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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Curso Dinâmico de Espiritismo-J. Herculano Pires

 

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J. Herculano Pires

Curso Dinâmico de Espiritismo

O Grande Desconhecido

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John Martin

A Natureza

Conteúdo resumido

Como o próprio Herculano mostra, logo adiante, muitas pessoas falam do Espiritismo, mas poucos o conhecem adequadamente. Somente aqueles que estudam metódica e profundamente a doutrina podem conhecer o seu verdadeiro significado e objetivo.

Este livro tem a finalidade de eliminar as distorções criadas na mente de grande parte dos que se dedicam ou se interessam pela doutrina espírita. Nele Herculano procura desfazer boatos, eliminar equívocos, além de trazer uma visão séria e coerente desta doutrina que se engrandece a cada dia, proporcionando crescimento espiritual.

“Pitágoras dizia que a Terra é a morada da opinião. Por toda parte encontramos os que opinam. Mas ele ouvia a Música das Esferas, dos mundos rolando no Infinito e sabia que as opiniões humanas são libélulas efêmeras, que hoje voam ao nosso redor e amanhã já não existem mais. Amante da sabedoria, Pitágoras buscava a certeza. Bertrand Russell o imaginava como um homem que tinha um pé no misticismo órfico e o outro no racionalismo do futuro.

Todos nós somos mais ou menos pitagóricos. Ouvimos o zumbido permanente das opiniões humanas, sem perceber nem de leve a música celeste, mas procuramos firmar pelo menos um pé no estribo da Razão, para montarmos em Pégaso, o cavalo alado. Cavalgar no Inefável é buscar a unidade perdida das coisas e dos seres. Do sangue de Medusa nasceu Pégaso, como do suor dos homens nasce na Terra a Divina Psique. Mas para vê-la e ouvi-la teremos de nos apoiar nos poderes da Razão, que nos dá a medida inflexível da Verdade.”

(Palavras do Vagabundo de Knut Hansum, que contemplava na distância a Vila de Trovatne, como um risco de giz na neve.)


O Grande Desconhecido

Todos falam de Espiritismo, bem ou mal. Mas poucos o conhecem. Geralmente o consideram como uma seita religiosa comum, carregada de superstições. Muitos o vêem como uma tentativa de sistematização de crendices populares, onde todos os absurdos podem ser encontrados. Há os que o aceitam como nova Goécia, magia negra da Antigüidade disfarçada de Cristianismo milagreiro. Grandes cientistas se deixaram envolver nos seus problemas e se desmoralizaram. Outros entendem que podem encontrar nele a solução para todos os seus problemas, conseguir filtros de amor e os 13 pontos da Loteria Esportiva. E na verdade os seus próprios adeptos não o conhecem. Quem se diz espírita arrisca-se a ser procurado para fazer macumba, despachos contra inimigos ou curas milagrosas de doenças incuráveis. Grandes instituições espíritas, geralmente fundadas por pessoas sérias, tornam-se às vezes verdadeiras fontes de confusão a respeito do sentido e da natureza da doutrina. O Espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o Grande Desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que o atacam e criticam.

Durante muito tempo ele foi encarado com pavor pelos religiosos, que viam nele uma criação diabólica para perdição das almas. Falar em fenômenos espíritas era provocar votos de esconjuro. Ler um livro-espírita era pecado mortal, comprar passagem direta para o Caldeirão de Belzebu. Médicos ilustres chegaram a classificar o Espiritismo como fábrica de loucos. Quando começaram a surgir os hospitais espíritas para doenças mentais, alegaram que os espíritas procuravam curar loucos que eles mesmos faziam para aliviar suas consciências pesadas. E quando viram que o Espiritismo realmente curava loucos incuráveis, diziam que os demônios se entendiam entre si para lograr o povo.

Hoje a situação mudou. Existem sociedades de médicos espíritas e as pesquisas de fenômenos mediúnicos invadiram as maiores Universidades do Mundo. Não se pode negar que a coisa é séria, mas definir o Espiritismo não é fácil. Porque ninguém o conhece, ninguém acredita que se precisa estudá-lo, pensam quase todos que se aprende a doutrina ouvindo espíritos. Os intelectuais espíritas são confundidos com médiuns. Quem escreve sobre Espiritismo não escreve, faz psicografia. Acham que para estudar a doutrina é preciso desenvolver a mediunidade e receber maravilhosas lições de Espíritos Superiores.

Não obstante, o Espiritismo é uma doutrina moderna, perfeitamente estruturada por um grande pensador, escritor e pedagogo francês, homem de letras e ciências, famoso por sua cultura e seus trabalhos científicos e que assinou suas obras espíritas com o pseudônimo de Allan Kardec. Saber isso já é saber alguma coisa a respeito, mas está muito longe de ser tudo. Doutrina complexa, que abrange todo o campo do Conhecimento, apresenta-se enquadrada na seqüência epistemológica de:

a) Ciência – como pesquisa dos chamados fenômenos paranormais, dotada de métodos próprios, específicos e adequados ao objeto que investiga, tendo dado origem a todas as ciências do paranormal, até à Parapsicologia atual e seu ramo romeno, que se disfarça sob o nome pouco conhecido de Psicotrônica, para não assustar os materialistas.

b) Filosofia – como interpretação da natureza dos fenômenos e reformulação da concepção do mundo e de toda a realidade segundo as novas descobertas científicas; aceita oficialmente no plano filosófico, consta do Dicionário Filosófico do Instituto de França; no Brasil, reconhecida pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, constando do volume Panorama da Filosofia em São Pauto, edição conjunta do Instituto e da Universidade de São Paulo, coordenação do Prof. Luiz Washington Vitta.

c) Religião – como conseqüência das conclusões filosóficas, baseadas nas provas da sobrevivência humana após a morte e nas ligações históricas e genésicas do Cristianismo com o Espiritismo; considerado como a Religião em Espírito e Verdade, anunciada por Jesus, segundo os Evangelhos; religião espiritual, sem aparatos formais, dogmas de fé ou instituição igrejeira, sem sacramentos.

Essa seqüência obedece as leis da Gnosiologia, pelas quais o conhecimento começa nas experiências do homem com o mundo e se desenvolve nas ilações do pensamento, na cogitação filosófica e determina o comportamento humano dentro do quadro da realidade conhecida; como no Espiritismo essa realidade supera os limites da vida física, a moral se projeta no plano das relações do homem com a Divindade, adquirindo sentido religioso.

Colocado assim o problema, a complexidade do Espiritismo se torna facilmente compreensível. Tudo no Universo se processa mediante a ação e o controle de leis naturais, que correspondem à imanência de Deus no Mundo através de suas leis. Toda a realidade verificável é natural, de maneira que os espíritos e suas manifestações não são sobrenaturais, mas fatos naturais explicáveis, resultantes de leis que a pesquisa científica esclarece. O Sobrenatural só se refere a Deus, cuja natureza não é acessível ao homem neste estágio de sua evolução, mas o será possivelmente, quando o homem atingir os graus superiores de sua evolução. Todas as possibilidades estão abertas e franqueadas ao homem em todo o Universo, desde que ele avance no desenvolvimento de suas potencialidades espirituais, segundo as leis da transcendência.

Este volume procura dar uma visão geral do Espiritismo em forma de exposição livre, sem um esquematismo didático, mostrando as conotações da Doutrina com as posições culturais da atualidade. Não se trata da suposta atualização tentada por autores que desconhecem as dimensões do Espiritismo e não podem relacioná-la com os avanços científicos, tecnológicos, filosóficos e religiosos da atualidade. A atualização, no caso, é do método expositivo, que revela a plena atualidade da Doutrina e desenvolve alguns temas kardecianos em forma de exposição mais minuciosa, para melhor compreensão dos leitores. A atualização da linguagem e da terminologia doutrinárias nas obras de Kardec é uma pretensão descabida. Cada doutrina, científica ou filosófica, tem a sua própria terminologia, que só se transforma diante de novos fatos ocorridos na pesquisa. Por outro lado, essas atualizações, como sabem os especialistas, geralmente se transformam em atentados à doutrina, pela falta de conhecimento dos que pretendem fazê-las. Uma doutrina se atualiza na proporção em que evolui, com acréscimos reais de conhecimentos no desenvolvimento de seus princípios. Não existe, no mundo atual, nenhum centro de pesquisas e estudos espíritas que tenha avançado legalmente além de Kardec, através da descoberta de novas leis da realidade espírita. O Espiritismo avança, pelos seus princípios e os seus conceitos, muito além da realidade atual. E mesmo que não avançasse, ninguém teria o direito de interferir na obra de Kardec, como na obra de qualquer outro cientista. É livre o direito de contestar através de outras obras, mas não há direito nenhum que permita a um pintamonos desfigurar as obras clássicas da cultura mundial.

Os capítulos deste livro correspondem a exposições doutrinárias feitas pelo autor em várias ocasiões, em palestras feitas com debates, até mesmo em numerosas Faculdades de Teologia católicas e protestantes, bem como em debates de televisão. Por isso, são capítulos escritos em linguagem livre, dando ao leitor a possibilidade de discutir os problemas consigo mesmo, tentando refutar as teses expostas. Esperamos que os meios espíritas, particularmente, aproveitem estes capítulos para uma incursão mais corajosa nas possibilidades de conhecimento que o Espiritismo nos oferece em todos os campos das atividades humanas e em face dos múltiplos problemas que nos desafiam nesta hora de transição da cultura humana.

São anos de estudos, experiências, investigações e intuições espirituais que se acumulam nestas páginas, ao correr das teclas, mas sob rigoroso controle da razão. Que no Espiritismo tudo deve ser rigorosamente submetido a apreciações e críticas racionais.



O Processo Cultural

No desenvolvimento da Cultura, em nosso mundo, podemos assinalar três fases bem definidas no processo histórico:

a) Culturas Empíricas;

b) Culturas Religiosas;

c) Culturas Científicas.

As Culturas Empíricas se desenvolvem nas relações primárias do homem com a Natureza, através das experiências naturais. Nessas experiências o homem elabora os três elementos básicos de toda a cultura:

• a linguagem.

• o rito.

• o instrumento.

Não se trata de uma elaboração sucessiva, mas sincrônica, de uma reelaboração das experiências animais. Tudo se encadeia no Universo, diz O Livro dos Espíritos. Nesse encadeamento as vozes animais se transformam na linguagem humana, os ritos em rituais da sociabilidade humana e dos cerimoniais religiosos, as garras dos animais se projetam nos instrumentos de pau e pedra de que o homem se serve para agir sabre a Natureza e adaptá-la as suas necessidades de sobrevivência. As experiências que desenvolvem a Cultura Empírica excitam as potencialidades do espírito, desenvolvendo-as nas tribos e nas hordas. A lei de adoração, proveniente da idéia inata de Deus no homem, gera a reverência pelos poderes misteriosos da Natureza e institui os primeiros rituais de reverência aos pagés ou xamãs e feiticeiros, bem como ao cacique e aos chefes guerreiros. O culto às divindades da selva nasce desses rituais.

A Cultura Empírica gera a Cultura Religiosa das primeiras tribos sedentárias. A idéia de Deus se define mais nítida com o desenvolvimento da Razão, sob a influência dos ritos da Natureza, nas primeiras civilizações agrárias e pastoris. O milagre das germinações, no ritmo regular das estações, e a proliferação dos rebanhos provam a existência de inteligências controladoras dos fenômenos naturais e protetoras do homem. O animismo, projeção da alma humana nas coisas, impregna a Natureza com uma vida factícia em que a pedra, a árvore, o rio, o bosque, a montanha, o mar, tudo fala e pensa em condições humanas. As manifestações espíritas provam a realidade anímica da Natureza. A figura de Deus, Ser Superior, criador e dominador do mundo, impõe-se ao homem na forma necessariamente humana. E como Deus não pode estar sozinho, multiplica-se em mitos que simbolizam as suas várias atividades, ligadas às atividades humanas. Ao mesmo tempo, as forças destruidoras e as manifestações de espíritos malignos geram os mitos da oposição a Deus. Nasce o Diabo desse contraste, estabelecendo a luta entre o Bem e o Mal, sujeitando o homem à esperança da proteção divina e ao temor dos poderes maléficos.

A Cultura Religiosa se configura na síntese dessa dialética do invisível e do visível, do sentimento e da sensação, fazendo evoluírem as civilizações agrárias e pastoris para a fase das civilizações teocráticas que se desenvolvem no Oriente, nas regiões em que brilha a luz em cada alvorecer. Os ritmos da Terra e do Céu, do dia e da noite, as estações do ano, o Sol e a Lua, as constelações anunciadoras de cada mudança no tempo, a chuva e as inundações, os terremotos, as erupções vulcânicas, as pestes, as pragas, o relâmpago, o raio, as tempestades exigem a disciplinação do caos e ao mesmo tempo a complexidade dos cultos. Os soberanos das nações são filhos de Deus e possuem poderes divinos. A Cultura se desenvolve na argamassa dos sentimentos e das sensações. A Fé se define como sentimento e sensação em misturas condicionadas pela Razão, expressa nas formulações filosóficas. A Teologia brota desse complexo de mistérios como a Ciência Suprema dos videntes e dos profetas, dos homens mais do que homens de que falaria Descartes, homens privilegiados pela sabedoria infusa que desce do Céu para iluminar a Terra. A Cultura Religiosa é uma oferenda celeste que os homens simplesmente homens não podem tocar com suas mãos indignas, não podem avaliar com suas mentes entorpecidas pelos interesses materiais e as ambições inferiores da vida perecível. O mundo se divide em duas partes inconciliáveis: surgem os conceitos do Sagrado e do Profano. As Culturas Religiosas desligam-se da tradição empírica, rejeitam a experiência natural, relegando-a ao campo do profano, do pecaminoso. Entregam-se à alienação do suposto, do imaginário. O Cristianismo envolve-se nas contradições humanas: cai na simonia, no comércio ambicioso de sacramentos e indulgências, pregando a renúncia ao mundo e a santidade da pobreza; proclama a humildade como virtude e investe-se do poder político; denuncia o paganismo e o judaísmo como heréticos e assimila os seus elementos rituais e a sua política gananciosa; prega o Reino de Deus e apossa-se dos reinos terrenos; impugna a sabedoria grega e constrói o seu saber com decalques de Platão e Aristóteles; ensina a fraternidade e promove guerras fratricidas em nome de Deus; erige-se em religião do Deus Único e divide Deus em três pessoas distintas; institui o celibato como virtude e faz comércio ambicioso do sacramento do matrimônio; combate a magia e reveste o seu culto de poderes mágicos; luta contra as heresias e comete a suprema heresia de submeter Deus ao poder do sacerdócio no ato eucarístico; profliga a idolatria e enche os seus templos com ídolos copiados da idolatria mitológica, chega ao máximo da alienação estabelecendo o sistema fechado das clausuras e dos mosteiros segregados; prega o Evangelho e nega ao povo o acesso aos textos que considera privativos do clero; proclama a supremacia espiritual do amor e semeia o ódio aos que não aceitam os seus princípios.

A alienação cristã faz da cultura um sincretismo de absurdos assimilados de dogmas e rituais bastardos de igrejas e ordens ocultas da mais alta Antigüidade, transformando o conhecimento em gigantesca colcha de retalhos em que as próprias vestes sacerdotais e paramentos do culto são copiados de antigas e condenadas igrejas. A cultura cristã se desenvolve com pressupostos falaciosos e um fabulário ridículo enxameado de superstições erigidas em verdades absolutas, provindas de revelações divinas. A verdade artificial da sabedoria eclesiástica encobre a realidade com o espesso véu das elucubrações dos teólogos, modelos de esquizofrenia catatônica e megalomania delirante. A cultura em evolução nas fases anteriores cai na estagnação de um charco de mentiras sagradas, pílulas doiradas de um anestésico. Interrompe-se o processo cultural. Não se pode conhecer mais nada. Cada Igreja tem a sua verdade própria e inverificável, sendo a Igreja Cristã a mais poderosa barreira a qualquer tentativa de investigação da realidade. A morte cruel é o prêmio dos que se atreverem a rasgar o Véu de Isis para mostrar o corpo da Verdade Nua.

O desenvolvimento da imaginação criadora levara a cultura a um solipsismo devorador. Tudo estava esclarecido, a imaginação dos poetas (considerados profetas) resolvia todos os mistérios em termos de mitologia grega ou tradição romana, os teólogos solucionavam os problemas da vida e da morte com belas frases em latim, as Igrejas detinham a Verdade Absoluta, amaldiçoando-se entre si, e velavam pela ordem cultural perseguindo e matando em nome de Deus os atrevidos que tentassem profanar a Palavra de Deus, escrita na Bíblia por velhíssimos judeus que haviam, num complô com César e seu legado Pilatos, condenado à flagelação e à cruz um jovem carpinteiro que tivera audácia de se apresentar como o Messias de Israel.

A Cultura Científica teve de romper a golpes de atrevimento a selva selvaggia dessa cultura religiosa inconseqüente, contraditória e arrogante, empalhada como um pássaro morto em velhos pergaminhos de uma sabedoria feita de suposições e elucubrações pretensiosas. O mundo dos homens desligara-se totalmente da realidade, fechando-se num casulo de formulações abstratas. Mais bizantina que Bizâncio, Roma sofismava sobre problemas que se recusava a conhecer. Só a ignorância total e a ingenuidade das populações bárbaras poderia aceitar. Após a queda do Império do Ocidente, comprovava-se historicamente a afirmação evangélica de que o ensino de Jesus seria deturpado e necessitaria de tempo para que os homens pudessem compreendê-lo. O milênio medieval teria a função de desenvolver a razão como guia do pensamento e freio da imaginação, ao fogo das tragédias e loucuras de um misticismo criminoso, para que, no Renascimento, os frutos de experiências dolorosas abrissem perspectivas para o desenvolvimento de uma cultura realista, apoiada em pesquisas metódicas da realidade. Foi então que a esquizofrenia mundial revelou-se em definitivo: o espírito humano estava dividido numa cultura fantasiosa, formada pela dogmática absurda das religiões, e numa cultura rebelde, atrevida e exigente, que arrancava os homens da ilusão de um saber confuso, para oferecer-lhes o saber legítimo que iniciara a fase das experiências empíricas e se negara a si mesma no desenvolvimento alucinado do fanatismo religioso. O movimento da Reforma, desencadeado por Lutero, em conseqüência das lutas de Abelardo e das proposições de Erasmo de Roterdam, em conjugação aparentemente ocasional com as tentativas de pesquisas objetivas de Galileu, Copérnico, Giordano Bruno e outros mártires da Ciência nascente, marcavam os rumos de uma nova concepção do mundo e do homem. Abelardo foi o precursor medieval de Descartes, que por sua vez foi o precursor de Kardec. Aos fundamentos emocionais da Fé absurda e cega, os pioneiros do retorno ao real ofereciam os fundamentos da Razão esclarecida e da pesquisa científica. A Verdade ressurgia das cinzas das fogueiras criminosas e a Fé de olhos abertos substituía a ceguinha esclerótica das sacristias. Mas a luta pela Verdade da concepção cristã restabelecida só atingiria o seu apogeu nos meados do Século XIX, com a Codificação do Espiritismo, através das pesquisas pioneiras de Kardec sobre os fenômenos mediúnicos, hoje admitidos pela Ciência com a denominação de paranormais. Kardec provara que os médiuns não eram anormais, como pretendiam os investigadores da Medicina e da Psicologia, nem sobrenaturais, como pretendiam os defensores de dogmas obsoletos, mas naturais e normais. A Mediunidade se impunha à pesquisa dos cientistas exponenciais da época, que rasgavam ao mesmo tempo o Véu do Templo, revelando os seus mistérios, os Véus de Isis, para desvendar o sentido dos símbolos mitológicos. Os homens começaram então a aprender que não sabiam nada e tinham de lutar para descobrir a Verdade escondida atrás da aparência enganosa das coisas e dos seres. A Ciência Espírita instalou-se no mundo, com as conseqüências necessárias da Filosofia Espírita e da Religião em Espírito e Verdade. O Espiritismo, em seus três aspectos, está hoje confirmado pela Cultura Científica e seu alcance cósmico se confirma no ritmo acelerado das conquistas culturais do século, restabelecendo o ensino deturpado pelas ambições humanas, que Jesus de Nazaré semeou em palavras de vida e imortalidade nas almas de todos os tempos.


2
O Espírito como Elemento da Natureza

Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrar-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos de sagrado e profano e não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação, de fuga necessária do homem à dureza da realidade objetiva, onde as leis da estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um trânsfuga do real. O anseio de transcendência do homem, não esclarecido em sua motivação, o leva a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade, imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções teológicas. Os principais fatores desse processo são:

• a intuição da indestrutibilidade do ser;

• o medo da morte como aniquilamento total;

• o desejo de libertação do condicionamento material.

O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se reconhece como forma existencial subjetiva integrada na estrutura objetiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efêmero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação o leva a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenômenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemônio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reação violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas em seu livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A indestrutibilidade do ser, e portanto a sua imortalidade, decorria espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.

O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou, Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade, ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele era médium vidente e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito protetor, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam nas tríades druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de Sócrates: o materialismo inconseqüente, mas pelo menos racional.

Era natural e inevitável. Só a volta à experiência empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da imaginação excitada, tinha de chorar-se com a dúvida metódica de Descartes e logo mais com o ceticismo desolador e o materialismo árido. Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjetiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.

Era o que Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceita, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem dimensões diversas da realidade única. Não podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência atual o demonstra, sem ainda compreender as suas conexões profundas e sutis.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da explicação kardeciana:

• Deus

• Espírito

• Matéria

Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projeta na sua criação e a ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira, o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu a teoria da mônada para explicar filosoficamente o processo da criação. As mônadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da dinâmica das mônadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:

• Mineral

• Vegetal

• Animal

• Hominal

• Espiritual.

Esse processo criador é explicado por Kardec, sob orientação do Espírito da Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos reinos superiores. Léon Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei Suprema, controla todo esse processo em seus mínimos detalhes. A alma é a mônada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre haverá em nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela necessidade de ordenação em nossa mente. A própria Criação é infinita, incessante. Gustave Geley, metapsiquista francês, considera a mônada como um dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em seres, até chegar no homem, que por sua vez, tomando consciência do seu destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude, dos espíritos superiores.

Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam em suas teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece, mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira: Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial proclama: A existência é subjetividade pura. E a existência, no caso, é o espírito, que faz do homem um existente, um ser que existe, sabe que é e por que existe e busca a sua transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas luta para transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe' à nossa mente, afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.


3
As Ligações do Homem com a Terra

As pesquisas antropológicas e psicológicas confirmam a conhecida expressão de Camões nos Lusíadas: o homem, esse bicho da terra, tão pequeno. O mito de Adão e Eva peca pela distorção histórica, constatando que o homem já era uma realidade cultural no mundo. Adão e Eva nasceram tarde demais, forjados pela mitologia judaica retardatária e sociocêntrica. (Veja-se o livro Adão e Eva, nesta série). Mas a verdade é que o homem não surgiu na Terra como um ser decaído. Pelo contrário, brotou das entranhas do planeta, num parto genésico, produto da elaboração das leis naturais. E isso em corpo e espírito, segundo a tese da evolução criadora de Bergson. Feito do limo da Terra, na expressão bíblica, a origem divina do homem não está no milagre fantástico do fiat mas na remota insuflação das mônadas no cosmo – embrionário e caótico. A teoria científica da evolução considera o homem como um todo evolutivo de natureza material, rejeitando a independência da sua essência espiritual. Darwin afirma que o homem resulta simplesmente da evolução das espécies animais, é um animal que desenvolveu a razão. A posição espírita de Alfred Russell Wallace, colega de Darwin, foi simplesmente rejeitada pela Ciência. Hoje o preconceito materialista foi superado no meio científico mais avançado, com os últimos avanços da Física Nuclear. A concepção espírita do homem volta a predominar e a Parapsicologia sustenta, através de suas pesquisas, que é um ser duplo, que possui um conteúdo extrafísico, segundo a cautelosa expressão de Rhine. A Ciência Espírita confirmou a sua validade científica e a eficácia dos seus métodos de pesquisa.

