenvolvimento de uma nova civilização, e se compreendermos isso, lutando para alcançar o futuro, chegaremos até lá.

Humberto Mariotti fez uma concessão de boa-vontade ao “pensar naturalista” quando deu ao seu livro o título de Dialética e Metapsíquica. Porque o título verdadeiro do volume seria o de Espiritismo e Dialética. Evitou assim assustar a lebre na beira da estrada. Não se iludam, porém, os espíritas, mormente os espíritas brasileiros, tão afeitos a deixar de lado o que foge ao aspecto religioso da doutrina. As páginas de Mariotti não se referem apenas a uma controvérsia filosófica entre as duas doutrinas que lhe formam o título eventual. Elas são, pelo contrário, um brado de alerta e um convite sério à meditação e ao estudo. Principalmente ao estudo da natureza dialética do Espiritismo e das possibilidades imediatas da sua aplicação ao mundo – para transformá-lo.

Situações novas

Essas possibilidades se tornam cada vez mais visíveis, graças ao aceleramento do processo histórico no século atual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos fatos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A idéia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do último século e nos princípios deste. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias, e não somente no conjunto da massa, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, na França, na Itália. Nos três últimos, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e da pequeno-burguesa.

Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas, e os marxistas se esquecem dos princípios dialéticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, que os materialistas dialéticos deviam meditar: “Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é econômica e nervosa, e amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico

Marx viu, na sua época, a necessidade de construir-se uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes”, e o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência, e só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de mostrar-nos quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atômica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das idéias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou de muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialética hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação

Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso, e os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

A forma proletária da violência não modifica a substância mesma da violência, e os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive o nosso, armada com os poderes do feudalismo, tornou-se um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, numa classe como noutra, e a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo econômico é fugir para a abstração de uma economia autônoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polonesa Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários econômicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno da sua gênese, na Alemanha burguesa.

Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irônico dos materialistas-dialéticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido, e não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual, e só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconseqüente do poder material. Ruskin, Tolstói, Tagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

O indivíduo e o meio

Alguns espíritas não compreendem esse imperativo histórico da doutrina. Pensam que a lei de causa e efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e aceitar passivamente a sua ação. Esse pensamento misoneísta, de fundo místico, aparece até mesmo em A Grande Síntese, o livro de Ubaldi, que já citamos algumas vezes, e que comete ainda o pecado filosófico de confundir o comunismo científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingênuo de Weitling. Outros entendem que a revolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe transformar o homem, para que a estrutura social, em conseqüência, se transforme. É novo equívoco de fundo místico, e Mariotti o menciona, chegando mesmo a tropeçar nele.

Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo esforço do homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço próprio, a lei do trabalho e da atividade livre, que a fará progredir, a si mesma e ao todo a que pertence, à coletividade. Em O Livro dos Espíritos encontramos esse pensamento claramente definido, impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo em passos como o seguinte: “Tudo se deve fazer para chegar à perfeição, e o próprio homem é instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição a meta da natureza, favorecer essa perfeição é corresponder aos propósitos de Deus.” (pergunta 692).

Kardec não é misoneísta. Deus, para ele, é sinônimo de incessante atividade na direção do bem, é o constante “vir-a-ser” do Universo, atuando por todos os meios e por todas as formas, para atingir o objetivo ideal. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de O Livro dos Espíritos: “O homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinou. Ele se instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.”

A renovação do homem implica a renovação social – mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita. Ora, querermos ficar no conceito de uma renovação puramente individualista seria um contra-senso, simples ignorância da estrutura social como um todo. Que diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu aspecto de conjunto, mas somente de cada um dos tijolos, isoladamente? E quem poderia negar, dentro da concepção espírita, que o homem não é um indivíduo abstrato, mas parte integrante do todo social, sobre o qual exerce a sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante simbiose, a sua evolução e a evolução coletiva? Como, pois, isolarmos o homem, para que o Espiritismo o trabalhe no espaço, independentemente das suas raízes gregárias?

A função do Espiritismo é a renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão coletiva. A propósito, aliás, poderíamos lembrar aos defensores do pensamento isolacionista, a lei maior do Evangelho, que é a do amor ao próximo. Não conheceriam eles o poder do ambiente sobre os indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão que as influências mesológicas determinam, quase sempre, o próprio caráter individual? Não perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o grande e permanente estímulo do progresso individual?

Por uma consciência humanista

Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo fato, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? A massa que hoje se depara à nossa frente, explorada e sofredora, não é apenas o proletariado, mas essa multidão heterogênea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as conseqüências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

Elevar a Terra na escala dos mundos

Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de ação que devemos empregar. Simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialético. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de-referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a de comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Atos, ou ainda as recentes colônias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialético, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objetivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmônico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito coletivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialética.

Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução coletivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialética”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante em meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milênio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

J. Herculano Pires

– FIM –

Notas:


[1] Usamos o original da terceira edição francesa, de 1868, revista por Kardec. Na tradução brasileira da FEB, a palavra “domination” foi traduzida por “demolição”.