As ligações do homem com a Terra são de ordem genésica e se desenvolveram numa seqüência evolutiva complexa. O esquema dessa seqüência esclarece a expressão de Léon Denis que já mencionamos:

a) reino mineral – a alma dorme na pedra o sono preparatório das suas vibrações atômicas ocultas;

b) reino vegetal – a alma sonha na germinação de um mundo mágico de fibras, folhas, flores e frutos, tentando livrar-se do chão e projetar-se às alturas. O vento movimenta suas folhas e ramos e as raízes penetram no solo atraídas pelos veios d'água subterrâneos, movimentadas pelo tropismo que também atrai folhas e ramos na direção da luz, nos primeiros ensaios da motilidade. O vegetal é doação, como observou Hegel, o momento em que as energias monádicas se abrem para a doação de si mesmas ao mundo, numa antecipação do altruísmo humano.

c) reino animal – a estrutura monádica, aberta no vegetal em doação de si mesma, retrai-se para centralizar no centro monádico (espécie de núcleo atômico) o controle geral de sua estrutura, desprendendo-se do chão e assumindo a responsabilidade instintiva da sua motilidade, da sua capacidade de movimentar-se sozinha. As formas da motilidade se multiplicam segundo as especificações do desenvolvimento das potencialidades da mônada:

- o rastejar, quase sempre acompanhado do escavar, na conservação dos automatismos de defesa e proteção adquiridos nas fases trópicas da movimentação das raízes no subsolo;

- o andar, desenvolvimento da capacidade de equilíbrio sobre o solo, com apoio em garras, patas, movimentação muscular, prenunciando o aparecimento dos bípedes;

- o saltar, primeira tentativa de libertar-se da força de gravidade, prenunciando o vôo, com reminiscências inconscientes do equilíbrio das ramagens no alto, sopradas pelo vento;

- o nadar, forma de equilíbrio provinda das primeiras sensações aquáticas no fundo dos mares, lagos e rios, exigindo o domínio das correntes líquidas na flutuação, prenúncio do equilíbrio do vôo no ar;

- o voar, forma sintética de todas as modalidades de equilíbrio, em que todas as energias da motilidade entram em ação, libertando o ser nascente da necessidade de apoios ligados à superfície do solo ou da água, levitações de um futuro distante em que ele terá de se projetar nas dimensões superiores do Cosmos e nas hipóstases dos mundos espirituais.

O nadar e o voar marcam o início e o fim das experiências da motilidade, segundo o esquema infinito de desenvolvimento das potencialidades da mônada, ou seja, do princípio inteligente que é a matéria-prima do ser. O esboço esquemático que apresentamos é apenas um esboço geral, desprovido das minúcias que só uma investigação mais profunda poderia nos dar, para termos uma visão grandiosa do plano divino de elaboração ou formação do Ser, da síntese final do gigantesco processo ontogênico, apresentada na criatura humana superior. As implicações éticas desse processo, para uma consciência esclarecida e ponderada, são suficientes para classificar de boçais todas as teorias que pretendem estabelecer sistemas políticos e sociais que aviltam a dignidade humana em favor de interesses mesquinhos.

Por outro lado, essa visão espírita do processo genético reduz à condição de um fabulário ingênuo, típico das civilizações agrárias e pastoris, toda a mitologia bíblica, sobre a qual as Igrejas Cristãs fundaram as suas teologias. A Palavra de Deus nunca foi pronunciada em nenhuma língua humana, mas na linguagem monádica das leis irreversíveis que regem o Infinito, desde as constelações atômicas de um grão de areia até as galáxias superiores. Deus não fala em palavras, fala em mônadas. Suas frases não são escritas em nenhuma língua inexpressiva dos planos inferiores, e suas frases não estão sujeitas à exegese das mentes relativas. Cada palavra da linguagem divina é um ser e cada frase é um mundo, cada discurso uma constelação com milhões de anos-luz de extensão. Não obstante, nosso pensamento pode compreender essa linguagem divina, se tivermos essa virtude tão simples e tão difícil que se chama simplicidade e floresce na humildade.

A Terra e o Homem formam uma unidade, pois as nossas ligações com o planeta foram estabelecidas na Gênese. Mas a Terra não é apenas o planeta material que nos suporta. Espinosa, cujas ligações com o Espiritismo são flagrantes na Ética, ensinou a existência da Natureza Naturata e da Natureza Naturans. Tudo o que temos no plano natural exterior são efeitos produzidos pelas causas profundas da Natureza invisível. As duas Naturezas, que Platão chamou de Sensível e Inteligível se interpenetram. Hoje a Ciência reconhece, embora ainda de maneira incipiente, que os mundos de matéria e antimatéria são interpenetrados. Nessa interpenetração dinâmica o homem é um point d'optique, um ponto visual em que o Sistema do Mundo se reflete por inteiro. As duas Naturezas do Mundo se revelam no homem como alma e corpo. Nossa alma se liga à Alma da Terra (Natura Naturans) e nosso corpo se liga ao corpo da Terra (Natura Naturata). Por isso, ao morrer, nosso corpo retorna à terra de que nasceu e nosso espírito não voa para mundos distantes, mas permanece imantado ao domicílio terreno. Só quando o espírito atingiu e ultrapassou os limites da evolução terrena tem o direito de elevar-se aos mundos superiores. As condições desses mundos não são acessíveis aos espíritos que ainda se encontram imantados ao pó da Terra.

Além dos motivos genésicos da nossa imantação ao solo e à atmosfera terrena, às hipóteses ou esferas da erraticidade, temos ainda:

a) os compromissos e as dívidas que contraímos, em encarnações sucessivas, com pessoas e comunidades, e que só se apagam com os resgates e as reparações que teremos de enfrentar em novas reencarnações;

b) as afeições que nos prendem a criaturas que continuem em trânsito no planeta;

c) os trabalhos e deveres que geralmente protelamos em encarnações sucessivas e que aumentam na proporção do nosso desleixo, quando não os somamos a novas protelações;

d) as exigências da consciência no tocante a realizações mal acabadas ou negligenciadas por interesses imediatistas;

e) o menosprezo com que enfrentamos as exigências do nosso aprendizado no plano moral e cultural, deixando de adquirir os elementos indispensáveis à convivência com espíritos elevados.

Podemos examinar nós mesmos, no momento presente, as nossas condições no tocante a esses pontos, para daí concluir se estamos ou não em condições de pleitear – como no episódio evangélico dos Filhos de Zebedeu – um lugar além dos limites planetários. Mas se não tivermos a humildade necessária para esse balanço, é melhor nos abstermos de fazê-lo, para não alimentar com a nossa vaidade e o nosso orgulho os motivos de nossa imantação à Terra. Os espíritos errantes de que trata Kardec são precisamente os que ainda não conseguiram determinar a sua localização num plano superior. Esses espíritos permanecem errando entre o chão do planeta e as esferas espirituais da Terra. Vão e voltam em sucessivas reencarnações, como os encarnados que erram pelos caminhos do mundo sem se fixarem em nenhum lugar. Plotino afirmava, no Neoplatonismo, que somos em geral almas viajoras, incapazes de permanecer no mundo espiritual. Sentimos a atração da matéria – esse visgo que prende o espírito, segundo Kardec – e nos precipitamos em novas encarnações no plano terreno. Por isso Jesus insistiu na necessidade do desapego em tudo o que fazemos. Nossa tendência a nos apegarmos afetivamente às coisas e aos seres retarda a nossa evolução e nos mantém na erraticidade, muitas vezes através de reencarnações que são cópias das anteriores. A repetição excessiva das mesmas condições gera os sofrimentos cada vez mais penosos, forçando-nos a avançar.

O Alto não deseja que nos tornemos anjos antes do tempo, mesmo porque isso é impossível. Nossa evolução é regida por leis inflexíveis. É inútil pretendermos avançar além das nossas forças. Mas é também inútil querermos continuar indefinidamente na Terra. Na fase atual de transição da vida planetária que também evolui sem cessar – estamos todos acuados pelas forças da evolução e temos de atender às exigências da consciência e às intuições dos espíritos benevolentes, para não ficarmos sujeitos às migrações em mundos inferiores. Essas migrações são forçadas, mas não constituem castigo nem condenação. São medidas administrativas, como as tomadas nas escolas em que haja reprovações em massa. Os espíritos que não progrediram não estão em condições de permanecer no planeta que evoluiu e são enviados a outros planetas de grau inferior, para refazerem o aprendizado, depois do que poderão voltar ao planeta de origem. Os mundos são solidários, ensina Kardec, pois neles evolui a Humanidade Cósmica.


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Sexo e Genética no Espiritismo

Falar em sexo é falar em moral, porque o sexo se tornou, na cultura religiosa, o pivô de todos os sistemas morais. Nas civilizações agrárias e pastoris o problema sexual, embora carregado pelos tabus da selva, não se deixou esmagar por essa carga. A moral das primeiras civilizações revelou-se, de modo geral, muito aberta em relação ao sexo, chegando mesmo a encará-lo como sagrado. Na remota Suméria e mesmo nas civilizações teocráticas a era fálica desenvolveu-se de maneira espantosa. O falo, ou, como dizia Rilke, o membro da geração, era objeto de culto religioso. O ato sexual era considerado sagrado. Podemos ver na Bíblia que a civilização agrária judaica foi, durante os primeiros tempos, bastante liberal no tocante ao sexo. Mas na proporção em que as questões de linhagem e direitos sucessórios exigiram disciplinação, o sexo foi sendo encarado com progressivas suspeitas.

Na Grécia e na Roma arcaicas a licença sexual chegou ao extremo das festas religiosas em homenagem aos deuses da sensualidade e da fecundidade. Por todo o Antigo Oriente o culto sexual dominou amplamente, aprimorando-se as cerimônias do sexo com requintes dionisíacos na China, no Japão, na Arábia, na Pérsia e assim por diante. Técnicas requintadas ainda subsistem atualmente em vários países, servindo para o incentivo do comércio turístico e pesando favoravelmente na balança de exportações. Os ritos da virilidade produziram em Esparta a prática oficial e obrigatória do homossexualismo na educação dos adolescentes, com repercussões acentuadas em Atenas, na Pérsia e em Roma. Na época de Sócrates o problema era encarado com ambivalência, como verificamos no Banquete de Platão. Mas ainda nessa época os gregos chegaram a organizar, como relata Werner Laeger, um exército de andrógenos para conquistar Siracusa, partindo da idéia de que os amantes não se acovardavam quando juntos e queriam brilhar aos olhos uns dos outros. Episódio que mostra a plurivalência do sexo nas culturas clássicas.

No Cristianismo o sexo caiu em desgraça. Nem mesmo os tópicos bíblicos altamente sensuais puderam salvá-lo. Os cristãos caíram no complexo de castração. O sexo transformou-se em pecado mortal e a Igreja instituiu o celibato obrigatório dos clérigos e restabeleceu a virgindade sagrada das vestais, do culto pagão da deusa Vesta. Em conflito com o próprio mandamento divino do crescei e multiplicai-vos, a geração tornou-se impura e as crianças não nasciam inocentes, mas maculadas pelo pecado original. O horror ao sexo provocou epidemias de crises místicas nos conventos e mosteiros, dando incremento às perversões sexuais e aos delírios de histeria. Os íncubos e súcubos, demônios pervertidos, atacavam os padres e as freiras nos dormitórios sagrados, levando-os a pecados horrendos e a penitências e cilícios que geravam explosões satânicas de masoquismo. A asfixia das fontes biológicas da espécie custava tão caro que os clérigos tiveram de apelar à hipocrisia e à mentira. Bispos criaram taxas especiais para que os clérigos pudessem socorrer-se às ocultas, escapando aos delírios do sexo com a compra de autorizações eclesiásticas para pecar sem perigo para a pureza suposta das almas.

E todas essas loucuras, que perduram ainda, repercutiram por todo o mundo em atrocidades de toda a espécie, perseguições e torturas, excomunhões e maldições, fogueiras assassinas, tudo ao canto das litanias piedosas, ao clamor diuturno das preces, no desespero e na angústia das famílias mutiladas, em nome do Cristo que salvara a mulher adúltera da lapidação dos hipócritas e transformara Madalena em santa, porque ela muito amara. O tempo passou, é verdade, mas as almas esmagadas perderam-se na revolta impotente, marcadas a fogo pela descrença em Deus e nos homens.

Não fazemos um libelo tardio, mas não se pode tratar dessas fases históricas com a indiferença dos cínicos. A lição do passado precisa gravar-se em nossas mentes de maneira indelével, com as cores trágicas da loucura, para não cairmos de novo nas armadilhas da arrogância e da ferocidade selvagem que continuam armadas em nós mesmos. Seria um crime de lesa-humanidade ocultar essa verdade áspera. E mais ainda, seria uma traição ao futuro passar de leve sobre um problema tão grave, tão carregado de conseqüências que ainda continuam a ameaçar-nos. A herança tenebrosa corre ainda em nossas veias. A peçonha da serpente edênica envenena o nosso sangue, e o seu sibilar remoto ainda cicia aos nossos ouvidos, incitando-nos à loucura de novas tentativas de santidade e pureza extremas, como se pudéssemos sair do barro da carne para elevar-nos, num segundo, à condição angélica. A pretensão da santidade, formal, feita de atitudes fictícias, de fanatismo bronco, de orgulho satânico, ainda empolgam os que se julgam melhores do que os outros. As duras lições do passado nos mostram que só podemos nos aproximar do Cristianismo através da humildade consciente e da simplicidade espontânea. Basta um grãozinho de orgulho, de pretensão a sabereta ou santo, para perdermos o Cristo de vista e entrarmos na procissão dos anjos de asas de papel.

O Espiritismo nos oferece a última oportunidade de voltarmos a Cristo e reencontrarmos o seu ensino e o seu exemplo. Em todas as religiões cristãs exalta-se a importância do exemplo de Cristo, mas a própria instituição igrejeira, herdada do judaísmo e do paganismo, opõe-se brutalmente a qualquer assimilação da naturalidade cristã pelos adeptos. A erva daninha da vaidade pessoal e de grupo asfixia com suas folhas de urtiga as sementes do Semeador. A suntuosidade das Federações e dos Centros Espíritas com instalações pomposas excitam a vaidade das pessoas simples que as integram com boas intenções, mas logo se embriagam com as posições que assumem, considerando-se autoridades doutrinárias e portanto capazes de ditar normas, estabelecer disciplina, fixar posições doutrinárias e exigir obediência e respeito. Convencidos de possuir um conhecimento superior, muito acima da fatuidade da sabedoria igrejeira e da ignorância espiritual dos sábios materialistas, criaturas desprovidas de um mínimo de cultura geral julgam-se aptas a ensinar a Verdade e até mesmo de reformular a Doutrina com os dados supostos de suas precárias experiências. Não conseguem sequer assimilar os princípios espíritas, mas porque se tornaram figuras socialmente importantes nos quadros institucionais passam a falar grosso e a semear na seara o joio de suas especulações ilógicas. Nada mais desolador do que esse espetáculo de ignorância enfatuada, não raro dado por indivíduos de formação universitária mal assimilada, que se apóiam em seus títulos para sustentar o seu falso prestígio. A última novidade que se espalha no meio espírita é a mais velha de todas: a da castidade para homens e mulheres, a fuga ao sexo, esse instrumento do Diabo que é também o instrumento da criação, do povoamento da Terra pelas criaturas de Deus. Esses anjos assexuados que surgem agora, em revoadas místicas, no meio espírita, não são jejunos apenas em questões genéticas, mas também e principalmente em Espiritismo. Nada conhecem da poderosa síntese histórica e espiritual que Kardec nos deixou. Devem ter saído ontem de alguma sacristia medieval escondida num mosteiro de frades analfabetos do deserto, que para servir a Deus andavam descalços e em trapos, guardavam a sua sagrada ignorância como as vestais a sua virgindade sagrada, e não tomavam banho para terem a glória de morrer em cheiro de santidade, ou seja, de suor e sujeira no corpo desnutrido coberto de chagas.

No Espiritismo não há lugar para a volta à era fálica nem para o restabelecimento das castidades forçadas. Na sua natureza de síntese cultural, o Espiritismo coloca o problema sexual acima das antigas condições de ambivalência do sexo. O capítulo sobre a Lei de Reprodução n’O Livro dos Espíritos é decisivo: a lei de reprodução é encarada como lei natural e humana, de ordem moral, correspondendo às exigências divinas da evolução dos seres, das raças e de toda a Humanidade. O celibato é condenado como fuga egoísta aos compromissos sociais, a menos que seja determinado por motivos graves. O sexo não é nem pode ser pecaminoso. Sua função é evidentemente necessária para o progresso dos espíritos. O que se condena é o excesso, o abuso e o aviltamento do sexo. Lei natural, estabelecida por Deus para todas as formas de vida, o sexo é o meio de transmissão da vida na sucessão das gerações. Nos reinos da Natureza, o vegetal, o animal e o hominal, o sexo é a garantia da continuidade da vida e o fator das reencarnações. As superstições anti-sexuais revelam estreiteza mental, tendência ao misticismo igrejeiro do passado, ao beatismo ignorante, ao masoquismo lúbrico e à necrofilia, ou seja, apego mórbido à morte. Esse é um problema bem conhecido em Psicologia e suas conseqüências pertencem ao campo da Psiquiatria. Esse conjunto de elementos negativos produziu no passado religioso as mais estranhas manifestações de delírios pseudo-místicos e desequilíbrios da afetividade. Incontáveis casos de loucura e pseudo-possessões demoníacas brotaram dos conventos e mosteiros medievais pela prática forçada e criminosa de abstinências sexuais que, não raro, acabavam em perversões.

Os desvios da afetividade levam criaturas inocentes a imperceptíveis ligações amorosas com outras criaturas da mesma tipologia psicológica, chegando a extremos criminosos de perversão de crianças em internatos de rigor espartano, em cujo clima asfixiante as exigências biológicas fazem renascer as flores venenosas das práticas de Esparta. Em contrapartida, surgem também os casos de delírios senis em criaturas envelhecidas, que no declínio da vitalidade se tornam ridículas e perigosas, tentando reativar suas energias genéticas sem a compulsão das frustrações de toda uma vida em que esmagaram seus impulsos afetivos. Já sem forças para sustentar as lutas disciplinares da mocidade contra os impulsos naturais, essas vítimas da ilusão religiosa são condenadas e julgadas como seres depravados que só então revelam o que eram. É o duro preço pago pelos que não tiveram a coragem de escalar as encostas do Olimpo para roubar o fogo celeste de Zeus.

O mesmo acontece no tocante às condenações rigorosas contra as pessoas apegadas a hábitos comuns na sociedade, mas que o puritanismo espírita reprime em nome do bom conceito que os adeptos devem sustentar no meio social, uma imagem forçada, artificial e quase sempre insustentável. Os espíritas não constituem uma comunidade à parte no meio social, não podem e não devem isolar-se ou distinguir-se por atitudes ou comportamento especiais. Jesus podia ter nascido príncipe, como o Buda, ou podia nascer numa família abastada que o encaminhasse para o sacerdócio e as honras do rabinato. Preferiu a humildade de uma família pobre de Nazaré, pequena cidade de uma província desprezada pela sua numerosa população de gentios, e a condição inferior de carpinteiro. Viveu no meio do povo, convivendo com criaturas renegadas como os publicanos, cobradores de impostos, os soldados e centuriões romanos, os pescadores do Mar da Galiléia, os mercadores, os cegos e os leprosos (lixos do povo, desprezados por Deus, segundo as normas do Templo) com os fabricantes de azeite da região de Betânia, os pastores árabes da Transjordânia, sendo anunciado pelo profeta popular do Deserto, João Batista, que se cobria com pele de animais. Comia com eles sem obedecer aos rituais fariseus, não respeitava as leis discriminatórias da pureza judaica, hospedava-se em casas impuras, conversava com samaritanos segregados, defendia em praça pública as mulheres adúlteras, para afinal morrer na cruz infamante entre ladrões, sob o peso da mesma condenação desses companheiros da hora extrema. Nesse convívio com o populacho atendia a todos, semeava as sementes do seu ensino em corações puros ou impuros, sem condená-los pela sua impureza convencional. Os espíritas, que desejam ser os Seus amigos e companheiros de hoje, não podem entregar-se a puritanismos discriminatórios, criando exigências formalistas para si mesmos e para os outros. O verdadeiro cristão é sal do mundo e precisa misturar-se na massa que deve salgar.

O Espiritismo não criou igrejas, não precisa de templos suntuosos e tribunas luxuosas com pregadores enfatuados. Não tem rituais, não dispensa bênçãos, não promete lugar celeste a ninguém, não confere honrarias em títulos ou diplomas especiais, não disputa regalias oficiais. Sua única missão é esclarecer, orientar, indicar o caminho da autenticidade humana e da verdade espiritual do homem. Se não compreendermos isso e nisso não nos integrarmos estaremos sendo pedras de tropeço para os que desejam realmente evoluir, não por fora, mas por dentro. E esse por dentro não quer dizer reforma, mas desenvolvimento das potencialidades do espírito. A teoria da reforma intima é um engodo que levou muitos companheiros aproveitáveis à vaidade adulteradora. Não há reforma para o que não se estraga. O espírito é o mesmo em todos e só necessita de uma coisa: desenvolvimento. Enquanto não desenvolver a sua capacidade de compreender, analisar, julgar, discernir e respeitar a verdade não terá condições para modificar-se por dentro. Mesmo porque essa modificação só pode ocorrer pelo esforço pessoal de cada um. A expressão reforma intima é inadequada, pois implica a idéia de substituição de coisas, conserto, modificação em disposições internas, como numa casa ou numa loja. As disposições internas do espírito correspondem ao seu grau de evolução, como nos mostra a Escala Espírita de Kardec. O espírito é vida e não arranjo. Seu desenvolvimento depende de experiências, estudos, reflexão – tudo isso com mente aberta para a realidade e não fechada em esquemas artificiais. Ninguém se reforma nem pode reformar os outros. Mas todos podem superar as suas condições atuais, romper os limites em que a mente se fechou e transcender-se. Os modelos de figurino espiritual são inócuos e até mesmo prejudiciais. A responsabilidade espírita é individual, cada qual responde por si mesmo e não pode prender-se a supostos mestres espirituais.

Um espírita que se sujeita às lições de um mestre pessoal não é espírita, é um beato seguindo Antônio Conselheiro. O despertar da consciência na experiência é o seu caminho único de progresso. Ele não confia em palavras, mas nos fatos. Não busca a ilusão de uma salvação confessional, mas aprofunda-se no conhecimento doutrinário para saber por si mesmo onde pisa e para onde vai...

Os que precisam de mestres não confiam em si mesmos, fazem-se ovelhas de um rebanho. No Espiritismo não há rebanhos nem pastores: há trabalho a fazer, afinidades a estabelecer entre companheiros em pé de igualdade, toda uma batalha a vencer; há os pesados resíduos teológicos, supersticiosos e obscurantistas que esmagam a ingenuidade das massas. O Espiritismo é uma tomada de consciência da responsabilidade do homem na existência, da sua liberdade e da sua transcendência. Os espíritas que ainda se alimentam de leite – como escreveu Paulo – precisam tratar de crescer e alimentar-se de coisas sólidas, consistentes.

O problema da Genética no Espiritismo refere-se ao princípio da reencarnação. Os críticos da Doutrina denunciam suposto conflito entre a herança biológica e o controle espiritual na formação do novo corpo. Entendem que o determinismo da hereditariedade cria dificuldades ao desenvolvimento do esquema programado para a nova encarnação. O temperamento e as condições biopsíquicas e biofisiológicas do nascituro não estariam sujeitos às exigências reencarnatórias das provas e expiações que o espírito teria de enfrentar na nova existência. Mas essas objeções decorrem do antigo conceito dualista do homem, com separação absoluta dos elementos corporais anímicos. A Ciência Espírita demonstrou que espírito e matéria se conjugam, como energia estruturadora e massa estruturável, subordinando-se, portanto, a matéria ao espírito. Segundo os princípios doutrinários, podemos colocar o problema genético na seguinte disposição no plano evolutivo:

a) simples ação de aglutinação das partículas materiais livres, dispersas no espaço, para a formação dos átomos e a seguir das estruturas atômicas do reino mineral;

b) complexa estruturação dos átomos na formação das moléculas no plano vital, para a produção das espécies do reino vegetal;

c) complexíssima elaboração dos elementos orgânicos, nos reinos anteriores, para a formação dos seres vivos;

d) transcendente elaboração dos resultados de todo esse processo no plano espiritual para organização das formas matrizes e seus centros de energias padronizadoras, para a organização das formas perispiríticas dos seres vivos e particularmente dos superiores, para a ligação espírito-matéria, em que o primeiro, como inteligência ativa e criadora, exercerá as funções determinantes.

A espantosa intuição dos gregos já havia captado, no desenvolvimento do atomismo filosófico, particularmente entre os fisiólogos, como Leucipo e Demócrito, a existência dos átomos de fogo da alma e das homeomérias, modelos infinitesimais que se ligam para a produção das formas materiais. Essas homeomérias (do grego, homo – semelhante) seriam minúsculas partículas na forma do pé, do braço, da cabeça. e de cada membro a ser produzido. As pesquisas atuais no campo da Biologia comprovaram a existência dos centros padronizadores nos seres vivos. A perna de frente de um embrião de rato, deslocada para o lugar de uma perna traseira (e vice-versa) adquire, no desenvolvimento do animal, a forma de perna traseira. Assim, as homeomérias, que pareciam uma concepção fantasiosa e ingênua, revelam-se como símbolo dos centros padronizadores dos corpos dos seres vivos. Nas pesquisas soviéticas sobre o corpo bioplásmico (perispírito) ficou cientificamente provada a ação modeladora desse corpo sobre o desenvolvimento do corpo material humano.

Dessa maneira, ficou demonstrada a interferência de um poder maior do que o da hereditariedade na formação dos embriões humanos; o determinismo do código genético não pode ser considerado como absoluto e cego, estabelecido por leis mecânicas. A Inteligência Universal que responde pela estruturação de toda a realidade revela-se minuciosa na especificação da infinita variedade das coisas e dos seres. Não há, pois, nenhum conflito entre as forças naturais no processo da reencarnação. Por outro lado, a própria flexibilidade do processo da hereditariedade, há muito cientificamente constatada, que permite o aparecimento surpreendente de caracteres de ancestrais remotos em exemplares de gerações recentes, poderiam contestar as dúvidas dos críticos. Não se precisa ser especialista em Biologia para se compreender esse problema, cuja solução, em face da Doutrina, pertence ao campo da lógica. Por isso Kardec sustentava: “O Espiritismo é uma questão de bom-senso”.

Essas questões de sexo e genética mostram claramente a posição científica do Espiritismo, que não apela jamais para explicações místicas ou soluções imaginosas dos problemas reais. É com os pés na realidade que o Espiritismo avança em todos os sentidos.


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Amor e Família em Novos Tempos

Ninguém colocou melhor o problema da família do que Allan Kardec, pois não se apoiou apenas na pesquisa das aparências formais, mas penetrou na substância da questão, no plano das causas determinantes. Por isso nos oferece um esquema tríplice das formações familiais do nosso tempo, a saber:

a) a família carnal, formada a partir dos clãs primitivos, evoluindo nas miscigenações raciais, através de inumeráveis conflitos ao longo das civilizações progressivas, na fermentação dialética do amor e do ódio. Os grupos assim formados subdividem-se, nas reencarnações progressivas, em inumeráveis subgrupos, que também crescerão e se subdividirão na temporalidade, ou seja, na imensa esteira do tempo, que, segundo Heedegger, acolhe o espírito. São essas as famílias consangüíneas, que se desfazem com a morte.

b) a família mista, carnal e espiritual, em que os conflitos do amor e do ódio entram em processo de solução, nos reajustamentos das lutas e experiências comuns, definindo-se e ampliando-se as afinidades espirituais entre diversos grupos, absorvendo elementos de outras famílias, nas coordenadas da evolução coletiva. O condicionamento familial, nas relações endógenas e necessárias da vivência em comum, quebra a pouco e pouco as arestas do ódio e das antipatias, restabelecendo na medida do possível as relações simpáticas que se ampliarão no futuro. A desagregação provocada pela morte permitirá reajustes mais eficazes nas sucessivas reencarnações grupais.

c) a família espiritual, resultante de todos esses processos reencarnatórios, que aglutinará os espíritos afins no plano espiritual, nas comunidades dos espíritos superiores que se dedicam ao trabalho de assistência e orientação aos dois tipos familiais anteriores, mesclando-as de elementos que nelas se reencarnam para modificá-las com seu exemplo de amor e dedicação ao próximo. Essa família não perece, não se desfaz com a morte, crescendo constantemente para a formação de Humanidades Superiores. É fácil, usando-se as medidas da Escala Espírita em O Livro dos Espíritos, identificar-se nas famílias terrenas a presença de vários tipos descritos na referida escala, percebendo-se claramente as funções que exercem no processo evolutivo familial.

A concepção espírita da família, como se vê, é muito mais complexa e de importância muito maior que a das religiões cristãs, que conferem eternidade e inviolabilidade ao sacramento do matrimônio, mas não podem impedir que, na morte, o marido vá parar nas garras do Diabo, a esposa estagiar no Purgatório e os filhos inocentes curtir a sua orfandade nos jardins do céu. A concepção jurídica e terrena da família não vai além dos interesses materiais de uma existência. O mesmo se dá com a concepção sociológica, que faz da família a base da sociedade, ambas perecíveis e transitórias. As pessoas que acusam o Espiritismo de aniquilar a família através da reencarnação revelam a mais completa ignorância da Doutrina ou o fazem por má-fé, na defesa de interesses religiosos-sectários.

A família nasce do amor e dele se alimenta. Não é apenas a base da sociedade, mas de toda a Humanidade. É na família que as gerações se encontram, transmitindo suas experiências de uma para outra. Combater a instituição familial, negar a sua necessidade e a sua eficácia no desenvolvimento dos povos e dos mundos é revelar miopia ou cegueira espiritual, em cultura ou desequilíbrio mental e psíquico, falta de ajustamento à realidade, esquizofrenia não raro catatônica. Isso é evidente no estado de alienação em que essa atitude se manifesta, em pessoas amargas, ressentidas ou extremamente pretensiosas, que desejam mostrar-se originais. Em geral, são criaturas carentes de afetividade. Quando se desligam da família natural ligam-se a grupos de criaturas afins, engajam-se em outras famílias ou tornam-se misantropas destinadas à neurastenia ou à loucura. O instinto gregário da espécie é uma exigência da evolução humana, a que ninguém pode furtar-se sem pagar pelo seu egoísmo.

Os ideólogos da solidão individual esquecem-se de que todas as tentativas nesse sentido fracassaram ao longo da História. Esparta morreu de inanição por falta de relações familiais, enquanto Atenas cresceu e projetou-se num futuro glorioso, pela solidez de seu sistema familial. Roma caiu nas mãos dos bárbaros quando suas famílias se entregaram à degeneração. Os próprios nômades jamais dispensaram o seu sistema de famílias ambulantes. Anarquistas e socialistas delirantes, que sonhavam com sociedades anti-sociais, formadas de indivíduos avulsos e dotadas de grandes depósitos de crianças avulsas – os filhos do Estado – morreram protegidos pelo carinho dos familiares. Robinson Crusoé é a imagem do homem arrebatado ao seu meio, sem perspectivas. Sartre, que rompeu com a tradição familial e demonstrou os inconvenientes da convivência, fazendo uma tentativa de misantropia estóica, nunca dispensou a companhia de Simone de Beauvoir e o cosmopolitismo parisiense, formulou o célebre veredicto: Os outros são o inferno, mas jamais os dispensou. Escrevia no Café de Fiori e quando visitou a URSS exigiu a inclusão no programa oficial de horas de solidão absoluta, mas nessas horas se ralava inquieto, segundo o testemunho de Simone. O homem é relação e a família é o meio de relação em que ele absorve a seiva humana que o faz homem.

Não há interesse maior para a criatura humana no mundo que o seu semelhante, porque é nele que nos realizamos.

Uma paisagem solitária é um motivo edênico de contemplação, e quando alguém aparece, como Sartre observou, imediatamente nos tira a liberdade e nos transforma em objeto. Mas o próprio ato de objetivar-nos permite-nos recuperar a nossa subjetividade dispersada na paisagem. Essa dinâmica de projeção e retroação revela ao mesmo tempo a natureza dialética do ser, estável no soma e instável na psique. Dessa dialética resulta a síntese total da consciência estética, em que o real objetivo e o irreal subjetivo se fundem na percepção estética do amor.

Por isso, no Espiritismo o amor não é instinto (necessidade orgânica) nem desejo ou simples fazer sexual (sensorialidade) mas a aspiração suprema de beleza e espiritualidade nas perspectivas da transcendência. A superação de objetivo e subjetivo se resolve na globalidade do Amor. Por isso o Apóstolo João, no seu Evangelho, define o Ser Supremo na conhecida frase: Deus é Amor. As definições da Filosofia como Amor da Sabedoria (Pitágoras) e Sabedoria do Amor (Platão) revelam a intuição, já na Antiguidade, dessa total globalidade do Amor que o Espiritismo viria explicar mais tarde. O desenvolvimento dessa globalidade se processa na família, em que a afetividade desabrocha para a posterior floração do Amor no processo existencial. As famílias a e b da teoria kardeciana, que explicitamos em nosso esquema, preparam o ser, projetado na existência, para a odisséia das almas viajoras de Plotino, que vão subir e descer pela escada de Jacó nas reencarnações sucessivas, em busca do arquétipo da família e, em que as famílias desse padrão superior se integrarão progressivamente no plano divino das humanidades espirituais que constituirão no Infinito a Humanidade Cósmica. Essa a razão por que René Hubert, filósofo e pedagogo francês contemporâneo, sustenta que os fins da Educação consistem no estabelecimento, na Terra, da República dos Espíritos, através da Solidariedade de consciências.

A Educação Familial é o germe afetivo e puro de que decorre todo o processo educacional do homem. Com o amparo da família, na solidariedade doméstica do lar, por mais obscuro e humilde, é que se realiza a fotossíntese inicial da atmosfera de solidariedade e amor das gerações que modelam o futuro. Cabe aos espíritas implantar na Terra uma nova Educação, com base nos dados da pesquisa espírita e segundo o esquema da Pedagogia Espírita. Essa Pedagogia, iniciada por Hubert (que não é espírita) fundamenta-se nos princípios doutrinários do Espiritismo e destina-se a preparar as novas gerações para a Era Cósmica que se aproxima. Os professores espíritas de todos os graus do ensino têm um dever supremo a cumprir, nesta fase de transição do nosso planeta: procurar compreender os princípios educacionais do Espiritismo e trabalhar pelo desenvolvimento da Educação Espírita.

Estamos entrando na Era Cósmica, numa seqüência natural do desenvolvimento da Era Tecnológica. tudo se encadeia no Universo, como assinala O Livro dos Espíritos. Com o avanço científico e técnico dos últimos séculos, e particularmente do nosso, a Terra amadureceu para a conquista do espaço sideral. O impacto de nossos primeiros contatos com outros mundos já produziu profundas modificações, de que ainda não demos conta, em mundividência. As pesquisas espaciais continuam, ampliando a nossa visão da realidade cósmica. Uma nova civilização está surgindo aos nossos olhos, sob os nossos pés e sobre as nossas cabeças. Mas para que isso aconteça, sem perdermos de todo o equilíbrio cultural, já bastante abalado, temos de cuidar seriamente da renovação de nossos instrumentos culturais básicos, a saber:

a) a Economia, que deve tornar-se universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os desperdícios, a penúria e a fome. A civilização humana e perfeita, ensina O Livro dos Espíritos, é aquela em que ninguém morre de fome. A duras penas, a nova mentalidade econômica já está se definindo em todas as nações civilizadas, mas o egoísmo das camadas privilegiadas ainda impede a compreensão das exigências de fraternidade e humanismo dos novos tempos.

b) a Moral, que tem de romper os seus padrões envelhecidos de egoísmo e sociocentrismo, moldados em preconceitos de vaidade, ambição e prepotência, para elevar-se a novos padrões de humanismo, respeito por todos os direitos humanos, até hoje sempre espezinhados na Terra dos Homens, essa expressão de Saint-Exupéry que é um novo chamado à nossa consciência em termos evangélicos. Altruísmo – interesse pelos outros – humildade, fraternidade, tolerância e compreensão, amor, são essas as novas palavras de uma moral realmente cristã. A violência terá de ser expulsa da Terra dos Homens, com seu cortejo de brutalidades. É necessário que o conceito de não-violência se transforme na marca do homem, no signo que o distingue do bruto, do primata inconsciente. A honra e a dignidade humanas são incompatíveis com a estupidez dos broncos, inamissíveis num sistema de civilização. Como adverte Fredric Wertham, a violência é um câncer social, que corrói e destrói toda a estrutura de uma civilização. O homem verdadeiramente homem deve ter vergonha e horror da violência. Ser violento é ser amoral, pois quem não respeita os outros não respeita a si mesmo.

c) a Educação, que tem de renovar os seus conceitos básicos sobre o seu objeto, o educando. Em primeiro lugar a educação familial, que deve basear-se na afetividade, nas relações de amor e compreensão entre pais e filhos. Educação com violência é domesticação. O mundo da criança não é o mesmo do adulto e este tem de descer a esse mundo, voltar à sua própria infância para não esmagar a infância dos filhos. As pesquisas entre os povos selvagens mostraram que a essência da educação é o amor. Sem amor não se educa, deforma-se. Nos povos selvagens a educação não foi deformada pela idéia do pecado, pelo mito da queda do homem, que envolvera o mundo de violências redentoras capazes de aterrorizar um brutamontes, quanto mais uma criança. Kardec ensina que a criança, embora tenha o seu passado em geral lamentável, nasce vestida com a roupagem da inocência para tocar o coração dos pais e despertar-lhes o amor e a ternura, de que ela necessita para o desenvolvimento das suas potencialidades humanas. Se fazemos o contrário, despertamos na criança o seu passado de erros e depois a condenamos por seus instintos. Essa tese kardeciana é hoje dominante nos meios pedagógicos. Como dizia Gandhi, não se pode levar uma criatura ao bem pelos caminhos do mal. Os povos selvagens são mais civilizados que os povos civilizados, no tocante a esse problema, pois intuem com pureza e ingenuidade o verdadeiro sentido da educação. Educar é um ato de amor, diz Kerchensteiner em nossos dias, endossando o pensamento de todos os grandes pedagogos e educadores da Grécia antiga e do mundo moderno, a partir de Rousseau.

Mas a Educação Espírita tem ainda uma função essencial a desenvolver: o desenvolvimento das faculdades paranormais do educando, preparando-o para as atividades cósmicas da nova era. O Espiritismo foi o revelador dessas faculdades humanas que o passado confundiu com manifestações doentias ou sobrenaturais. O Espiritismo foi a primeira Ciência a mostrar experimentalmente esse engano fatal, de que resultou para a Humanidade terríveis tragédias. Cento e trinta anos antes das descobertas parapsicológicas nesse sentido, a Ciência Espírita demonstrou que as funções anímicas e psico-anímicas da criatura humana eram normais, pertenciam à própria natureza do homem. As pesquisas atuais no Cosmos revelaram que o desenvolvimento das faculdades psi é indispensável ao bom êxito das incursões no espaço sideral. A Educação Espírita é a única que pode enfrentar essas exigências dos novos tempos, cuidando do desenvolvimento dessas faculdades de maneira racional, sem os prejuízos dos falsos conceitos e dos temores infundados das formas de educação religiosas e leigas do nosso tempo.

Cabe assim ao Espiritismo renovar totalmente a cultura atual, reestruturar a Civilização Tecnológica nos rumos da Civilização do Espírito. Esse o fardo leve do Cristo que pesa sobre a consciência de todos os espíritas verdadeiros, nesta hora do mundo, e particularmente sobre a consciência dos educadores espíritas. Nessa civilização o amor não será fonte de decepções, desajustes e tragédias. A Família não se estruturará em preconceitos provindos dos tempos de barbárie, mas na moral evangélica pura, feita de amor e respeito pelas exigências da vida. O amor verdadeiro e espontâneo, puro como água da fonte, livre de interesses secundários, fará da família a fonte de amor que elevará a Terra na Escala dos Mundos. Isto não é sonho nem profecia, é o programa espírita para o Mundo de Amanhã, e que cabe aos espíritas realizar a partir de hoje, sem perda de tempo.


6
Relações Familiais no Espiritismo

As relações familiais dos povos primitivos começavam com ampla liberalidade, como já vimos, nas fases infantis. O instinto de imitação das crianças respondia pelo aprendizado espontâneo do comportamento dos adultos. A criança era encarada como um estrangeiro amigo e tratada com respeito e observação. Só na puberdade iria integrar-se no sistema tribal e começar a enfronhar-se dos ritos e tradições tribais. Daí por diante sua liberdade estava condicionada pela cultura da nação, por suas tradições, sua moral e suas crenças. As pesquisas antropológicas revelaram assim que:

a) os filhos não eram considerados como produzidos pelos pais e herdeiros consangüíneos naturais da raça, mas como criaturas adventícias ou familiares que nela se encarnavam, portanto preexistentes ao nascimento. Essa intuição da preexistência do ser e da reencarnação era inata e generalizada nos povos primitivos, com algumas variantes em sua manifestação nos diferentes povos. Isso comprova a afirmação de Kardec de que as marcas do Espiritismo são encontradas em todas as fases da evolução humana. As manifestações de espíritos de mortos, as práticas mágicas e as evocações completam esse quadro;

b) a prática da cuvade (do francês: couvade) que consiste na dieta do pai e não da mãe após o parto revela a origem natural da autoridade do pai na estrutura da família; mostra que a supremacia do pai não provém apenas de sua maior potencialidade física, mas também e principalmente do fato de ser ele o fecundador e portanto o criador;

c) a mãe não precisa de dieta, não fecunda, é fecundada, sua relação com o filho é a de serva, incumbida de recebê-lo à porta da vida, criá-lo, zelar por ele, de maneira que o mito da Terra-Mãe, sob o poder fecundante do Sol-Pai, completa nela a sua função protetora.

É desse mito remoto que, nascido do chão, da carne e do sangue, no relacionamento inconsciente da Natureza com o Homem, que vem a estrutura dinâmica da Família, ao mesmo tempo coercitiva e protetora. As leis da tribo ou da horda se centralizam nela e se ajustam corno a casca ao tronco da Arvore. Mais tarde essa imagem se define culturalmente na figura da árvore genealógica. Na cuvade o pai faz a dieta porque, como criador, o filho está ligado a ele organicamente, de maneira tão íntima, que os seus movimentos no andar, no correr, no saltar, em todas as atividades físicas, estraçalhará o recém-nascido. A superstição ingênua, que muitos atribuíram à preguiça do índio, tem motivos profundos na alma primitiva, em que as ligações da magia simpática representam a estrutura mágica do Universo. É o principio espírita da unidade do Universo, onde as coisas e os seres procedem uns dos outros, numa continuidade absoluta. A prática da cuvade precedeu de muitos milênios, na mentalidade do homem primitivo, à estruturação matemática do Universo por Pitágoras e à concepção unitária e panteísta de Espinosa.

Das percepções instintivas dos primatas às intuições supersticiosas dos povos selvagens passamos às elaborações mentais das civilizações agrárias e pastoris e destas às formulações de normas, leis e códigos das civilizações teocráticas. Na Idade Média as linhagens de tipo davídico formam os conjuntos de famílias rigidamente estruturadas, que no Renascimento e no Mundo Moderno se prolongam e dispersam em ramificações sofisticadas. O padrão familial se consolida, mas a evolução cultural e o desenvolvimento industrial, juntamente com o aumento populacional, ameaçam esse mosaico de leis divinas e humanas que não pode resistir às violentas modificações das estruturas sociais. A integridade da família se afrouxa, a sua rigidez de princípios amolece ante as novas exigências do mundo novo. Preconceitos milenares são esfarelados e teorias revolucionárias provocam terremotos demolidores. Na Era Tecnológica em que nos encontramos a subversão das estruturas antigas chega ao extremo. Profetas alucinados pregam a destruição pura e simples da família e a volta do homem a uma liberdade primitiva que nunca existiu. Os freios de aço da moral burguesa não podem mais conter o ímpeto da carne, dessa frágil carne humana mais forte que a pedra e o aço. Rompem-se os tabus sexuais e a liberdade, essa deusa de barrete frígio dos ideólogos franceses, reverte-se em libertinagem. Não há mais freios, nem divinos nem humanos, que possam conter a fúria dos impulsos desencadeados. Os faunos recalcados do puritanismo vitoriano esfregam as mãos e arregalam os olhos concupiscentes ante o alvorecer da irresponsabilidade.

É nesse momento que o conceito espírita de família se impõe como única solução para os problemas atuais. As três formas familiais que estudamos no capitulo anterior mostram a insanidade de encarar-se a família como simples organização material destinada a acomodar os homens nas estruturas sociais passageiras. Há na família, como no homem, uma finalidade superior a atingir. O elemento que determina a organização familial não é o simples interesse material. A linhagem não é determinada pela tradição ou pelos títulos nobiliárquicos, mas pelo desenvolvimento moral e espiritual das linhas sucessórias. O sangue, por si só, não cria distinções na espécie humana. O único valor verdadeiro do homem, e por isso imperecível, pertence à sua natureza intrínseca, à sua subjetividade existencial. A força aglutinadora, que mantém a estabilidade da família e a projeta no futuro, é a afetividade, o que vale dizer: o Amor. A tônica emocional e magnética que atrai para a família criaturas desviadas ou afastadas é a afinidade de grau evolutivo, de posição conceptual, de aprimoramento ético e estético. Nada disso é objetivo ou material. A família se apresenta, portanto, na concepção espírita, como um centro dinâmico de forças espirituais produzido pela evolução terrena e destinado a formar, nas conjugações familiais, a Nova Humanidade Terrena.

O problema das relações familiais, na concepção espírita, escapa ao rígido esquema autoritário elaborado nas civilizações agrárias e pastoris, com base nos mitos telúricos. Essa rigidez foi quebrada no mundo moderno, mas ainda subsiste em vastas camadas e em populações inteiras. A estúpida e ridícula tragédia burguesa do marido traído que mata a esposa infiel ou o amante para defender a sua honra pessoal, tornando-se um honrado e truculento assassino, vigora ainda com força quase total nas nações civilizadas. Isso porque o homem, o criador – segundo a concepção da cuvade – tem direitos absolutos sobre a mulher que fecundou; matá-la, como faziam os romanos com os instrumentos vocais, ou seja, os escravos humanos. A mentalidade prepotente dos escravocratas domina até agora a maioria dos homens, que se julgam viris por assassinarem mulheres indefesas e mais fracas que eles, substituindo os chifres simbólicos pela prova concreta e real de sua covardia. A diferença injusta e criminosa dos direitos entre homem e mulher, que levou Jesus a livrar a mulher adúltera da lapidação brutal em praça pública, responde por esses costumes bárbaros através dos milênios. No Espiritismo a atitude de Jesus é referendada pelo princípio que estabelece a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, com diversificação de funções. Porque a diversificação corresponde às exigências de complementação recíproca das atividades masculinas e femininas na família e na sociedade. Não há razão para que a mulher sofra perda de direitos humanos na posição de companheira do homem, da qual é mãe, esposa e filha.

Em face desse princípio a liberdade humana é a mesma para o homem e a mulher no processo existencial, no qual existem como metades biológicas, necessária e reciprocamente complementares, tanto no plano vital e psíquico, quanto em todas as atividades. Reconhecida a igualdade de direitos, não apenas no plano legal, mas principalmente no plano conceptual, a sanção da consciência afasta da família o autoritarismo gerador de conflitos e estabelece o clima de respeito e amor que gera o entendimento. Jesus não vacilou em reconhecer de público os direitos romanos, determinados pela aliança dos grandes de Israel com os conquistadores. Não lhe interessava a política mundana, mas quando os donos da casa abrem as portas ao inimigo e banqueteiam-se com ele, há direitos de lado a lado. Para Jesus os direitos não eram uma questão de poder, mas de justiça. No caso familial cada membro tem o seu direito e este deve ser reconhecido pelos demais. Por isso aprovou o divórcio de Moisés nos casos de traições conjugais, mas advertiu que isso acontecia pela dureza dos corações. E lembrou que no princípio não era assim, porque então prevalecia o amor.

A família não se constitui ao acaso. Toda reunião de criaturas numa instituição social decorre de compromissos de reajuste e reequilíbrio de situações anteriores. Por isso, as chamadas famílias consangüíneas se desfazem facilmente com a morte, mas para renascerem mais tarde em novas situações reparadoras. Na proporção em que o homem toma consciência desse aspecto do problema, as dificuldades familiais se tornam mais suportáveis.

No seu crisol as almas se depuram e se preparam para reencontros mais felizes no futuro. Mas erram os que pretendem manter à força a unidade familial, sob a pressão de ameaças divinas ou leis humanas iníquas. Os reajustes só se efetivam em condições propícias e por livre decisão dos implicados. Sem o respeito pela liberdade de opção os sacrifícios forçados geram novos desequilíbrios.

O segredo do êxito no desenvolvimento familial depende da capacidade de amar e compreender dos seus membros. Cada membro da família tem de compreender as condições temperamentais dos outros e sentir que pode amá-los apesar de seus erros e imperfeições. Nesse caso a família perdura e atinge os seus objetivos. Os problemas sexuais geram situações aparentemente insolúveis no quadro familial. Mas se colocarmos o amor ao próximo acima das condenações impiedosas, compreendendo que cada qual sente as exigências do sexo de acordo com a sua condição própria, passando pelas provas de que necessita, poderemos transformar situações desastrosas em oportunidades de orientação.

O Espiritismo nos oferece um conceito do bem e do mal que, apesar de muito simples e claro, ainda não foi bem compreendido até agora pela maioria dos espíritas. Deus é o Bem e está presente em tudo. O Mal é tudo o que se opõe a Deus. Dessa maneira, a dialética do Bem e do Mal se define como Evolução. Toda a realidade que conhecemos e podemos conhecer nos revela a incessante passagem das coisas e dos seres de uma condição caótica, imprecisa, confusa, estática, morta, para condições de ordem, organização, definição, dinamismo e vida. A morte e a destruição, como a dor, o desespero, a loucura, nada mais são do que fases de transição de um estágio para outro. São os túneis da evolução. A morte enquanto morte é mal, mas quando se reacende em vida na ressurreição é Bem, e sempre um bem maior do que o anterior. Nada morre, nada se destrói, tudo evolui. Sem o erro não há acerto. Sem a derrota não há vitória, que nos devolve alegremente à rota. Progredimos no Mal em direção ao Bem. Erros, quedas, crimes, sofrimentos são passos no caminho do Bem, que nos levam a Deus. Nada e ninguém pode permanecer no Mal, porque os males do Mal impulsionam tudo e todos na direção do Bem. O Não-Ser é o projeto do Ser, como a flor é o projeto do fruto.

Se compreendermos bem esse princípio avançaremos mais depressa, estimulados pela fé em Deus, que é a certeza do Bem que nos espera, que é a herança de todos, na qual todos se encontrarão.

Essa não é uma visão mística ou otimista de uma realidade trágica, mas a visão realista do Real que todos podem comprovar na simples observação de si mesmos do mundo exterior. As Ciências, na sua objetividade neutra, comprovam cada vez mais essa realidade. O teólogo Kierkegaard chegou à conclusão de que o pecado é caminho da redenção, fundando sem querer a Filosofia Existencial, no mesmo tempo em que Kardec fundava sem desejar a Ciência do Espírito. A compreensão profunda deste problema nos leva a amar com mais razão os familiares transviados, procurando auxiliá-los na dura caminhada dos seus males ao invés de condená-los e expulsá-los como perdidos.

Mas nem por isso devemos aprovar o Mal, caindo no extremo contrário dos que o condenaram com violência e aterrorizaram as almas frágeis com ameaças desesperantes. Certos adeptos de mente estreita chegaram a negar a existência do Mal – neste mundo de provas e expiações em que ele ainda predomina – oferecendo óculos angélicos a criaturas ingênuas. Negar o Mal num plano inferior é convencer os maus de que eles são bons e entregar-lhes nas garras os bons desprevenidos. Todos somos bons em potencial, trazemos em nós a potencialidade do Bem, mas enquanto não transformarmos a nossa bondade em ato continuamos a ser maus. Disfarçar essa realidade inegável e patente é estimular os maus a continuarem no Mal e colherem mais facilmente os ingênuos (nem bons nem maus) nas malhas de sua hipocrisia. O realismo espírita exige dos adeptos a vigilância crítica que Jesus recomendou aos discípulos, quando os enviou aos lobos, e à oração que os resguardaria das ciladas dos sofistas. Jesus rompeu a tradição profética de Israel, delirante e apocalíptica, instalando em seu lugar a didática racional e realista que Kardec desenvolveria de maneira intensiva no Século XIX, combatendo por sua vez os delírios paranóicos de uma teologia Cristã decalcada no Fabulário mitológico e nos resíduos da metafísica rabínica. O Espiritismo é realista, apóia-se no real comprovado por experiências científicas. Jesus e Kardec provaram o que ensinaram. Expressões e frases evangélicas que destoam dessa orientação metódica foram atribuídas a Jesus pelos redatores dos textos, homens impregnados pela cultura judaica e mitológica em que foram criados e formados. Kardec realizou a depuração desses textos, sob orientação constante dos Espíritos superiores, que demonstraram essa superioridade através da coerência de suas manifestações rigorosamente racionais e comprovadas experimentalmente. Por isso Richet afirmou – ele que temia, como cientista eminente, os enganos da mística –, que Kardec jamais expusera um princípio sem o haver comprovado.

As partes mitológicas dos Evangelhos, hoje bem identificadas pelos pesquisadores universitários, comprovando a depuração kardeciana, e todo o Apocalipse, atribuído a João – livro judaico, pertencente à conhecida fase apocalíptica da Israel antiga e não à era apostólica – provam de maneira irrefutável as influências místicas e mitológicas na redação dos textos evangélicos. O Apóstolo Paulo foi o primeiro a perceber e declarar que a Bíblia Judaica estava perempta e substituída pelo Evangelho. Claro que o valor histórico da Bíblia e o valor literário de seus livros poéticos e proféticos perduram no plano cultural, mas o Velho Testamento é uma obra do passado longínquo e só o Novo Testamento contém a orientação moral e espiritual que os espíritas devem seguir. As relações familiais no Espiritismo só podem seguir a orientação evangélica, pois só ela atende às exigências racionais do presente e do futuro da Humanidade atual, na preparação dos novos tempos. As famílias espíritas assim estruturadas não se abalam com as mudanças naturalmente ocorridas em nossa civilização nesta fase de transição.


7
Medicina e Espiritismo

Por que motivo o Espiritismo, desde o início da sua elaboração doutrinária, teve de enfrentar a mais cerrada oposição das corporações médicas em todo o mundo? Por estranho que pareça, o motivo fundamental é simplesmente este: a Ciência Espírita abre novas e grandiosas perspectivas para o desenvolvimento da Medicina, oferecendo-lhe nada menos do que a metade desconhecida da realidade humana e das possibilidades terapêuticas de que ela necessita. Pasteur, que não era médico, mas químico, teve de enfrentar a mesma oposição por motivo semelhante. No seu tempo, a Medicina dispunha apenas de um quarto da realidade humana e Pasteur lhes oferecia mais um quarto. Foi ridicularizado e espezinhado por esse gesto de atrevimento. Kardec era professor de ciências médicas e clinicou em Paris, como o demonstra André Moreil em sua recente biografia do Codificador. Mas nem por isso escapou da excomunhão científica. É curioso o paralelo entre eles. Pasteur descobriu e revelou, provando-o cientificamente, a existência do mundo invisível das bactérias microbianas, que respondem, juntamente com as viroses, pela totalidade das doenças infecto-contagiosas, e descobriu a maneira científica de prevenir e curar essas doenças. Kardec descobriu e revelou cientificamente o mundo invisível dos espíritos infestadores, descobriu a maneira científica de prevenir e curar as infestações. Esses dois mundos invisíveis não estão localizados no Além, mas aqui mesmo, na Terra, envolvendo e interpenetrando o mundo visível. Mas a Medicina é um organismo vivo do mundo das ciências e, como todos os organismos biológicos ou conceptuais, é dotado do instinto de conservação, repelindo instintivamente qualquer interferência estranha em sua estrutura.

Além disso, temos de considerar que descobertas dessa natureza rompem sempre ameaçadoras brechas na estrutura maior das civilizações. A civilização científica, que nascera de brechas abertas na civilização teológica, enfrentando batalhas impiedosas para se desenvolver, reagiu com a mesma violência instintiva na defesa da sua estrutura. Remy de Chauvin, diretor de laboratório do Instituto de Altos Estudos de Paris, considerou recentemente a existência de uma doença alérgica no meio científico e a chamou de alergia ao futuro. É essa alergia, novo nome do instinto de conservação, que ainda hoje mantém acesa a luta defensiva da Medicina contra o Espiritismo, não obstante as comprovações científicas atuais de toda a realidade espírita.

O Espiritismo aliou-se à Medicina desde o início, a partir das investigações sobre as curas espíritas, realizadas na Clinica do Dr. Demeure, em Paris, a pedido de Kardec. A terapêutica espírita desenvolveu-se à revelia da Medicina, ao contrário do que Kardec desejava, revestindo-se de aspectos antiespíritas. Mas, apesar disso, os espíritas não tomaram, salvo raras exceções, geralmente individuais e de pessoas incultas, a posição das religiões e seitas terapêuticas milagreiras. É grande o número atual de médicos espíritas e existem até mesmo associações de Medicina e Espiritismo, como as do Rio e São Paulo. Esse é o aspecto institucional do problema, sem dúvida importante, porque dele depende, em grande parte, a aceitação da verdade espírita nos meios culturais oficiais, o que talvez possa ocorrer no próximo milênio, com o desenvolvimento da Civilização do Espírito. A situação atual é curiosa: só a Filosofia Espírita goza de cidadania oficial, enquanto a Ciência Espírita e a Religião Espírita continuam em posição marginal. Essa marginalização é a mesma que o Cristianismo sofreu no mundo romano, agora atenuada pelas conquistas do mundo moderno no tocante aos direitos humanos. O Espiritismo não é nem pode fazer-se religião institucionalizada e muito menos oficializada em parte alguma, porque os seus princípios são contrários a toda sistemática fingida e fechada. O que importa no Espiritismo, como Kardec acentuou desde o início, não é a forma, mas a substância. Toda tentativa de institucionalização exige hierarquia, que implica autoridade é ação autoritária. O fundamento ético do Espiritismo é a liberdade, sem a qual não há atividade criadora nem responsabilidade individual. Por isso, só a associação livre convém ao Espiritismo, que perde com isso em representação social, mas ganha em compensação no tocante à responsabilidade individual.

Em suas relações com as instituições sociais e políticas da atualidade o Espiritismo encontra muitas dificuldades, mas a liberdade tem o seu preço. É preferível lutar com dificuldades externas a expor-se ao perigo das congestões internas. Por toda parte, em nosso mundo, pululam os mestres pretensiosos e os tiranetes vaidosos, prontos a servir-se de títulos e cargos oficiais para esmagar a liberdade. Muitos espíritas não compreendem esse problema e tentam sujeitar o movimento espírita a cúpulas pretensiosas. Tratando desse tipo de institucionalização, fatalmente dogmática, Kardec recomendou a multiplicidade dos Centros Espíritas pequenos, unidos por laços de fraternidade, e Emmanuel, através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier, declarou numa mensagem orientadora: A Religião organizada é o cadáver da Religião. Isso porque a organização religiosa está sempre sujeita à dominação dos fanáticos e ambiciosos. A ambição do poder asfixia o espírito democrático. O Espiritismo iniciou no campo religioso a era democrática que Jesus lançara no seu tempo, mas que morreu asfixiada com o fracasso da Comunidade Apostólica.

No tocante às relações do Espiritismo com a Medicina a institucionalização espírita igrejeira cortaria qualquer possibilidade de entendimento. O Espiritismo não tem por objetivo opor-se à Medicina, mas ajudá-la na melhor compreensão da natureza humana e dos recursos naturais de que esta pode dispor para o seu maior progresso. Completando a imagem parcial do homem, de que a Medicina dispõe, o Espiritismo a levará, como já está levando, à utilização dos recursos insuspeitados do espírito. A mediunidade, fonte inesgotável de recursos espirituais no combate às doenças, seria renegada pelos médicos. A finalidade do Espiritismo nesse campo é colocar os recursos mediúnicos nas mãos de médicos esclarecidos, para o benefício de toda a Humanidade. As descobertas de Kardec seriam postas à disposição de todos, como o foram as de Pasteur. Esse é um dos motivos da exigência kardeciana de mediunidade gratuita. A profissionalização mediúnica seria um atentado à própria finalidade do Espiritismo, sempre aberto a todas as investigações para melhor servir a todos e em todos os tempos.

Kardec intuiu desde logo esse problema, recorrendo à Clínica Demeure para o controle dos casos de mediunidade curadora. Disso resultou a conjugação médico-espírita, hoje em franco desenvolvimento, evitando o divinismo fanático das seitas religiosas que proíbem aos adeptos recorrer à Medicina. Não somos apenas espíritos, mas espíritos encarnados, dotados do corpo material que é objeto dos estudos e da terapêutica médica. A maioria absoluta dos espíritas utiliza-se de ambos os recursos, o médico e o mediúnico, no tratamento das doenças. Compreendem que os recursos em causa atendem aos dois elementos da constituição humana, o material e o espiritual, sendo por isso necessário conjugar as duas ações terapêuticas, agindo cada uma no seu campo específico. Na proporção em que se acentuar a evolução espiritual do homem, os recursos espirituais se intensificarão no plano mediúnico, contribuindo para a espiritualização da Medicina. A Medicina espiritualizada pertence aos mundos superiores, entre os quais a Terra brilhará um dia, como planeta vitorioso, apesar de todas as incompreensões e dificuldades desta fase de transição. Compreenderemos então que Deus concede os seus recursos ao homem na medida em que ele se torna capaz de utilizá-los sem deitar-se na cama-preguiça do comodismo e da irresponsabilidade.

A mediunidade curadora é hoje mais perigosa do que benéfica em nosso mundo, porque excita a vaidade e a ambição dos médiuns e de seus familiares, além dos agudos interesses políticos sempre despertados na comunidade, envolvendo os médiuns em manobras sutis que acabam por afetar a sensibilidade mediúnica e desviar o médium de sua verdadeira missão. Na maioria dos médiuns de cura os primeiros sucessos provocam espanto e humilde respeito pelos espíritos que os assistem, mas a continuidade dos sucessos torna os fatos corriqueiros e o médium acaba se convencendo de que age por si mesmo. A fascinação do dinheiro e do prestígio social e político leva o médium à exploração simoníaca dos seus dons. Ao benefício das curas materiais opõe-se então o malefício das enfermidades espirituais, criando dificuldades e conflitos de toda espécie. O pior desses males é a situação contraditória em que o médium acaba caindo, fingindo humildade e cultivando a arrogância, e não raro, na falta da assistência espiritual que se afasta, entregando-se à prática de expedientes condenáveis. As condições morais do nosso mundo ainda não permitem a constância da terapêutica mediúnica ostensiva no planeta. Os médiuns de cura são voluntários da espiritualidade que se julgam capazes de vencer essas condições adversas, mas na maioria fracassam, cedo ou tarde, caindo nas mãos de exploradores visíveis e invisíveis. Com isso aumentam as suspeitas e desconfianças da Medicina, acrescidas pelo ambiente de competição entre médiuns e médicos. Lutas mesquinhas se desenvolvem, envolvendo famílias e comunidades, num torvelinho absorvente de ódios e disputas desesperadas. O que era uma bênção, transforma-se em maldição. Esses os motivos por que a mediunidade curadora de grande eficácia é rara, aparece esporadicamente, o que também contribui para afastar o interesse científico puro desse campo de tantas e tão grandiosas possibilidades para o desenvolvimento da Medicina.

Quando os médiuns resistem a todas às tentações, não escapam às calúnias, perseguições, processos criminais e prisões, como já acontecia na era apostólica. Os métodos de combate aos fatos mediúnicos inegáveis continuam a ser os mesmos em nossos dias.

Para superar essas dificuldades milenares, os Espíritos Superiores preferem agir em silêncio nos processos de curas espirituais diretas, geralmente despercebidos, em que a Medicina só considera a ação espontânea dos recursos naturais do organismo do doente. Nessa cômoda posição hipotética, a maioria dos médicos não percebe a contradição em que cai, atribuindo poderes sobrenaturais ao organismo carnal dos doentes, onde ocorrem os milagres da fé ingênua, com a violação, pela própria natureza humana, das leis naturais. As relações medicina-espiritismo são de importância básica para ambos, e particularmente para a Humanidade. Mas não poderão melhorar enquanto os espíritas não tomarem consciência de sua responsabilidade doutrinária e os médicos não superarem os seus preconceitos, mais profissionais do que científicos, em relação aos problemas espirituais e em particular ao Espiritismo e à mediunidade curadora, hoje comprovada em sua realidade auspiciosa nos grandes centros universitários do mundo. Os conceitos do sagrado e do sobrenatural, de um lado, e os preconceitos científicos de outro, ainda pesam esmagadoramente sobre a nossa cultura, que terá de alijar esse fardo para sobreviver.



Espiritismo e Psicologia

Estamos na Era Psicológica, sob o signo avançado de Psi, a letra grega que designa os fenômenos parapsicológicos. Antes de 1930 os críticos do Espiritismo tentavam explicar os processos mediúnicos por hipóteses psicológicas. Depois dessa data, com as pesquisas de Rhine e sua equipe, o socorro inesperado da Parapsicologia forneceu novas armas aos negadores. Tivemos o espetáculo de uma estranha euforia nos meios intelectuais: os homens de cultura proclamavam com entusiasmo a sua absoluta nulidade. Não eram mais do que pó que se reverte ao pó. Isso era suficiente para mostrar que a consciência mundial estava muito pesada. Mas dez anos após as difíceis investigações iniciais da Universidade de Duke, as pesquisas tomaram um ritmo acelerado e Rhine anunciou as suas absurdas descobertas: o pensamento não é físico; há no homem um conteúdo extrafísico; a mente sobrevive à morte do corpo; a percepção extra-sensorial supera todas as barreiras físicas. Vassiliev, na URSS, dispôs-se a desfazer essas balelas burguesas e fracassou no seu intento. Soal e Carington, da Universidade de Londres e Cambridge, afirmaram a sobrevivência da alma e tiveram o desplante de obter sucesso com experiências de voz-direta (psicofonia), fenômeno em que uma entidade espiritual fala diretamente, vibrando sua voz no ar. Price, também da Universidade de Londres, teve a audácia de explicar as assombrações londrinas como manifestações de espíritos.

A última esperança das libélulas humanas, dos homens-pó, apagava-se como chama de fogo-fátuo nas mãos dos negadores. Surgiram então os mágicos de palco e os politiqueiros de feira, sacerdotes broncos e frades ignorantes, para combater com seus truques ingênuos aquilo mesmo que eles pregavam e que era a base de seu profissionalismo religioso: a sobrevivência da criatura humana. Esse atrevimento causou mal-estar no próprio clero, que via o seu prestígio cultural abalado perante as elites culturais. O que esses mágicos de palco semearam no mundo, através de televisões, jornais, revistas, livros, conferências e cursos pseudocientíficos, tudo isso muito rendoso financeiramente, constitui o lixo subcultural do Século XX e explica a razão das contradições espantosas da nossa época. A miséria mental desses mágicos de picadeiro encontrava ressonância nas camadas ignorantes do povo e, numa refração espantosa, projetava no vídeo a miséria cultural de figuras emplacadas nos meios universitários e eclesiásticos para o trânsito nas vias obscuras do submundo cultural. Tudo servia, como sempre, no vale-tudo da luta contra o Espiritismo. Surgiu um clarão nas trevas: a descoberta do corpo bioplásmico do homem e a prova científica da sua sobrevivência, obtida pelos cientistas soviéticos em pesquisas biofísicas na Universidade de Kirov. Na fortaleza ideológica do Materialismo Científico no mundo havia sido descoberta a realidade do corpo espiritual da tradição cristã, o perispírito da terminologia espírita, que o Apóstolo Paulo chamara com ênfase de corpo da ressurreição. A única medida possível contra isso foi logo tomada pelo oficialismo soviético, negando validade à descoberta oficialmente realizada e sustando a divulgação de novas informações a respeito. Esse contragolpe só teve, naturalmente, efeito político. Não se podia sustar o avanço irrefreável das Ciências, mas a censura soviética foi bem recebida pelos homens-pó da vacilante cultura ocidental e se fez o silêncio desejado sobre a mais importante conquista científica do século. Os mágicos de picadeiro, jejunos em ciências, trânsfugas da razão, intoxicados de incoerência, cantaram de galo nas rinhas da ignorância.

Apesar dessa nova euforia dos adeptos do nada, esse conceito vazio, segundo Kant, as pesquisas parapsicológicas se intensificaram na URSS e em toda a órbita soviética. Na Romênia, para evitar complicações políticas aos investigadores do paranormal, forjou-se um novo nome para a Ciência de Rhine, que passou a chamar-se Psicotrônica. O nome rebarbativo funciona como cobertura tática para os pesquisadores. Sentados comodamente no trono do psiquismo, os psicotrônicos disfarçam o seu interesse de sobreviver após a morte, imitando a tática do Prof. Raikov na Universidade de Moscou, para pesquisar a reencarnação como simples fenômeno psicológico. Bastam essas manobras anticientíficas para provar o acerto de Léon Denis, numa conferência em Paris, na década de 1920, sobre o tema A Missão do Século XX. O Druida da Lorena, como Conan Doyle o chamava, previu que o nosso século seria o da vitória do Espiritismo, com a comprovação científica dos seus princípios. Aí estão as provas obtidas através de pesquisas científico-tecnológicas, ao gosto do nosso tempo. Filosófica, científica e religiosamente o Espiritismo encontrou, em nosso século, as comprovações de sua veracidade, não produzidas pelos adeptos, mas pelos seus mais poderosos adversários.

No campo psicológico, o desenvolvimento da Psicanálise, a partir de Freud, atingiu em Jung o momento crítico da revelação dos arquétipos, só possíveis nas dimensões do espírito, e por fim, a teoria das coincidências significativas (contribuição junguiana à Parapsicologia) as confissões mediúnicas do grande psicólogo em suas memórias e a sua confiança na descoberta científica da alma. Em 1944 Jung encerrou o seu livro a respeito declarando: “Estou convencido do estudo científico da alma pela ciência do futuro. A Parapsicologia é a mais jovem das Ciências Humanas e o seu desenvolvimento não foi ainda além dos primeiros passos.”

A Gestalt ou Psicologia da Forma, no campo da Psicologia da Percepção, revelou o princípio de unidade formal em que se destaca o fenômeno da pregnância, e mostrou que não vivemos segundo a realidade concreta do mundo, mas segundo a nossa ilusão psicológica dessa realidade, confirmando o princípio espírita das aparências significativas. Da conjugação dialética dessas duas correntes fundamentais da Psicologia contemporânea surgiu a síntese da concepção parapsicológica do homem, com o domínio do inconsciente na interpretação das percepções sensoriais, abrindo-se para as dimensões da percepção extra-sensorial. A descoberta científica do perispírito confirmou essa tese em plano objetivo, revelando de novo (em termos espíritas) a fonte secreta das captações e manifestações paranormais. O plasma físico do perispírito (corpo semimaterial, segundo Kardec) é dirigido nas manifestações pelos elementos não-físicos do corpo espiritual.

Os teóricos desavisados do inconsciente, como os da escrita automática e dos fenômenos físicos da mediunidade, esquecem-se (ou jamais tomaram conhecimento) dos estudos e das pesquisas de Kardec, Aksakof e Bozzano sobre o animismo ou manifestações da própria alma ou espírito do médium nas manifestações mediúnicas. Formulam, assim, hipóteses superadas logo no início das pesquisas espíritas, quando o próprio Freud ainda não havia nascido.

Kardec foi também o primeiro a notar as interferências anímicas nas manifestações, por influência sugestiva e natural das lembranças arcaicas ou recentes do médium. Essas infiltrações (que ocorrem também em plena vigília de todos nós), decorrem da lei de associação de idéias, mas são facilmente identificáveis pelos pesquisadores e pessoas experimentadas na prática mediúnica. Ochorowicz, por exemplo, chegou ao cúmulo, em suas experiências de materialização com a médium Stanislava, de considerar a entidade que se materializava como desdobramento material da médium. Chamava o espírito materializado de Stanislava II. Levou, assim, a manifestação do animismo ao extremo de uma suposta divisão do organismo da médium em dois corpos diferentes. Não obstante, Stanislava II era bem diferenciada da médium, tanto física como psicologicamente. Muitos absurdos dessa espécie foram cometidos na pesquisa espírita por cientistas rigorosos que se viam aturdidos com a ocorrência dos fatos. Os psicólogos atuais, que pretendem opinar sobre questões espíritas, deviam ter a honestidade de primeiro estudar a Doutrina e a sua História, para não incidirem nas tolices do passado, já há muito superadas, e não cometerem o crime de considerar como tolos, ingênuos ou farsantes os maiores cientistas do século passado que trataram do assunto a sério, com a maior gravidade. Por outro lado, os espíritas devem cuidar mais de sua formação doutrinária, para não se perturbarem com a repetição de papagaiadas seculares contra a doutrina. Russell Wallace, êmulo de Darwin, estudando no século passado as relações do Espiritismo com a Psicologia, declarou que todas as escolas psicológicas não eram mais do que formas de uma psicologia elementar. O trecho de Jung que reproduzimos acima confirma essa posição de Wallace em nossos dias. Qual o bisonho estudante de Psicologia atual que se atreverá a contestar esses dois gigantes?



Psiquiatria e Espiritismo

A Psiquiatria é o campo médico de maiores conflitos com o Espiritismo. E é o campo espírita de mais intensa atividade e maiores realizações dos espíritas. A razão disso é evidente. A maioria dos psicopatas são simplesmente obsedados e o que sobra na pauta da psicopatia de origem psicológica, educacional, neurológica ou cerebral mostra-se também infestada por espíritos inferiores. Quanto a isso, os espíritas praticantes e especialmente os psiquiatras espíritas não têm a menor dúvida. Por isso o número de hospitais psiquiátricos espíritas é grande em nosso País. Só no Estado de São Paulo existem 35 hospitais desse tipo em funcionamento e mais alguns planejados ou em construção. O corpo médico desses hospitais nem sempre é espírita e geralmente se constitui de maioria de médicos não-espíritas. Os organismos oficiais criam dificuldades à prática espírita nesses hospitais. Mas os espíritas enfrentam todas as dificuldades e continuam construindo hospitais, por entenderem que lhes cabe grande responsabilidade nesse problema, por serem eles os únicos que realmente o conhecem em sua maior profundidade. Cabe-lhe, pois, fazer alguma coisa em benefício de milhões de vítimas submetidas a tratamentos total ou parcialmente inadequados. Os hospitais se reuniram numa Federação para melhor lutar pelos seus direitos e poderem manter ligações mais freqüentes e eficazes entre eles. Essa rede hospitalar especializada socorreu o Governo do Estado quando da crise do Juqueri (Hospital Franco da Rocha, na capital) servindo para a distribuição do número excessivo de internados, que fazia do Juqueri o que o povo chamou de Caldeirão do Diabo.

Construía-se o Hospital Espírita de Amparo quando um médico e escritor de renome publicou um artigo no jornal diário Última Hora, protestando contra o fato e afirmando que os espíritas se interessam pelo assunto por dor de consciência, pois fabricavam loucos e sentiam-se no dever de assisti-los. Um jornalista e psicólogo espírita respondeu pelos Diários Associados explicando que os espíritas se interessavam pelo assunto em virtude da falência da Medicina na cura dos loucos. O princípio espírita da caridade os obrigava a isso. O Hospital foi construído e outros mais surgiram logo depois.

A calúnia de que os espíritas fazem loucos surgiu das campanhas clericais e médicas contra a doutrina. Kardec tratou do assunto, mostrando o absurdo da acusação e lembrando que o mito do Diabo produziu mais loucos no mundo, durante séculos, do que se pode imaginar. Lembrou que o tratamento médico sempre se mostrara inadequado, pela simples razão de que as Ciências se negavam a reconhecer a evidência das obsessões. Referiu-se à predisposição de certas pessoas para a loucura, o que tem levado, no mundo inteiro, pessoas que se dedicam a estudos de música, matemática, teologia e outras matérias culturais a se perturbarem. Mesmo porque, dizia o mestre, existe em todos nós um grão de loucura que pode desenvolver-se por qualquer tipo de excitação. Exemplificou com os casos de possessão individual e coletiva ocorridos com espantosa freqüência nas comunidades religiosas, e afirmou que o Espiritismo é o melhor e o mais eficiente preservativo da loucura em seus vários tipos. Hoje está cientificamente provado que esse grão de loucura pode desenvolver-se por excitação telepática, tanto de criaturas existenciais quanto de espíritos desencarnados. Jean Herenwald, médico psicanalista, dedicou há alguns anos um livro a essa questão com o título de Telepatia e Relações Interpessoais, citando casos impressionantes de sua própria clínica (ver a bibliografia). As pesquisas americanas, inglesas, francesas e soviéticas comprovaram essa realidade de maneira inegável. Whately Carington, da Universidade de Cambridge, foi simplesmente exaustivo na comprovação dos fatos.

O Espiritismo não pretende opor-se à Psiquiatria nem negar as suas conquistas e as da Psicoterapia em geral, mas é evidente que oferece a esse campo de terapêutica especializada novas perspectivas de pesquisa etiológica e de cura, comprovadas cientificamente. Revela aos psicoterapeutas a face oculta da realidade psicopatológica, como os astronautas revelaram aos astrônomos a face oculta da Lua. Os métodos espíritas de tratamento provaram a sua eficácia e continuam a prová-la diariamente em todo o mundo. O Espiritismo oferece à Psiquiatria uma contribuição teórica e prática completa, que ela não pode rejeitar baseada em pressupostos e preconceitos de um passado largamente superado.


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Epistemologia Espírita

Na aparente simplicidade da sua forma escrita o Espiritismo abrange todos os campos do Conhecimento. Não o faz de maneira sistemática, mas espontânea, numa espécie de improvisação determinada pelas exigências do borbulhar dos fatos e da escassez do tempo. Kardec já estava com 50 anos de idade e não dispunha de recursos financeiros e meios técnicos, nem de auxiliares preparados para a execução da obra imensa e urgente que o desafiava. Estava só diante daquela erupção de fenômenos que tinha de controlar na formulação de uma doutrina que os tornassem acessíveis a todos. Dispunha apenas dos seus conhecimentos científicos, da visão pedagógica herdada de Rousseau e Pestalozzi, dos instrumentos humanos de pesquisa que eram as meninas Boudin, de 14 e 16 anos e dos recursos da sua didática, desenvolvidos nos Institutos que fundara e dirigira, nas obras que publicara e nos serviços prestados à Universidade de França como diretor de estudos. Valeu-lhe o seu temperamento calmo, ponderado, que lhe permitiu dominar as circunstâncias e organizar uma nova ciência apoiada em pesquisas dotada de métodos próprios, entrosada nas exigências cientificas da época, amparada numa instituição científica por ele mesmo fundada e pelos meios de divulgação, pesquisa de opinião e possibilidade de debates em plano mundial, que criou com suas obras e a fundação e manutenção da Revista Espírita. Uma epopéia cultural silenciosa, que não obstante expandiu-se em todas as direções culturais, abalando o mundo.

Essa façanha homérica não dispensou o auxílio clássico dos deuses – aqueles mesmos que Tales de Mileto dizia encherem o mundo em todas as suas dimensões – os Espíritos. Esses deuses, que ele humanizou ao invés do divinizar, enfunaram as velas do seu barco e o levaram, solitário, à conquista de mares e terras desconhecidas e envoltos nos mistérios de todas as mitologias e magias religiosas. Teve de enfrentar, como Ulisses, os báratros e os monstros do mar e os guerreiros entrincheirados nas muralhas das tróias culturais da Terra.

A Epistemologia Espírita, estudo e crítica do Conhecimento Científico à luz do Espiritismo, não é sequer mencionada na obra de Kardec, mas está nela integrada, é um dos problemas fundamentais da doutrina, indispensável à sua compreensão. Na Antigüidade, com algumas exceções do mundo clássico grego-romano (por exemplo: as observações empíricas dos filólogos gregos e posteriormente de Aristóteles), todo o Conhecimento Humano decorria das tradições religiosas e se processava por dedução. Com ou sem o esquema lógico aristotélico, os sábios serviam-se de um único instrumento de pesquisa, que era o silogismo. Só nos princípios do Século XIV surgiram na Itália as primeiras tentativas de interrogar a Natureza para se conhecer a realidade. Daí por diante a Ciência desenvolveu-se, através de penosos episódios históricos como os de Galileu e Giordano Bruno, pois qualquer descoberta que contrariasse a Bíblia era logo motivo de perseguições e condenações por heresia. Para se dar o passo lógico da dedução para a indução foram necessários quatro séculos. Basta lembrarmos o episódio de Descartes, que em seu Tratado do Mundo teve de usar um expediente curioso. Para dizer que a Terra girava em torno do Sol, afirmou que a Terra era fixa no espaço, envolta na sua atmosfera, mas esta girava em torno do Sol. Apesar disso, Descartes acabou fugindo para a Holanda, país protestante, a fim de livrar-se das condenações da Igreja. Ele usava em seu emblema a palavra caute, significando a cautela que devia ter na exposição de suas idéias. Nesse ambiente opressivo a Ciência era uma erva daninha que só crescia às ocultas. No Século XVIII, chamado o Século de Ouro das Ciências, a opressão clerical se afrouxara na medida em que as invenções, mais do que as descobertas, lhes davam prestígio. No Século XIX a situação mudara bastante, mas só nos meados desse século o clima se tornara propício ao emprego atrevido do uso da indução científica, que consiste na pesquisa de vários fenômenos para deles obter-se a lei geral que os rege. Antes disso seria impossível a pesquisa espírita, que além de condenada em si mesma como profanação da morte, seria também condenada por contrariar a sabedoria infusa dos teólogos, procedente de Deus através da Bíblia e do milagre das intuições reveladoras. Apesar da liberdade já conquistada, a Inquisição Espanhola, não podendo condenar Kardec à fogueira, pois ele estava na França, condenou a sua obra e a queimou com todos os rituais da Inquisição em Barcelona. Kardec comentou o fato na Revista Espírita, num artigo intitulado A Cauda da Inquisição, aproveitando o fato para rasgar mais amplamente a pesada cortina da censura eclesiástica no mundo. A França marchava na vanguarda da libertação, enquanto a cauda da opressão ainda se arrastava, eriçada de ameaças e eivada de crimes, em terras de Portugal e Espanha. Só na França seria possível, naquela fase de transição histórica e cultural, o desenvolvimento do Espiritismo. Não obstante, ali mesmo se ergueram as ondas da reação, sopradas pelos vendavais do fanatismo religioso, dos preconceitos culturais e do exclusivismo científico. Foi no estudo sereno dessa reação, em meio ao furor dos elementos desencadeados, que Kardec deu início à Epistemologia Espírita. Sozinho a princípio, eram ainda poucos os seus companheiros. Repetia-se no antigo e carismático solo das Gálias o mesmo quadro palestino de Jesus com seus poucos discípulos a enfrentar os poderes do mundo. O panorama histórico, porém, se modificara e Kardec podia usar com mais eficácia as armas da razão. O Renascimento prepara a França para aquele momento glorioso.

Kardec examina a posição epistemológica do Espiritismo na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita que abre O Livro dos Espíritos, obra fundamental da Doutrina. O Espiritismo é uma Ciência que se defronta com as outras ciências em pé de igualdade e não pode ser julgada pelos cientistas que não a conhecem. Os sábios são dignos de admiração e respeito, quando se pronunciam sobre o que sabem. Mas quando opinam sobre o que não sabem igualam-se ao vulgo, dando simples opiniões desprovidas de valor. O que vale na Ciência são os fatos e não as opiniões. Só é válido no campo científico o veredicto das provas. A rejeição dos fatos a priori não tem valor científico, por mais reputado que o seja o cientista que emitiu um julgamento. E acrescenta: “Quando a Ciência sai da observação material dos fatos para apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas. Cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e o sustenta encarniçadamente. Os fatos são o verdadeiro critério dos nossos julgamentos sem réplica. Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem prudente.”

A posição de Kardec era assim de uma clareza e positividade absoluta. O Espiritismo nascia como Ciência, dentro dos quadros da evolução científica, e ao mesmo tempo assumia uma posição epistemológica realista, criticando os desvios individualistas à realidade objetiva. Aos que o criticaram alegando que o objeto de sua doutrina não era objetivo, Kardec lembrava que o conceito espírita de Espírito não era vago, indefinido, mas rigorosamente objetivo. “'O Espírito é um ser concreto e circunscrito – afirmava – um ser real, definido, que em certos casos pode ser apreendido pelos nossos sentidos da vista, da audição e do tacto.” A natureza objetiva do Espírito não podia ser confundida com a dos objetos lógicos, matemáticos ou mitológicos e imaginários, pois as suas manifestações permitiam a verificação científica de sua realidade objetiva e de sua capacidade de produzir efeitos materiais das mínimas às máximas proporções. Por isso o Espiritismo exigia atitude científica no seu estudo, pesquisas objetivas na comprovação das leis naturais que regem as suas relações com o mundo sensível e com os homens encarnados.

A maioria dos cientistas criticava o fato de o Espiritismo haver nascido da observação da chamada dança das mesas. Kardec perguntava se a movimentação espontânea de objetos materiais, rigorosamente constatada, era mais ridícula que a dança das rãs que dera a Galvani a possibilidade de descobrir a eletricidade. Negar esses fatos sem observá-los e pesquisá-los era anticientífico, revelava a persistência de preconceitos na Ciência e exigia, por isso mesmo, a pesquisa séria e metódica dos cientistas sérios. A Ciência da época se fechara sobre as suas conquistas primárias e com elas se julgava na posse do conhecimento total. Caíra num mecanicismo simplório e se alienava num solipsismo arrogante. Quando a Academia reconheceu a existência do Hipnotismo, Kardec lembrou, num artigo crítico e irônico da Revista Espírita, que o Sr. Magnetismo tentara numerosas vezes entrar na Academia pelas portas da frente, mas sempre rejeitado, até que resolveu trocar de nome e entrar pelas portas dos fundos, sendo bem recebido e adquirindo a sua desejada cidadania científica. A Ciência dava mais importância às aparências formais do que à substância. Kardec assinalava que o Espiritismo não era uma questão de forma, mas de fundo.

Sua crítica epistemológica desenvolveu-se implacável através dos anos sucessivos de pesquisa na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que ele estruturara e dirigia como instituição científica de pesquisas. Quando os cientistas voltavam à carga contra o Espiritismo, Kardec declarava francamente a impotência da Ciência para opinar sobre questões que os cientistas simplesmente desconheciam. Respeitava os cientistas sérios e prudentes, mas não poupava os levianos e atrevidos que se julgavam, como ele dizia, monopolizadores do bom-senso e da verdade.

Charles Richet, Prêmio Nobel de Fisiologia, reconheceu o seu valor e a sua capacidade de pesquisador, embora não aceitasse a Doutrina Espírita, que considerava precipitada. William Crookes aceitou a incumbência da Sociedade Dialética de Londres, de demolir o Espiritismo, e após três anos de pesquisas, com resultados assombrosos, proclamou a veracidade inegável dos fenômenos espíritas. A luta solitária de Kardec deu resultados inesperados: Os trabalhos de Friedrich Zöllner e do Barão Von Schrenk-Notzing na Alemanha, de Ernesto Bozzano e Chiaia na Itália, que dobraram a resistência férrea de Césare Lombroso, com várias materializações incontestáveis da mãe do grande antropólogo, o aparecimento da Metapsíquica, da Ciência Psíquica Inglesa, da antiga Parapsicologia Alemã, as pesquisas que levaram Friederic Myers a publicar seu tratado A Personalidade Humana e sua Sobrevivência, o desenvolvimento da Psicologia Experimental e por fim o aparecimento da Parapsicologia Moderna de Rhine e McDougal provaram a legitimidade da Ciência Espírita e da crítica epistemológica, de Kardec. Mas como o Espiritismo não mudou de nome, conservando-se fiel à sua origem e a si mesmo, intransigente na sua clara e precisa posição epistemológica, não foi admitido na Academia nem recebeu a cidadania científica a que tinha e tem o mais absoluto e inegável direito. Kardec, que faleceu em 1869, não teve a oportunidade de ver, em vida, os lances mais importantes da sua vitória sobre o carrancismo e o radicalismo do mundo científico oficial.

Hoje, arrastada pela correnteza da evolução, a Ciência teve de mergulhar no oceano invisível dos átomos e suas partículas, da percepção extra-sensorial e do poder insuspeitado do pensamento, precipitando-se na voragem das pesquisas sobre a reencarnação, ao absurdo das múltiplas dimensões da matéria, dos mundos interpenetrados, da antimatéria, da pluralidade dos mundos habitados, da assustadora problemática filosófica da concepção existencial do homem, da realidade ontológica considerada como subjetividade pura e assim por diante, negando-se a si mesma para poder sobreviver como sobrevivem os homens e todas as coisas e seres, segundo Kardec afirmava.

Kardec podia opinar com autoridade sobre a Ciência, porque era professor de Ciências. Mas por isso mesmo negava à Ciência o direito de opinar sobre o Espiritismo, que ela não conhecia e os cientistas o encaravam através de preconceitos, numa atitude anticientífica. Sua rejeição ao juízo científico da época, nesse sentido, é um veredicto: “A Ciência propriamente dita, como Ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a questão do Espiritismo, e seu pronunciamento a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria”. Essa declaração de incompetência é válida ainda hoje, quando vemos a Ciência confirmar o Espiritismo sem querer e sem o saber. A ignorância dos sábios a respeito, como dizia Kardec, não se modificou. A posição realista de Kardec prova a sua segurança absoluta no tocante à legitimidade das suas pesquisas. O Espiritismo se sustentava em suas bases experimentais e lógicas, sem necessitar de aprovações estranhas, mesmo porque essas aprovações não provinham de quem tivesse o conhecimento suficiente para opinar a respeito.

Por outro lado, a posição epistemológica do Espiritismo não podia ser criticada. Seu objeto era inegável: a realidade psíquica do homem e os fenômenos que a demonstravam através dos tempos. Seu método de investigação era perfeito e bem integrado nas exigências científicas, adequado ao objeto; a orientação das pesquisas era feita por um mestre capacitado e reconhecido como tal; os resultados obtidos eram interpretados com critério rigorosamente científico; a divulgação das experiências, observações e pesquisas era feita através de órgão específico e especializado, com todas as informações e minúcias das ocorrências; nenhuma experiência conseguira cientificamente negar a realidade dos fenômenos ou contrariar a validade das interpretações. Se a Ciência não reconhecia a validade científica da pesquisa espírita, não era por desmenti-la ou pô-la em cheque com outras experiências, mas por simples atitude preconceituosa, que não podia pesar em considerações realmente científicas. Restava ainda o fato importante da comprovação dos fenômenos por cientistas eminentes da época e conhecidamente contrários ao Espiritismo.

As alegações de que o Espiritismo se apresentava à Ciência como um produto híbrido, em que problemas científicos, filosóficos e religiosos se misturavam, tornando-o indefinido, não passava de manobra, pois a seqüência natural dessas áreas, no plano do desenvolvimento cultural, corresponde exatamente ao esquema espírita. A magia primitiva corresponde ao fazer experimental, portanto à Ciência; a Filosofia era a concepção do mundo dada pela experiência em que se conjugam teoria e prática; a moral decorria do comportamento determinado pela mundividência e a religião surgia como imperativo das conquistas do saber adquirido. Toda a História do Mundo Antigo testemunhava isso. As próprias culturas teológicas fizeram esses caminhos. O Positivismo de Augusto Comte, que se apresentava como Filosofia Científica, seguiria o mesmo esquema da Teoria Geral do Conhecimento, acabando por desembocar na Religião da Humanidade. Epistemologicamente nada havia a censurar ou condenar no contexto do Espiritismo. Comentando a fatuidade humana, Kardec lembra que os homens mais sábios deixam-se embaraçar por coisas insignificantes. O que impediu a expansão do Espiritismo na Europa do século passado, de maneira a poder renovar a velha criminosa concepção do mundo ainda hoje dominante, foi simplesmente o seu aspecto religioso. Como no Cristianismo Primitivo, o Espiritismo foi acolhido com ansiedade pelas camadas pobres da população, que o converteram por toda parte numa nova seita cristã. Nesse aspecto devocional as camadas superiores viam apenas o religiosismo popularesco, dotado da mesma fé ingênua de toda a religiosidade massiva. Contra essa avalancha de crentes humildes, predispostos ao beatismo, surgiram pequenos grupos de pessoas cultas, que lutaram muitas vezes com entusiasmo, mas acabaram cedendo à pressão dos preconceitos. Esses grupos se fecharam em sociedades de elite, desligados do povo, ou simplesmente desapareceram por falta de elementos dispostos ao trabalho árduo e à luta constante em defesa da doutrina. Padres e médicos aproveitaram-se disso para tentar asfixiar, acompanhados por pastores protestantes de produtivos rebanhos, o Renascimento Cristão. A palavra Cristianismo gerara um estereótipo enriquecido pelo duplo prestígio das classes dominantes e das igrejas tradicionais. As corporações científicas e as associações profissionais de médicos representavam a reação científica e as igrejas cristãs a cólera divina, disparando os raios do Olimpo contra os renegados. Apesar desses fogos cruzados sobre as suas cabeças descobertas, os espíritas conseguiram compreender os princípios fundamentais da doutrina, a sua luta pacífica no desespero das guerras impiedosas.

Mas a atualidade nos oferece perspectivas inteiramente diversas das que predominaram até agora. Graças à sua própria ignorância do assunto, os cientistas entraram a fundo no esquema de pesquisas da Ciência Espírita e comprovaram a sua veracidade. Chegamos assim a um momento crucial. E se os homens não clamarem, como advertiu Jesus, as pedras clamarão. Na verdade já estão clamando, pois é precisamente do minério que se levanta sobre o mundo a alvorada da concepção atômica, dissipando as trevas da falsa cultura materialista, em que o espírito fora substituído pelo pó dos túmulos. O poder atômico é ao mesmo tempo ameaça e consolo. E está nas mãos dos homens para que eles decidam por si mesmos o que desejam ser. A opção do Espiritismo continua aberta para todos. Quem quiser semear bombas e destruição poderá fazê-lo, mas os que optarem pela semeadura da luz, da compreensão real do homem e do Universo, do verdadeiro sentido da vida e do destino superior da Humanidade, verão na concepção espírita a solução do Grande Enigma sobre o qual Léon Denis escreveu um dos seus livros mais profundos.

A critica de Kardec à Ciência do seu tempo continua válida em nossos dias. A Epistemologia Espírita assemelha-se, neste momento, às profecias apocalípticas da Antiga Israel. Não é apenas uma crítica do Conhecimento e dos processos da Ciência, mas uma crítica do Homem, pois é ele quem busca o Conhecimento e quem faz a Ciência. A estrutura científica nos dá a imagem do Homem, do seu fazer e de como ele a fez. Voltado para fora de si mesmo, estimulado pelo fascínio da Natureza, o homem esqueceu a sua própria natureza – a natureza humana – e coisificou-se. Esse homem-coisa perdeu-se no orgulho das suas conquistas materiais e rejeitou os anseios espirituais. Por isso desenvolveu a Técnica e atrofiou a Religião. A eclosão espírita do Século XIX foi desencadeada pelos Espíritos para despertar os homens da sua apatia espiritual, lembrando-lhe que a euforia material o levaria à sua própria destruição. Descartes já lembrara que é mais fácil conhecermos as coisas exteriores do que a nós mesmos. Frances Bacon advertira que só atingimos o poder científico obedecendo a Deus. Mas Deus e suas leis foram considerados indignos do laboratório e jogados na sacristia, entregues à quinquilharia devocional das medalhas, escapulários, imagens para a idolatria e ameaças demoníacas.

Kardec estruturou a Ciência do Espírito e instituiu a pesquisa mediúnica, porque a mediunidade é a janela aberta no paredão dos fenômenos materiais para mostrar uma nesga do Infinito aos homens imantados ao finito. Sua crítica à Ciência é um ato de transcendência: liga-se em conflito a concepção do homem e do mundo, para que ambos recobrem a sua unidade e possam livrar-se da hipnose atômica. Mas os próprios espíritas, em geral, ao tentarem compreendê-lo, retornam às fontes mágicas do beatismo religioso, esquecidos de que religião sem ciência é superstição e ciência sem religião é loucura. Deus é a Fonte da Sabedoria e os homens a procuram na matéria. Esse engano vaidoso e fatal levou-nos à beira da destruição do planeta. O Espiritismo é um esforço para devolver-nos à condição humana, salvando-nos do robô. A Terra está sendo destruída pela técnica da voracidade sem limites. O Espiritismo nos oferece a única via de escape: a unidade do espírito em contraposição à fragmentação da matéria. Só a visão monista do mundo que Kardec nos oferece pode salvar-nos do caos.


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Relações Mediúnicas Naturais

O medo da morte é natural, pois o instinto de conservação dos seres é a própria garantia da sua manutenção e sobrevivência. Todo ser é o que é e quer continuar como é. Todas as coisas estão sujeitas a essa lei de inércia, que garante a estabilidade e a instabilidade das coisas no fluxo eterno da realidade mutável. Mas desde as selvas o homem sabe que sobrevive à morte e essa certeza íntima o livra do desespero e o conduz à aceitação e até mesmo ao desejo da morte, quando a vida se lhe torna pesada. O medo da morte gerou o medo dos mortos e o culto dos mortos, convertidos em deuses misteriosos ao deixar o corpo carnal. Os deuses são de duas espécies: bons e maus. Os bons nos protegem, mas os maus têm mais poder do que os bons, e nos convém manter relações amistosas com eles.

Dessa situação ambivalente do homem frente à morte nasceram os rituais da morte e os cultos dos manes ou deuses familiais. Egípcios e sumerianos, árabes e indianos, judeus e fenícios, gregos e romanos, todos possuíam os seus deuses domésticos e os adoravam e temiam. As religiões organizadas exploraram essa situação ao máximo e desenvolveram ao máximo o temor da morte nos povos. Podemos medir o poder de uma religião pela capacidade apavorante dos seus rituais mortuários. Essa exploração serviu como freio para a crueldade dos povos bárbaros, mas deixou em todos nós a marca invisível de Caim. Aprendemos a matar Abel e a temê-lo, pois sabemos que ele sobrevive como um deus que nos pode ferir. É tão forte essa marca em nosso espírito que ainda hoje, nos povos mais adiantados, há pessoas sábias e ilustradas que temem violar o segredo da morte. Os mortos não sobrevivem como seres humanos, mas como seres fantásticos num mundo de mistérios. Por isso, as pesquisas metapsíquicas de Richet, provocando materializações de espíritos, apavoraram a cultura européia, já assustada com o atrevimento de Kardec, que não temia conversar com os mortos. Um dos maiores escritores alemães, assistindo a um desses fenômenos, declarou assustado: “É uma profanação dos mistérios da morte!” E o próprio Richet, só no fim da vida escreveu a Cairbar Schutel: Mors janua vita, ou seja: A morte é a porta da vida. Imunda para os judeus, sagrada para os egípcios, a morte revestiu-se de todas as contradições no Cristianismo e o choro venal das carpideiras antigas transformou-se nas recomendações pagas do sacerdócio, com o lamento de bronze dos sinos e as litanias chorosas dos cultos mortuários. As comunicações mediúnicas dos mortos, conhecidas desde a selva até as mais avançadas civilizações, perderam a naturalidade primitiva para se transformarem nas vozes soturnas que vinham do Além, em reuniões de sabat ou através de evocações dramáticas ou trágicas, no tom assustador das tragédias de Shakespeare, pelas megeras da linhagem da Pitonisa de Endor. Estabeleceu-se a mais rígida separação entre mortos e vivos, o que deu a muitos mortos mais vivos que os vivos a oportunidade de se apresentarem como demônios em manifestações de ectoplasmia, em que o cheiro de ozônio transformou-se no cheiro de enxofre do Diabo. “Não perturbem os mortos!” – pregavam os padres nos púlpitos, enquanto nas próprias igrejas, conventos e mosteiros, como em toda parte, os mortos viviam perturbando os vivos.

Kardec, mais paciente que Jó, expôs-se a todas as maldições e zombarias para mostrar que essa interpretação fantástica não era só absurda e contrária a toda a realidade, mas também ofensiva aos seres humanos que haviam morrido e ressuscitado, como o Cristo ensinara e exemplificara. Foi dura e tenaz a sua luta para restabelecer a verdade sobre a morte. Negaram-lhe tudo: o reconhecimento da sua posição cultural, de seu valor intelectual e científico, de sua sinceridade e seus propósitos elevados, e sua condição de precursor e iniciador da Psicologia Experimental, da descoberta do inconsciente e da catarse psicológica, das instâncias da personalidade, dos arquétipos individuais e coletivos, de iniciador das pesquisas psíquicas de profundidade, descobridor do sentido oculto dos sonhos, da telepatia ou, como ele a chamou, da Telegrafia Humana, da percepção extra-sensorial e descobridor das leis de todos esses fenômenos e da cura dos processos obsessivos que ainda hoje aturde e desanima os mais eminentes psicanalistas e psiquiatras. Tudo isso lhe negaram para reduzi-lo a um charlatão interesseiro, no resguardo dos interesses profissionais de sacerdotes e médicos gananciosos.

Só uma coisa interessava a Kardec: revelar a verdade sobre a natureza e o destino do homem, provar cientificamente a sua sobrevivência natural, como o Cristo ensinara e provara. Para isso esgotou-se em trabalhos excessivos, deixando em apenas quinze anos de lutas a bibliografia espírita fundamental de vinte volumes de quatrocentas páginas em média. Ele foi também o precursor da Era Cósmica, das comunicações telepáticas através do espaço cósmico, da teoria da pluralidade dos mundos habitados, da classificação dos mundos estelares segundo sua constituição física e o grau de desenvolvimento de suas populações. Certos Espíritos lhe falavam de mundos habitados, de civilizações inferiores e superiores à nossa. Ele os interrogava, discutia com eles para avaliar a capacidade intelectual e a pureza espiritual desses informantes. Aceitou as informações como possíveis, mas não as incluiu na doutrina como verdadeiras, pois lhes faltavam as provas objetivas, que só no futuro poderiam ser obtidas. A teoria, como tal, já estava integrada na doutrina, mas as informações específicas sobre cada um deles não podia figurar como princípio. Na Escala dos Mundos, que figura n’O Livro dos Espíritos, explica os tipos de mundos com base nas várias teorias da evolução da Terra. Serviu-se de seus conhecimentos geológicos e astronômicos para essa operação lógica. O famoso astrônomo Camille Flammarion era médium psicógrafo e trabalhava com ele em reuniões mediúnicas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Flammarion escreveu um volume sobre A Pluralidade dos Mundos Habitados. As indicações que alguns Espíritos deram a Kardec sobre a rotação da Lua estavam erradas, o que só foi verificado mais tarde. Na época, esse problema não estava solucionado e não havia nenhuma teoria lógica a respeito. Kardec publicou a informação com reservas, na simples condição de teoria. Fez o mesmo com relação a Marte e Júpiter. As informações sobre Júpiter foram dadas por Mozarth e pelo grande oleiro do Século XVII, Bernard Pallissy. O dramaturgo Victorien Sardou recebeu vários desenhos psicográficos sobre aspectos de Júpiter, que seria o mundo mais elevado do nosso Sistema Solar. Os desenhos foram publicados, com reservas.

É curioso notar que esse roteiro de pesquisas cósmicas foi precisamente o seguido pelas pesquisas astronáuticas atuais: Lua, Marte e Júpiter, os três corpos celestes que figuraram nas primeiras pesquisas atuais. Quanto a Marte as informações recebidas por Kardec foram comprovadas atualmente, com exceção apenas quanto à sua população, que os Espíritos disseram ser primitiva. Júpiter que os Espíritos consideraram como um mundo de matéria bastante rarefeita, a tal ponto que os corpos dos seus habitantes assemelham-se ao nosso corpo espiritual ou perispírito, ou corpo bioplásmico descoberto pelas atuais pesquisas russas na Universidade de Kirov. As sondas espaciais soviéticas e norte-americanas dirigidas a Júpiter confirmaram a natureza mais energética do que massiva desse planeta, o maior do nosso Sistema.

Kardec delimitou a Ciência Espírita ao estudo e pesquisa da vida espiritual e das relações dos espíritos com os homens. Ao tratar da pluralidade dos mundos ele apenas atendia a um interesse lógico da doutrina, mas sempre aguardando o resultado conseguido pelas Ciências especializadas. O Espiritismo, como mundividência, concepção geral do Universo, interessa-se por todos os problemas da realidade cósmica, mas não faz afirmações temerárias sobre questões que dependem de pesquisas das ciências especificas.

Entra nesse problema uma questão não apenas de critério lógico, mas também de conhecimento das possibilidades humanas no estágio evolutivo em que nos encontramos. Os instrumentos da pesquisa espírita, como dizia Kardec, são os médiuns, instrumentos de extrema sensibilidade e complexidade. Todos os médiuns estão sujeitos a interferências anímicas nas comunicações que transmitem. A alma do médium (que é o seu espírito) pode interferir com informações suas pessoais, sem o perceber. Por isso Kardec sempre aconselhou o exame atento das comunicações recebidas, com rejeição de todas as que pudessem ser consideradas suspeitas. Numerosos médiuns, desde antes de Kardec, deram comunicações sobre outros mundos, que não passavam de fantasias facilmente reconhecíveis. Essas fantasias, como as recentes, de Ramatis, muito divulgadas no Brasil, são sempre consideradas como mistificações. Entretanto, as interferências anímicas não constituem mistificações, que são elaborações conscientes, com o fim de enganar. A segurança da comunicação mediúnica depende do controle dos pesquisadores e particularmente da sua experiência na prática mediúnica. Muitas comunicações que Kardec considerava como válidas, do seu ponto de vista pessoal, ele as divulgou sob reserva, por falta de comprovações objetivas. Essa cautela ele a transformou em regra doutrinária. O critério kardeciano mostrou-se seguro através de mais de um século de experiências e os que não o adotaram caíram sempre em situações ridículas, muitas vezes afetando o próprio conceito da doutrina perante os que não conhecem o problema.

A naturalidade das comunicações mediúnicas, e portanto das relações entre os espíritos e os homens, ressalta dessas pesquisas de Kardec. Não há o medo dos mortos influindo na aceitação de maneira supersticiosa nessas relações. Os Espíritos são considerados como criaturas humanas naturais, apenas desprovidas de seus corpos carnais. Simplesmente trocaram de roupas ao viajar para outro dimensão da realidade que escapa aos nossos sentidos físicos. A morte se transforma na páscoa da ressurreição, pois a palavra páscoa, derivada do hebraico, quer dizer passagem. O espírito não se reveste da carne, mas da matéria fluídica do perispírito. Kardec assinalou que essa matéria fluídica é semimaterial, ou seja, constituída de elementos espirituais e materiais em mistura. A descoberta da antimatéria e do corpo bioplásmico vieram sanar as dúvidas dos sábios a respeito. As pesquisas da Universidade de Kirov, na URSS, levaram os cientistas à comprovação de que o corpo bioplásmico é constituído por um plasma físico, ou seja, um elemento que William Crookes descobriu no século passado e chamou de matéria radiante, considerando-o como quarto estado da matéria. Os elementos espirituais se mesclam nesse plasma, constituído de partículas atômicas livres (não ligadas à estrutura de nenhum átomo) formando assim a semimatéria do perispírito, que estabelece a ligação entre o espírito e o corpo material. O fato de a antimatéria, ao contrário do que pensavam os físicos até há pouco, não estar separada da matéria, mas entranhada nela, explica a constituição semimaterial do chamado corpo espiritual. A imagem da crisálida que se livra do casulo para abrir as asas e librar-se no ar, em forma de borboleta, tantas vezes aplicada à morte, confirma a sua validade nessa importantíssima descoberta científica do nosso tempo.

O Espiritismo provou que a transformação produzida pela morte não afeta o espírito. E como a personalidade é o espírito e não o corpo, a identificação dos espíritos de mortos torna-se fácil para os que os conheceram em vida. Através de médiuns flexíveis os espíritos conversam conosco com toda a naturalidade, tirando-nos a falsa idéia de que se tornaram estranhos ou se metamorfosearam em entidades sobrenaturais. Nas sessões de voz-direta, sem usar o médium como instrumento, servindo-se apenas da sua ectoplasmia, essas conversações nos despertam a compreensão da vida num sentido que nem os místicos e videntes conseguem obter, por continuarem apegados à idéia falsa do sagrado ou do demoníaco, ambos deformantes da realidade física e da realidade espiritual. As igrejas e as ordens ocultistas – necessárias nas fases anteriores da evolução humana – hoje não podem mais corresponder às exigências espirituais do mundo. Seus rituais, seus dogmas, seus signos e aparatos não impressionam mais a ninguém. E na proporção em que as ciências avançam em suas pesquisas, a cultura se amplia atingindo a unidade do Conhecimento, bênçãos e maldições, sacramentos e rezas, todo o formalismo aparatoso dos cultos, os segredos guardados a sete chaves e a pompa grotesca e não raro forçada dos clérigos e mandatários divinos, guardiães da Arca Sagrada e dos mistérios de Isis, aparecem aos olhos do povo como encenações e aparelhagem teatral.

Estamos no fim do mundo da trapaça, dos malabarismos impressionantes, das sugestões hipnóticas, da falsa importância e do falso poder dos que se dizem ministros de Deus ou gurus e ioguis detentores de poderes sobrenaturais. Caem as máscaras da hipocrisia na moral e na religião. O homem se emancipa e reconhece a sua condição humana com destino transcendente, mas de uma transcendência que não depende de sagrações, unções, ordenações de natureza secreta. Os poderes do homem não são sobrenaturais, estão nele mesmo, no seu íntimo, e o fazem superar o comum, transcender a condição geral através do desenvolvimento natural de suas potencialidades morais e intelecto-afetivas, volitivas e cognitivas. Fora disso, tudo são balelas de um passado agonizante e ridículo. Vai longe o tempo em que o Cardeal de Richelieu podia traçar um círculo imaginário ao seu redor, usando o seu misterioso latinório, para que os adversários não o agredissem.

Por isso, o Espiritismo só admite, em seu aspecto religioso, ligado à Ciência e a Filosofia, portanto à Razão, a prática da prece e do recolhimento em seu culto, a persuasão e o esclarecimento em lugar dos exorcismos pagãos, e só reconhece uma autoridade espiritual no trato com os espíritos: a autoridade moral. Fora disso, não há títulos nem fórmulas sacramentais, nem rezas especiais, nem símbolos religiosos que possam livrar uma criatura perturbada dos espíritos inferiores que a assediam.

Entre os rabinos de barbas untadas de óleo aromático e envoltos em suas vestes sagradas e os romanos de barba raspada, marcados pelos signos de César, Jesus de Nazaré preferiu a túnica de estamenha dos carpinteiros humildes. As quinquilharias sagradas e as insígnias oficiais nada representam para os Espíritos, que não vivem mais no mundo fantasioso dos homens, mas no seu próprio mundo. Libertos do corpo material, eles guardam por algum tempo os costumes e hábitos, os falsos conceitos e a estreita visão das coisas que levaram da Terra. Mas pouco a pouco, nos choques inevitáveis da sua conduta terrena com o novo mundo em que se encontram, vão sendo obrigados a adaptações renovadoras. Os antigos hebreus, como nos ensina Matim Burbe, consideravam o plano espiritual mais próximo da crosta terrena como mundo da ilusão. Nesse mundo, aparentemente semelhante ao nosso, mas com muitas condições diferentes, os espíritos mais apegados à vida material ali conservam suas velhas ilusões o mais que podem, mas a realidade nova se impõe a cada instante e eles acabam percebendo que as vibrações morais são mais poderosas do que as tradições humanas. A autoridade moral não decorre de títulos e posições, mas do poder natural do espírito equilibrado.

As relações desses espíritos com os homens são naturais, pois os homens são espíritos e por toda parte os espíritos se comunicam uns com os outros. Essa naturalidade se acentua quando sabemos que esses espíritos estão no mesmo plano em que estamos, são nossos vizinhos dimensionais e convivem conosco. Desde as selvas por toda a Antigüidade sabemos que estamos divididos dos espíritos dos mortos por uma tênue barreira, um só dos véus de Isis, de maneira que eles se misturam a nós e interferem em nossos pensamentos e sentimentos, muitas vezes a nosso pedido. Kardec demonstrou isso de maneira absoluta e a Parapsicologia atual sancionou com novos métodos de pesquisa essa realidade em toda a sua extensão. A telepatia é uma realidade social permanente nas relações humanas e nas relações do intermúndio. Todos nós falamos constantemente com os espíritos que vivem ao nosso redor, e não raro de maneira consciente. O trânsito permanente entre os dois mundos, o dos homens e o dos espíritos, se processa a todo instante. Os que morrem no aquém vão para o além, os que nascem no aquém procedem do além. Nessa convivência multimilenar o medo dos mortos é um contra-senso que só os preconceitos religiosos e materialistas podem justificar. Falar em profanação da morte, violação do mistério e coisas semelhantes é simples absurdo, ante essa realidade das inter-relações milenares entre homens e espíritos.

As provas acumuladas a respeito nas sociedades de pesquisas psíquicas, nos anais da Metapsíquica e na vasta literatura de pesquisa séria, em obras publicadas por cientistas eminentes do século passado e do nosso século, todas elas atualmente comprovadas pelas pesquisas recentes, não deixam margem alguma para dúvidas. As exigências científicas nesse campo foram todas cobertas por pesquisas rigorosas realizadas por figuras exponenciais das Ciências. Mas a menor dúvida levantada anulava os esforços realizados e seus inegáveis resultados. Os métodos de pesquisa sob controle estatístico, na Parapsicologia atual, – postos também em dúvida – acabaram vencendo a teimosia dos cientistas alérgicos ao futuro (segundo a expressão de Remy Chauvin) e a aceitação inevitável da realidade implicou no assunto as áreas ideologicamente materialistas da URSS e sua órbita. O que mais querem os negadores? Que os levemos a uma assembléia do mundo dos espíritos? Isso não compete a nós, mas à morte, que fatalmente os levará para esse mundo, sem os convidar nem lhes pedir licença.

O caso dos agêneres é a comprovação objetiva da realidade dessas relações mediúnicas naturais. O agênere (não gerado) é uma espécie de materialização espontânea, sem reunião especial, sem médiuns presentes, em pleno dia, nas ruas e praças, a céu-aberto, em que uma pessoa falecida encontra um amigo ou um parente, abraça-o, conversa com ele e despede-se naturalmente. Os casos comprovados são numerosos. Assim, o direito espírita de tratar desses assuntos, que as igrejas se reservam a si mesmas e negam ao Espiritismo, é um direito natural, decorrente das próprias condições humanas e comprovada pelas manifestações espontâneas em todos os tempos e em todas as latitudes geológicas e históricas do nosso planeta.


12 
Colaboração Interexistencial

A Filosofia atual, representativa do nosso século, é a Existencial. Dela se derivou o movimento existencialista, por uma interpretação espúria do pensamento de Jean-Paul Sartre. Mas o pensamento desse famoso filósofo francês nada tem a ver com as estroinices da cantora Julliete Grecco, que aproveitou-se do renome de Sartre para criar no Café de Fiore, em Paris, um movimento juvenil em que se atribuiu o título de Musa do Existencialismo, dando a Sartre o título de Papa do Existencialismo. Simone de Beavoir, discípula e companheira do filósofo, perguntou-lhe porque aceitara essa situação. Sartre deu de ombros, dizendo que nada tinha com o movimento da cantora e nem se interessava por ele. O famoso autor de O Ser e o Nada e da Crítica da Razão Dialética costumava escrever numa das mesas do Café, e ali continuou a trabalhar, indiferente aos shows da cantora. A Filosofia Existencial desfigurou-se na opinião dos leigos, mas não abalou o seu prestígio no meio intelectual. Fundada por Kierkegaard, teólogo dinamarquês, que não pretendia filosofar, a Filosofia Existencial dominou o pensamento filosófico mundial e permanece como o marco de uma profunda revolução filosófica, semelhante à de Copérnico na Astronomia. O conceito existencial do homem foi desenvolvido pelos maiores filósofos contemporâneos, como Martin Hideggar, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Simone, Camus e outros. Esse conceito corresponde ao espírita, formulado por Kardec na Filosofia Espírita. O homem é um projeto, um ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direção à transcendência que é o objetivo da existência. Para Sartre, materialista, a morte é a frustração do homem. Para Heideggar, metafísico, homem se completa na morte. A Filosofia Existencial admite, em geral, que o ser é um embrião lançado à existência para desenvolver suas potencialidades. Há uma diferença essencial entre Vida e Existência. Todos os seres vivem, mas só o ser humano existe, porque existir é ter consciência de si mesmo e viver em ritmo de ascensão, buscando superar a condição humana e atingir a divina. O homem é o único existente. Esta palavra, existente, designa o homem como ser na existência.

Vejamos o sentido tipicamente espírita dessa concepção do homem. Antes de ser; o homem é apenas um vir-a-ser, uma coisa misteriosa fechada em si mesma. Ansiando por relação, essa coisa se projeta na existência e se abre na relação, encontrando nesta os elementos que a despertam e a transformam num ser. Este toma consciência de sua própria natureza de ser e como tal busca superar-se. No trânsito existencial desenvolve a sua essência e abre no maciço do mundo, feito de leis rígidas e fatalistas, a única brecha de liberdade, que é o homem com seu livre arbítrio. Para Sartre, ao chegar à morte o homem já elaborou a sua essência na existência, mas esta não subsiste porque o homem desaparece na morte: o homem é uma frustração. Para Heidegger, o ser se desenvolve na existência e se completa na morte: é uma realização. Para Jaspers, o desenvolvimento do ser na existência se faz em duas etapas:

1ª) a transcendência horizontal, no plano social;

2ª) a transcendência vertical, na busca de Deus.

Sartre aplica ao existente a dialética de Hegel:

a) o homem antes da existência é o em-si;

b) o homem na existência é o para-si;

c) o homem na morte é o em-si-para-si.

Como vemos, o em-si-para-si é a síntese dialética em que o em-si, (fechado em si mesmo) e o para-si, (aberto na relação social), que é a transcendência, horizontal de Jaspers, resolve-se no em-si-para-si, que é a condição divina atingida na transcendência vertical.

O conceito filosófico de existência difere profundamente do conceito de vida. Enquanto a vida se define como o elã de Bergson, um impulso, uma força que penetra na matéria e, segundo a idéia hegeliana, modela as formas, a existência é subjetividade pura, o que vale dizer espírito. Assim, não vivemos como as plantas e os animais, integrados na matéria, mas como espíritos ligados à matéria para usá-la em função de seus interesses subjetivos. Vivemos na psique e não no corpo. Nossa vida não é propriamente vida, mas um existir independente das coisas e dos seres materiais, cuja única aspiração verdadeira é a liberdade, que só podemos de fato obter e gozar na interioridade de nós mesmos. Mesmo encarnados, não saímos do plano espiritual, continuamos nele, nosso habitat natural, como sonâmbulos. A matéria não nos absorve, apenas reflete-se em nossa sensibilidade. O dia e a noite, a vigília e o sono, como Jaspers observou, marcam o ritmo existencial da relação alma-corpo. Durante o repouso do corpo, para refazer-se, voltamos ao mundo espiritual no veículo do perispírito, e mesmo em plena vigília escapamos da matéria através das fugas psíquicas, das projeções telepáticas, das várias modalidades da percepção extra-sensorial. A hipnose prova o sentido ilusório do viver. No estado sonambúlico ou hipnótico, semidesligados do corpo, vagamos no intermúndio e aceitamos facilmente as sugestões de uma situação irreal: tocamos violino sem violino, sentimos calor e suamos sem calor, resistimos ao fogo sem queimar-nos, regressamos no tempo e nos projetamos no futuro através da memória e assim por diante. A Gestalt nos mostra a ilusão da forma na percepção normal do mundo, em que as aparências pregnantes cobrem a realidade material precipitando-nos em quedas e frustrações. A evolução da Física roubou-nos o mundo sólido e opaco do passado e lançou-nos no torvelinho dos átomos e das partículas nucleares. A matéria esfarelou-se nas mãos dos físicos e obrigou-nos a reconhecer, como seres evanescentes, que vivemos num mundo mágico de estruturas imponderáveis.

Diante dessa realidade fantástica, as leis físicas às quais Bertrand Roussel se apegou para não naufragar no irreal, impõe-se a realidade-real das leis psíquicas, do espírito que domina, estrutura e ordena a matéria. O que chamamos de vida se transforma em existência, e esta não é mais do que a curta medida do tempo necessário para nos libertar-nos de um condicionamento mental determinado pela ilusão dos sentidos, como Descartes já verificara e demonstrara em suas tentativas de nos dar a Ciência Admirável que o Espírito da Verdade lhe revelara em sonhos. O cogito ergo sum do filósofo aparece-nos hoje como um traço de união entre o Cristianismo puro do Cristo e o Espiritismo, em que a verdade revelada se restabelece na sua realidade incompreendida, como uma ponte fluídica e indestrutível que liga duas partes do real, separadas pelo abismo de quase dois milênios de loucura, de esquizofrenia religiosa. Ao descobrir que essa frase cartesiana – penso, logo existo – foi o abre-te Sésamo de um filósofo mágico que não queria ilusionar mas atingir a Verdade, compreendemos que a ponte cartesiana passou sobre um abismo onde espumou por milênios a voragem de sangue e impiedade de um pesadelo mundial. E tão hipnótica foi essa voragem que cientistas e filósofos ainda resistem ao chamado da nova concepção do homem e do mundo em que o Espírito da Verdade nos oferece. O próprio Descartes, apegado aos ídolos de Bacon, saiu do seu deslumbramento para uma peregrinação ao ídolo de Nossa Senhora da Saletti, no cumprimento de uma promessa. Repetiu-se nesse episódio histórico a mensagem do Mito da Caverna na República de Platão. Um escravo escapou dos grilhões e foi ver à luz do Sol a realidade que só conhecia através das silhuetas de sombras. E quando voltou e contou o que vira lá fora, os demais o consideraram perturbado. No entanto, a partir de suas obras iniciava-se no mundo a Renascença Cristã, que se completaria mais tarde numa eclosão mediúnica em que as línguas de fogo do Pentecoste se acenderiam de novo sobre a cabeça dos Apóstolos da Nova Era. O conceito de existência é o carisma do Século XX, da fase mais aguda da transição planetária para um grau superior da Escala dos Mundos. As inteligências terrenas foram convocadas para a nova batalha cristã, em que os Mártires da Verdade não sofreriam mais as penas cruentas do passado tenebroso, mas enfrentariam as angústias da incompreensão e o martírio inevitável da marginalização cultural. Os construtores da nova cultura, nascida dos princípios cristãos, iniciariam sob escárnio e calúnias a construção da Civilização do Espírito. Esse o grave problema que os espíritas precisam encarar com a maior seriedade em nosso tempo, pois somos herdeiros dessa causa e os continuadores dessa obra. Se não nos empenharmos nela com a devida consciência da sua importância, se não formos capazes de sacrifício e abnegação em favor dos novos tempos, assumiremos também a nossa parte de responsabilidade nos fracassos que poderão levar-nos a uma catástrofe planetária.

Mas é bom lembrar que não estamos sós. Ao conceito de existência dos filósofos atuais o Espiritismo acrescenta o conceito da solidariedade existencial entre os espíritos e os homens. Provada a sobrevivência dos mortos pela pesquisa científica e demonstrada a interpretação dos mundos material e espiritual – que se evidência na nossa própria organização psicofísica –, impõe-se naturalmente o conceito espírita da interexistência. Já vimos que não vivemos apenas no plano material, que não estamos fundidos no corpo carnal, mas apenas ligados a ele como o condutor ao seu veículo. Nos estudos de Hipnotismo aprendemos que a nossa vida diária também se processa simultaneamente em dois planos. O mesmo acontece com os espíritos, que não estão isolados no plano espiritual, mas passam constantemente do seu plano para o nosso, como vemos no caso das comunicações mediúnicas, das aparições, das materializações e até mesmo, de maneira espontânea e concreta, visível e palpável, no caso das agêneres. Assim, a interpenetração do plano espiritual inferior com o plano material superior (a crosta terrena e sua atmosfera), constitui a zona planetária a que chamamos de intermúndio. Os gregos antigos diziam que os seus deuses viviam no Intermúndio, entre o Céu e a Terra. O Espiritismo nos permite compreender essa verdade de maneira clara e racional: para eles, os espíritos eram os deuses bons e maus que se comunicavam através dos oráculos e das pitonisas. Eles também conheciam as agêneres, pois os seus deuses podiam descer do Olimpo e aparecer aos homens como homens. O conceito de interexistência deriva do conceito de intermúndio formulado pelos gregos.

E no Espiritismo esses conceitos se ampliam através das pesquisas mediúnicas, revelando as leis da colaboração interexistencial a que naturalmente se entregam os espíritos e os homens em todos os tempos, desde os primitivos até ao nosso. Contamos, pois, com a colaboração constante dos nossos companheiros de humanidade na batalha cristã de elevação da Terra.

Anotemos a importância que, nesse contexto, adquirem as sessões mediúnicas de orientação e esclarecimento de espíritos sofredores ou malfeitores. A doutrinação espírita, sempre auxiliada pelos Espíritos Superiores e os Espíritos Bons que os servem, é um trabalho humilde de caridade que, no entanto, não se limita aos efeitos pessoais em favor do socorrido e das suas vítimas, pois sua contribuição maior é a da renovação consciencial ou despertar das consciências humanas para as responsabilidades do ser na existência. Pouco pode fazer uma sessão de doutrinação, diante da extensão dos desequilíbrios, a multidão de sofredores e malfeitores que nos rodeiam. Mas cada espírito que se esclarece é uma nova irradiação nas trevas conscienciais. Além disso, numa pequena sessão não temos o esclarecimento apenas das entidades comunicantes. Em geral, é maior o número de espíritos assistentes, que se beneficiam com a doutrinação dos que se encontram na sua mesma situação. Por outro lado, o ambiente espiritual da sessão irradia suas luzes muito além do recinto estreito em que se realiza. O milagre da multiplicação dos pães se repete em cada sessão de humildes servidores da causa que é de toda a Humanidade. Os resultados positivos das sessão vão muito além do que podemos perceber, espalhando seus benefícios no intermúndio, no Espaço e na Terra. Note-se ainda que essas sessões representam a colaboração humana aos trabalhos de esclarecimento e orientação que os Espíritos realizam incessantemente no plano espiritual. Essa participação dos homens nas tarefas espirituais restabelece os elos de fraternidade desfeitos pelo formalismo igrejeiro. E desfaz a fábula do ciúme dos anjos, que teriam se rebelado contra Deus pela encarnação de Jesus como homem, pela concessão aos padres do direito de perdoar pecados, que os anjos não possuem. Fábulas dessa espécie, criadas pela pretensiosa imaginação teológica, dão-nos a medida do desconhecimento dos clérigos mais ilustrados e prestigiosos sobre a realidade espiritual. Os anjos não são mais do que espíritos humanos que se sublimaram em encarnações sucessivas. O Espiritismo coloca o problema da Criação em termos evolutivos, à luz da concepção monista e monoteísta. Nas sessões mediúnicas de caridade anjos, espíritos humanos e espíritos diabólicos participam como orientadores, doutrinadores e necessitados de doutrinação. Não sendo o Diabo mais do que uma alegoria, um mito representativo dos espíritos inferiores voltados ao mal, a presença dos impropriamente chamados espíritos diabólicos nas sessões de socorro espiritual é justa e necessária. Ninguém necessita mais do socorro humano do que essas criaturas transviadas. Quando elas não estão em condições de aproveitar a oportunidade, não lhes é facultada a comunicação mediúnica. Permanecem no ambiente como observadores, vigiados pelos espíritos guardiães, e aprendem aos poucos, como alunos ouvintes, a se prepararem para o tratamento de que necessitam. Muitas pessoas não gostam dessas sessões de comunicações desagradáveis, onde a caridade brilha no seu mais puro esplendor. São nelas que os pretensos diabos deixam cair suas fantasias infelizes para vestir de novo a roupagem comum dos homens; voltando ao convívio dos que seguem a senda da evolução espiritual. Os grupos que se recusam a realizar esses trabalhos de amor acabam caindo nas mistificações de espíritos pseudo-sábios e pagam caro o seu comodismo e a sua pretensão.

A colaboração interexistencial iniciada pelo Espiritismo estabeleceu a verdadeira fraternidade espiritual na Terra. Esse fato marca um momento sublime nos rumos da transcendência humana. O planeta das sombras, cuja História é um terrível caleidoscópio de atrocidades e maldades, brutalidades e miséria moral, ganhou um ponto de luz celeste com essa reviravolta em suas precaríssimas condições religiosas. O desenvolvimento das práticas de socorro espiritual indiscriminado, oferecido a todos os tipos de necessitados, dará condições à Terra para se libertar das sombras e elevar-se aos planos de luz. O lema espírita: Fora da Caridade não há Salvação é o passaporte da Terra para a sua escalada aos planos superiores. Os médiuns que trabalham nessas sessões de socorro, ao invés de preferirem aquelas em que só se interessam por mensagens de Espíritos Superiores, estão mais próximos dos planos elevados e das entidades realmente superiores. Não foi para os elegantes e vaidosos rabinos do Templo que Jesus veio à Terra, mas, como ele mesmo disse, para as ovelhas transviadas de Israel. Os que pensam que só devem tratar com Espíritos Superiores provam, por essa pretensão, a incapacidade de compreender a elevação espiritual.


13 
Função do Egoísmo
no Desenvolvimento Humano

Tudo tem a sua utilidade na Natureza. O Universo é teleológico, finalista, busca sempre e em tudo uma finalidade. Os filósofos antifinalistas apóiam suas teorias no erro humano, de todos os tempos, que interpreta a Natureza como criada especialmente para o homem. Esse erro surgiu nas selvas, permaneceu nas civilizações primitivas e projetou-se nas civilizações posteriores. Os próprios deuses e demônios de toda a Antigüidade foram postos ao serviço do homem, que embora os reverenciando, pretendiam utilizá-los como seus auxiliares. O Universo tem, naturalmente, uma finalidade única e superior, em que todas as finalidades se conjugam num resultado único. Mas esse resultado escapa às nossas possibilidades de pesquisa, de compreensão e mesmo de imaginação. A mais inútil das coisas e os mais prejudiciais dos seres são necessários. E ser necessário é ser indispensável, é pertencer a um elo da cadeia inimaginável que Kardec nos apresenta nesta frase tantas vezes repetida n’O Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo.

Os problemas ecológicos da atualidade, surgidos com o desenvolvimento tecnológico, deram ênfase à importância da Ecologia, ciência das relações entre sujeito e meio e mesmo entre objeto e meio. O meio físico em que vivemos, com seus elementos naturais configurando determinada situação mesológica humana, é formado por uma infinidade de substituições necessárias à vida vegetal e animal. A ignorância do homem a respeito, tentando aniquilar elementos nocivos do meio, provoca o desencadeamento de desequilíbrios perigosos e até mesmo fatais. Minerais, vegetais e animais considerados perniciosos, quando retirados do meio, revelam a sua função necessária e têm de ser repostos ou substituídos por outros que os compensem. Esse delicado equilíbrio das coisas mínimas apresenta-se também nas coisas máximas, como no jogo de forças que sustentam o equilíbrio planetário e o próprio equilíbrio das galáxias no espaço sideral. O mesmo acontece na nossa estrutura corporal, com seus vários aspectos físicos, psíquicos e espirituais. Por isso o Espiritismo é contrário a todas as práticas de mortificação, extinção, asfixia ou desenvolvimento de funções, instintos, percepções e poderes inferiores ou superiores na criatura humana. Esta deve ser respeitada em sua integridade, com seus defeitos, deformações, deficiências e assim por diante, cabendo-nos apenas o direito, que é também dever, de auxiliar as criaturas no seu processo natural de aperfeiçoamento e reajustamento, nos rumos naturais da transcendência. Nem mesmo a mediunidade deve ser desenvolvida por supostas técnicas provindas de tradições místicas ou de invenção de pretensos mestres espirituais. O Espiritismo se opõe a todas essas tentativas imaginosas, que podem levar, como tem levado, muitas pessoas a desequilíbrios graves.

O egoísmo, a vaidade, o orgulho, a pretensão, a ambição representam elementos negativos da constituição do ser humano, que devem ser eliminados. Mas essa eliminação não se dá pelos métodos antigos das corporações religiosas, até hoje empregados, apesar dos terríveis malefícios causados. Kardec e os Espíritos Superiores, em suas comunicações, consideraram o egoísmo como verdadeira praga que impediu o desenvolvimento real do Cristianismo na Terra. Mas jamais aconselharam métodos artificiais para o combate ao egoísmo. As penitências, os cilícios, o isolamento, as autoflagelações de toda espécie tornaram mais negra a Idade Média e ainda hoje se escondem nas furnas da ignorância religiosa que só serviram para desequilibrar milhões de criaturas que constituem o triste e pesado legado da Antigüidade para nosso tempo. São Tomaz de Aquino advertiu: “Mães, vossos filhos são cavalos”, e a educação das crianças transformou-se em domesticação, processo esmagador da sensibilidade infantil e das esperanças da adolescência. Gerações recalcadas saíram das estrebarias escolares em que os mestres domavam crianças e jovens a pancadas e castigos brutais, para moldá-los segundo os modelos estabelecidos à formação de multidões padronizadas. Todos nós carregamos ainda as marcas profundas e dolorosas, deformantes, do relacionamento humano na Terra. Com a caridade os homens vão aprendendo a sair do egoísmo para o altruísmo, a não pensar apenas nos seus problemas particulares, a não dividir o seu tempo e bem-estar apenas com os familiares, mas levar um pouco de si mesmos e dos seus recursos para a família maior que sofre lá fora. É essa a finalidade do princípio cristão da caridade no Espiritismo. Por isso a caridade espírita não pode cercar-se de barreiras e dificuldades, de exigências e desconfianças. Deve ser ampla e generosa, acessível a todos, evitando constranger ou humilhar os que a recebem. O ego é como uma flor que primeiro se fecha no botão para depois desabrochar na corola e por fim doar-se nos frutos.

Tentemos visualizar o processo de formação do ego, para compreendermos a função do egoísmo. A dialética espírita nos ensina que o espírito (não individualizado, mas como o elemento espiritual catalisador, capaz de atrair e aglutinar a matéria esparsa no espaço) liga-se à matéria para lhe dar forma, estrutura. Podemos seguir esse processo no caso humano, em que o ego aparece como um pivô da personalidade em formação, desde a infância. A criança é egocêntrica, é um pivô em torno do qual giram as atenções e as afeições da família. Ela se torna, naturalmente, no centro do mundo. Porque esse é o meio de consolidação da sua individualidade. Tudo quanto ela atrai e absorve do ambiente, do exemplo familial, das relações progressivas na escola e nos brinquedos, é automaticamente centralizado no ego, que é o seu ponto interior de segurança ante a dispersividade do mundo. O botão fechado centraliza as suas energias, preparando o momento de abrir-se na corola colorida e perfumada. Essa a primeira função do ego, e essa função não é egoísta, mas centralizadora por necessidade de estruturação interna. Quando essa estruturação se define como tal, a criança se abre timidamente para oferecer ao mundo a sua contribuição inicial de beleza e ternura. É um novo ser que surge no mundo, vestido com a roupagem da inocência, como diz Kardec, e ao mesmo tempo trazendo a incógnita de um passado que se revelava pouco a pouco no esquema de um destino com idéias e hábitos negativos que nos foram impostos à força de milênios de brutalidade civilizadora. Por isso o nosso tempo, em que tomamos consciência do absurdo desse massacre universal realizado em nome de Deus, mostra-se dominado por inquietações e desesperos, revolta e loucura, psicopatias e obsessões que levam a espécie humana a todos os desvarios e ao suicídio individual e coletivo. Temos de examinar essa situação à luz do Evangelho desfigurado e mal interpretado, muitas vezes contraditado frontalmente pelas teologias do absurdo. E temos de confrontar esse mundo-hospício, em que a loucura mansa dos clérigos e dos fascinados pela mentira consciente ou inconsciente é a mais perigosa de todas, gerando a hipocrisia das vozes impostadas e do comportamento social simulado. A simulação na luta pela vida, estudada por Igenieros num livro assustador, é o sintoma mais evidente das condições patológicas do homem atual, que se tornou num ego atrofiado, por isso mesmo vazio e faminto, que tudo quer exclusivamente para si mesmo. E isso a tal ponto que a palavra caridade, definida pelo Apóstolo Paulo numa síntese insuperável e adotada por Kardec como o fundamento da evolução humana, transformou-se na linguagem atual num sinônimo de hipocrisia. No próprio meio espírita encontramos os desavisados que condenam essa palavra, sem lhe aprofundarem o sentido. E há os que pretendem disciplinar a caridade, fiscalizar o seu aproveitamento pelos beneficiados e obrigá-los a determinadas exigências para socorrê-los. Há também os que alegam a inutilidade dessa forma de ajuda. Esses não pensam no bem que uma palavra amiga e confortadora, uma visita de solidariedade, um socorro de emergência a quem está desprovido de roupas para enfrentar o inverno ou de remédio para uma chaga, podem representar. A caridade espírita não é esmola, é doação de amor, solidariedade humana que vale não só pelo amparo material, mas acima de tudo pelo conforto da relação humana. Sua prática não tem por finalidade sanar os males sociais com remendos eventuais, mas mudar as formas egoístas da relação humana na Terra, ampliando-a e aprofundando-a nas dimensões superiores do altruísmo. Nesse estranho panorama de castas privilegiadas, povo necessitado e multidões miseráveis, o Espiritismo considera a mecânica da caridade como o instrumento ideal para abrir corações, despertar consciências e alentar esperanças. As ideologias políticas apresentam fórmulas de efeitos superficiais e na reforma muitas vezes penosa de estruturas, mas o Espiritismo restabelece a técnica simples do Cristo, que toca o íntimo das criaturas para atingir as causas profundas dos desajustes. Em cada reencarnação o ser repete ao mesmo tempo a filogênese material e espiritual do homem, no desenvolvimento do embrião e na abertura progressiva do egoísmo no meio social. Vejamos os vetores desse processo duplo nas linhas da transcendência:

a) Na magia do amor, reminiscência das atrações misteriosas na selva, o par humano se liga sob a impulsão dos instintos reprodutores e os genes se fundem no ventre materno produzindo o embrião, síntese das formas animais superadas pela espécie. A recapitulação genésica reintegra o espírito na linha filogenética e restabelece o pivô do ego em seu poder centralizador. Na gestação, o paralelismo psicofísico reordena as forças da evolução nos rumos da ascensão. A forma humana resulta das formas anteriores na sublimação do caos instintivo e sua hereditariedade psicobiológica. O espírito ligado ao caos exerce as funções discriminadoras na conformação do novo ser, disciplinando as energias conscienciais que marcam as conquistas do passado e as autopunições de erros e crimes anteriores. A Providência Divina envolve o novo ser em sua bênção com aparência da inocência, que lhe permitirá atrair a afeição dos familiares no restabelecimento de afetividades perturbadas ou aprofundamento das afeições sobreviventes. O novo cérebro está virgem como a tabula rasa dos empiristas ingleses, pronto a gravar um novo rol de lembranças na nova memória em organização. No arquivo do inconsciente (nessa consciência subliminar de Myers) as heranças válidas permanecem ocultas, mas prontas a emergir na consciência de relação pelo mecanismo das associações de idéias e sentimentos.

b) Vencida a etapa uterina e a primeira infância, o ser se mostra pronto a enfrentar as vicissitudes de uma nova existência. Recobrou sua vida terrena nas entranhas da mãe, sob as influências psicofisiológicas do organismo gerador de seu novo corpo. Revela anomalias ou perfeição física e mental, segundo o seu passado. É de novo o centro do mundo e traz em si mesmo os fatores de seu desenvolvimento e amadurecimento. No lar esses fatores se manifestam desde logo, mas vão sofrer as influências modificadoras da família e da escola, para o seu ajuste necessário às novas condições de vida. O instinto de imitação lhe favorece a adaptação ao novo mundo. O ego centralizado volta a abrir-se nessas relações primárias, através do desenvolvimento da afetividade em termos eletivos. Suas preferências são ainda impulsivas, provocadas por fatores ambientais e circunstanciais, mas pouco a pouco se define a linha preferencial da razão em desenvolvimento, revelando as afinidades ocultas. O ser toma pé na realidade e manifesta as suas tendências vocacionais. É o momento de reintegração nos esquemas frustrados do passado ou de renovação do esquema em face das novas exigências da realidade nova.

c) A crise da adolescência vai revelar em breve a posição ôntica precisa ou indecisa do novo ser, herdeiro de si mesmo e das contribuições paternas e maternas, familiais e sociais, excitadas pelo meio cultural e reorientadas pela influência espiritual das entidades espirituais que protegem e o assistem constantemente. Está completa a tarefa da ressurreição na carne. Daí por diante, o novo destino do ser na transcendência dependerá de sua própria consciência. Ele está preparado e aparelhado para enfrentar os problemas da juventude e suas graves opções, da madureza e seus desafios, da velhice e sua recapitulação de toda a odisséia existencial que deve tê-lo elevado acima do passado no processo irreversível da transcendência. O egoísmo do adulto será a marca de um distúrbio psíquico: o infantilismo. O altruísmo será o troféu conquistado da sua vitória na escalada evolutiva.

Seu regresso à vida espiritual o colocará em face de sua verdadeira situação. Será certamente um vitorioso em muitos aspectos de sua personalidade, mas o fracasso na transcendência do egoísmo lhe mostrará que todas as conquistas secundárias não podem compensá-lo. Terá de voltar à existência terrena em reencarnações de abnegação forçada, não compulsórias, mas de sua própria escolha, para conseguir a superação difícil do apego a si mesmo. Por sua própria natureza de elemento centralizador da estrutura ôntica, responsável pela sua unidade, o ego é a grande barreira contra a qual se quebram os impulsos da transcendência. Seu solipsismo tautológico o transforma numa viragem do espírito, imantando-o a si mesmo. A parábola do moço rico, no Evangelho, dá-nos o mais claro exemplo do apego ao mundo gerado pelo egoísmo nos Espíritos que se deixam fascinar pelas ilusões materiais . O ego gera as falsas idéias de superestimação individual, de segregação do indivíduo e sua grei, considerando os demais como estranhos e impuros. Age como um centro hipnótico absorvente, impedindo o ser de abrir-se no altruísmo, fechando-lhe o entendimento para tudo o que não se refira aos seus interesses individuais. A vaidade, a arrogância, a prepotência, a insolência, a brutalidade se formam no cortejo de estupidez das pessoas egoístas e dos Espíritos egoístas.

Por isso, o Espiritismo proclama a caridade como a virtude libertadora, fora da qual não há salvação para o homem do mundo. A mecânica da caridade pode ser desencadeada, no homem do mundo, por situações aflitivas; de saúde ou de problemas familiais ou financeiros, levando-o a dar, não raro por vaidade, a primeira moeda a um mendigo. Essa doação insignificante abre uma pequena brecha no egoísmo. A seguir virão outras doações mais generosas, até que a fortaleza do ego se abale e o ser orgulhoso possa perceber a sua própria imagem refletida no espelho doloroso de um rosto de pedinte esfomeado. O Espiritismo nos ensina a dar, além da moeda, o nosso amor a toda a Humanidade, sem discriminações raciais, religiosas, políticas e de espécie alguma. A estrutura social da civilização perfeita não surgirá das mãos dos opressores que tudo prometem, mas das mãos humildes da viúva que depositou a sua moeda pequenina e única no cofre em que os ricos despejaram tesouros para comprar o Céu.


14
Os Três Corpos do Homem

O problema dos corpos humanos tem uma longa e confusa tradição, baseada em revelações antigas e entremeada de superstições populares. Na tradição cristã firmou-se a teoria dos dois corpos referidos pelo Apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios: o corpo animal ou material e o corpo espiritual. Kardec pesquisou o assunto com a insistência e o rigor que o caracterizavam e chegou a conclusões objetivas de que o homem é dotado de três corpos, que são:

a) o corpo animal ou material mencionado por Paulo, que é o corpo orgânico sujeito à destruição pela morte;

b) o corpo espiritual referido por Paulo, que Kardec verificou ter uma constituição semimaterial, com energias espirituais e materiais em mistura, destinado a ligar a alma ao corpo e a servir à ressurreição logo após a morte; esse corpo não está sujeito à morte material, mas à transformação após a morte para servir na ressurreição, e sujeito à destruição por abusos do espírito no plano espiritual inferior e às modificações exigidas por futura reencarnação, para adaptar-se a novas formas e a novas determinações genésicas e hereditárias;

c) o corpo espiritual superior, desprovido de matéria, em que o espírito, livre daquele envoltório, vive a vida eterna de que falam as religiões; esse corpo é inacessível à nossa percepção, a não ser como uma centelha etérea, segundo a expressão Kardeciana; é o corpo natural do espírito em seu estado de pureza espiritual e só pode ser usado pelas entidades que atingiram a finalidade das reencarnações, deixando o plano da erraticidade.

A trindade humana, constituída de Espírito, Perispírito e Corpo, realiza assim a transformação de que trata o Apóstolo Paulo, atingindo a síntese suprema da evolução nos corpos inferiores. Dessa maneira, o corpo espiritual superior reflete em sua estrutura angélica real e indestrutível:

a) A Trindade Universal de Deus, Espírito e Matéria;

b) A Trindade doutrinária de Ciência, Filosofia e Religião.

São essas as duas Trindades Superiores, referentes à concepção do Cosmos e à concepção da Doutrina Espírita.

Temos assim a comprovação, no mais alto plano da realidade espiritual, do princípio doutrinário enunciado em O Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo.

Por outro lado, essa comprovação da eterna seqüência das coisas e dos seres revela-nos a integração do Espiritismo na realidade cósmica, na correspondência perfeita da Realidade Total com a fragmentária realidade parcial das coisas finitas e dos seres perecíveis, que na verdade não perecem nunca, passando apenas pela lei universal da metamorfose, que a tudo impulsiona sem cessar nas linhas ascensionais da transcendência. Ela nos revela, também, a perenidade da Doutrina Espírita cujas marcas, segundo Kardec, são encontradas em todas as fases a-históricas e históricas da evolução terrena.

Esta concepção cósmica do Espiritismo, que ressalta dos textos de Kardec, como vimos, confirma a Doutrina das Idéias, de Platão, que nos apresenta o mundo fragmentário da matéria como reflexo estilhaçado da Realidade Superior, una e perfeita na Mente de Deus. Platão é o reflexo do pensamento de Sócrates, e Kardec considerou a ambos como precursores da Idéia Cristã. Na atualidade temos a mesma confirmação no rápido e espantoso desenvolvimento da Ciência terrena, que comprovou em nosso tempo a realidade do Espiritismo com a descoberta dos fenômenos paranormais, da plenitude do Universo (onde o nada não existe e o nada não é nada, segundo a expressão de Kardec), a existência das múltiplas dimensões da Realidade, na natureza subjetiva e portanto espiritual do homem na existência, a descoberta tecnológica do perispírito (corpo bioplásmico), a interpenetração dos mundos num mesmo espaço, o poder assombroso do pensamento, a possibilidade de invasão do Cosmos por naves e astronautas e assim por diante.

A luta contra a realidade, na defesa de ilusões teológicas e ideológicas, não cessou e até mesmo se acirrou. Recursos escusos do meio científico, do campo religioso e de certos Estados, cujas estruturas política e social repousam em pressupostos do século passado, são mobilizados contra essas conquistas, num desesperado anseio de diminuir-lhes o alcance e a significação. Na URSS e sua órbita a questão é de sufocar a qualquer custo todas as possibilidades científicas que se oponham ao materialismo de Estado. Nos Estados Unidos e outras potências ocidentais são os interesses políticos e eleitorais que se mobilizam na defesa dos interesses religiosos de igrejas e seitas retrógradas, apegadas a princípios arcaicos, envelhecidos de quatro a seis mil anos, para asfixiar ou minimizar as novas descobertas. Chega-se ao ponto, em instituições científicas ou paracientíficas, de tentar encobrir a realidade do plasma físico, de que se compõe o corpo bioplásmico, com o frágil disfarce do efeito corona. Os valores falhos dos dogmas religiosos e os interesses materiais imediatos dos clérigos e seus rebanhos fanáticos são superpostos à verdade crua e ardente das pesquisas científicas, para salvação das estruturas simoníacas das instituições religiosas, em que dormem à tripafôrra os devoradores de dízimos estabelecidos pelos rabinos judeus no Templo de Jerusalém, numa civilização agrária e pastoril. A estrutura do Estado é também ameaçada pelo fantasma de matéria radiante do corpo bioplásmico, que afeta poderosos interesses criados, tradições invioláveis, a glória de messias e profetas que descobriram tábuas de ouro nas montanhas provando que o Cristo pregou em terras da América, semeando verdades mirabolantes para os apaches de cara pálida e os fogosos peles-vermelhas de penachos coloridos.

Este quadro grotesco da realidade mundial em nosso tempo não precisa de pinceladas à Van Gogh para torná-lo mais forte e impressionante. Basta a sua realidade nua para mostrar a rede de mentiras em que caímos no passado, com as falsas culturas religiosas que, nascida das entranhas do paganismo ingênuo, da idolatria supersticiosa e do fabulário mitológico, revigorou-se nas estruturas sócio-econômicas do profissionalismo religioso.

As mesmas forças que se opuseram, de maneira agressiva e violenta, ao desenvolvimento das pesquisas científicas no Renascimento, continuam a agir, agora de maneira mais sutil e por isso mais profunda, mais penetrante e ameaçadora, contra o avanço e desenvolvimento da Ciência em nosso tempo. Claro que essa batalha inglória será vencida pela simples evidência da realidade, que nunca pediu nem pede licença aos homens para aparecer e impor-se. Mas essas forças retrógradas conseguem retardar a libertação do homem, num mundo em que a maioria absoluta da população não tem possibilidade de penetrar nos segredos da Ciência, nem tempo disponível para tentar essa façanha, permanecendo à margem da cultura do século e por isso mesmo obrigada a contentar-se com as crenças e superstições de um passado remoto.

A constituição semimaterial do perispírito, segundo Kardec, foi confirmada pela descoberta russa de que o corpo bioplásmico é formado de plasma físico. Para os russos, isso seria uma prova favorável à ideologia do Estado, mas a prova seguinte, de que esse corpo sobrevive a morte do corpo, escapando às possibilidades tecnológicas de sua captação visual ou fotográfica, incidiu na condenação materialista, por atentar contra o dogma do homem-pó. É essa a mais espantosa contradição do nosso século. A própria potência que enviou à órbita da Terra o primeiro Sputnik e tanto exalta o poder do homem, negando a existência de Deus, nega ao homem e a sua personalidade, a sua inteligência criadora, o direito que a Ciência concede a todas as coisas e seres: o da continuidade de após o acidente natural da morte. Tudo morre e renasce, menos o homem, a mais complexa e perfeita organização psicobiológica, com o mais poderoso cérebro e a mais penetrante das mentes.

A ojeriza[1] materialista é contra a teoria da sobrevivência individual. Tudo morre e renasce, segundo eles, revertendo-se ao pó para novas elaborações ocasionais. Os valores espirituais ficam na dependência exclusiva dos caprichos de algum alquimista medieval que nunca morreu. Não obstante, sustentam a teoria da evolução contínua, incessante e criadora, que o homem pode controlar. Há tantas contradições nas doutrinas religiosas do mundo, quanto nas doutrinas materialistas. Por isso, onde uma delas domina, os cientistas e pensadores sinceros e objetivos, que buscam a realidade, experimentam em nosso século as mesmas discriminações, condenações e expurgos. A realidade da sobrevivência individual do homem, provada na Universidade de Kirov, deslumbrou os seus descobridores e revelou as possibilidades inesperadas que pode abrir para a evolução terrena, mas os comissários do povo, agindo contra a vontade generalizada de um povo de intensa e profunda tradição espiritual, rejeitaram a descoberta em nome do povo. Mas a verdade é que a explosão mediúnica no mundo não pede licença a comissários, nem a padres, pastores ou cientistas para continuar existindo.

A luta do homem para vencer a sua esquizofrenia, restabelecendo a unidade do espírito ante a realidade material do mundo, vem das selvas aos nossos dias. A razão humana, servida pela experiência, venceu os conflitos do caos aparente da Natureza e estabeleceu as conexões necessárias entre não física e a realidade física para dominar o caos. Todas as filosofias e todas as ciências se desenvolvem nesse sentido, mas o chamado Materialismo Científico ergueu a sua barreira, juntamente com a barreira teológica – ambas formadas de dogmáticas exclusivistas – para impedir a ferro e fogo que o. homem alcance o real. Hoje, para que a verdade se estabeleça na cultura humana, é necessário que o Espiritualismo formalista e o Materialismo Científico se neguem a si mesmos, revertendo-se na síntese hegeliana de uma cultura objetiva e aberta.

Ernst Cassirer, em seu ensaio sobre A Tragédia, da Cultura, cujo desenvolvimento superou a capacidade humana de dominá-la, esqueceu-se deste problema fundamental que Kardec já havia colocado há mais de um século. A grande tragédia cultural do nosso tempo não é o acúmulo cada vez maior de conhecimentos e a atomização das especialidades, mas a impossibilidade material de vencer as barreiras dogmáticas, cada vez mais reforçadas pelos interesses criados nos dois campos dogmáticos.

Os três corpos do homem têm funções gerais e específicas, desdobrando-se em planos sucessivos de manifestação, a partir do contexto humano. Vejamo-los nesse encadeamento em que eles parecem um foguete espacial, indo da Terra ao Infinito, no abandono sucessivo dos estágios inferiores:

a) o corpo material é o que define, na concepção terrena, o que geralmente se considera como a condição humana. Provindo da evolução animal, Paulo teve razão de chamá-lo corpo animal. Todo o seu sistema psicobiológico é a resultante do processo evolutivo terreno. Todos os seus instrumentos de captação da realidade funcionam em ritmo de estímulo e resposta. Sua razão se constitui de categorias formadas na experiência. Não obstante, o seu espírito supera esse condicionamento através de percepções extra-sensoriais, de intuições imediatas e globais de um conjunto gestáltico que vai arrancando-o do imediatismo vivencial para lançá-lo no plano existencial consciente. A organização animal do corpo é mantida e dominada pelo espírito, onde razão e consciência se desenvolvem paralelamente. A evolução de um homem se verifica pelo desenvolvimento de razão e consciência num plano superior de critério cada vez mais espiritualizado. O homem se liberta de suas raízes animais e prepara-se para a transcendência. Frederic Myers, psicólogo inglês dos fins do século passado, considera que o inconsciente humano é uma segunda consciência, a que chama de subliminar. Enquanto a consciência subliminar detém as faculdades necessárias à vida terrena, a consciência supraliminar auxilia aquela, através de emersões de idéias, sensações profundas e intuições, a desenvolver-se no plano extra-sensorial. É da consciência supraliminar que provêm as captações extra-sensoriais. É nela que encontramos a fonte da genialidade e dos fenômenos paranormais. Essa consciência pertence ao perispírito.

b) O perispírito, corpo espiritual ou corpo bioplásmico, possui, em sua estrutura extremamente dinâmica, os centros de força que organiza o corpo material. É o modelo energético previsto com grande antecedência por Claude Bernard. Os pesquisadores russos compararam esse corpo, visto através das câmaras Kirlian de fotografia paranormal, em conjugação com telescópio eletrônico de alta potência, a um pedaço de céu intensamente estrelado. Esse é o corpo da ressurreição espiritual do homem, dotado de todos os recursos necessários para a vida após a morte. Esse corpo de plasma físico e plasma espiritual vai perdendo seus elementos materiais na vida espiritual, na proporção exata da evolução do espírito. Nas pesquisas russas verificou-se que, na produção de fenômenos mediúnicos de movimentação de objetos sem contacto, levitação e transporte, o elemento empregado é o plasma, o que confirma as pesquisas de Richet e de Notzing sobre o ectoplasma. Essa é uma das razões por que esses fenômenos só são produzidos por Espíritos inferiores, que Kardec comparou a carregadores do espaço a serviço de entidades superiores. Os exames de porções de ectoplasma em laboratório revelam apenas a constituição física do mesmo. O elemento mais importante e vital do ectoplasma é a energia espiritual, que não permanece nas porções colhidas pelos pesquisadores. Nesse corpo, segundo os pesquisadores russos, as condições de doença e saúde e a previsão de doenças nas plantas, nos animais e no homem são feitas com grande precisão através das variações de cores do plasma e um sistema de sinais coloridos ainda em estudo.

c) O corpo espiritual superior destina-se à vida nos planos mais elevados do Mundo Espiritual. Não se pode considerá-lo como um instrumento de comunicação, pois constitui-se do próprio espírito em sua exterioridade natural. Kardec assinala que esses Espíritos Puros não têm mais nada com a matéria, nem a matéria os afeta. Mas como têm forma e são criaturas humanas elevadas ao máximo grau da perfeição espiritual que os homens podem atingir, seu corpo é de luz. Na verdade, não dispomos de palavras nem de idéias para imaginá-los ou descrevê-los. No seu plano superior não veríamos nem sentiríamos nada. No tocante a eles, a pesquisa de Kardec reduziu-se a diálogos com os seus instrutores. Por outro lado, socorreu-se da lógica, como sempre fez, para dar as informações que encontramos na Escala Espírita.

Kardec considera esses Espíritos Puros como os Ministros de Deus, através dos quais a administração de toda a Realidade Cósmica se processa em todos os sentidos. Quando nos conhecermos a nós mesmos, segundo a recomendação do Oráculo de Delfos a Sócrates, poderemos imaginar o que são essas criaturas e como vivem e agem no Inefável, segundo a concepção pitagórica. Antes disso, é inútil nos esforçarmos para defini-las. Só com o desenvolvimento de toda a nossa perfectibilidade possível, como queria Kant, conseguiremos obter os parâmetros capazes de nos dar uma pálida visão dessa vida superior. Kant referia-se à perfectibilidade possível na vida terrena. Acima desta existem os planos espirituais progressivos e, depois deles, o plano da Angelitude, que é precisamente o dos Espíritos Puros.

Não podemos nos atrever a solucionar esse problema, cujos dados nos escapam. Há questões que não podem ser tratadas em nosso estágio evolutivo. Mas já é importante possuirmos algumas informações provindas de entidades que passaram pelos testes rigorosos de Kardec. O Espírito Puro é para nós uma abstração, como abstração também é a Matemática, de que nos servimos para medir e pesar o mundo. O que precisamos evitar, no estudo dos corpos do homem, é o fascínio da imaginação, que costuma levar-nos além de toda a realidade possível.

Várias instituições espiritualistas do mundo criaram complicadas teorias sobre os corpos do homem, chegando a dar-lhes o número atordoante e cabalístico dos véus de Isis. No próprio movimento espírita, que devia aprofundar o conhecimento de sua própria doutrina, ainda tão mal conhecida e pior compreendida, pretensos mestres introduziram conceitos estranhos sobre esse problema. Kardec negou-se a estas fascinações do maravilhoso, lutou para afastar da mente humana os resíduos mágicos do passado, dando à Doutrina Espírita a clareza positiva da Ciência, sempre apoiado na razão e na pesquisa. Seu esquema tríplice dos corpos do homem é uma síntese luminosa de todos os esforços da Humanidade para compreender essa questão de importância fundamental. Não podemos nos levar pela vaidade ingênua e fátua de aparecer como sábios perante as multidões incultas, vangloriando-nos como pavões do colorido fictício de nossa plumagem. O Espiritismo busca a verdade pura, que é sempre simples, pois não necessita de visagens para impor-se às mentes perquiridoras e sensatas. Deixemos de caudas brilhantes fascinando os imaturos e tratemos de amadurecer no exame objetivo da realidade acessível ao nosso conhecimento imediato. Aprendamos a distinguir a pureza lógica do Espiritismo das fábulas religiosas e espiritualistas que se cevam, através dos milênios, no gosto do homem pelo maravilhoso. Não há maravilha maior do que a da Obra de Deus em sua realidade pura. Qual o fabulário mitológico que pode sobrepor-se ao mistério e à beleza de um só microscópico sistema solar atômico ou de uma folha verdolenga de relva brotando entre as pedras da calçada? O tempo das figurações simbólicas já passou, para a Humanidade Terrena, como a dos Contos da Carochinha já passou para as crianças de hoje. Elas mesmas, as crianças, exigem a verdade das coisas naturais em substituição às fantasias imaginosas do passado. Os espíritas não têm o direito de menosprezar as lições do Espírito da Verdade, ministradas por Kardec, em favor de mentiras ridículas que vão buscar poeira de civilizações mortas, cujo próprio desaparecimento atesta que se esgotaram no tempo. Tenhamos a humildade de nos contentar com os nossos três corpos, ao invés de buscarmos em ruínas milenares os corpos das múmias faraônicas soterradas na areia. Estudemos o nosso passado de ilusões e atrocidades para nos corrigirmos no presente, mas não tentemos colocá-lo acima da realidade límpida e positiva que o Espiritismo nos proporciona.


15 
A Trama de Ações e Reações
na Vida Humana

Problema intrigante para muita gente é das ações e reações de indivíduos e de grupos humanos em face da teoria do livre-arbítrio. Há quem não consegue entender essa duplicidade contraditória, perguntando como podemos ser responsáveis por atos que já estavam determinados em nosso destino. Fala-se no Karma, palavra indiana de origem sânscrita, como de um fatalismo absoluto a que ninguém escapa. A palavra Karma não pertence à terminologia espírita, mas infiltrou-se no meio espírita, através das correntes espiritualistas de origem indiana por dois motivos: o seu aspecto misterioso e a vantagem de reduzir ao mínimo a expressão lei de ação e reação. Não há nada de prejudicial nessa adaptação prática de uma palavra estranha, cujo conceito se adapta perfeitamente à expressão espírita. O prejuízo aparece quando certas pessoas pretendem que a palavra mantenha entre nós o seu significado conceitual de origem, modificando o sentido do conceito doutrinário. Segundo o Espiritismo, ação e reação dependem da consciência. A responsabilidade humana decorre das exigências conscienciais e está sempre na razão direta do grau de desenvolvimento consciencial das criaturas. Por outro lado, esse desenvolvimento depende das condições de liberdade e do grau de opção de que as criaturas dispõem. Justamente por isso o problema, que parece simples à primeira vista, torna-se bastante complexo quando o examinamos.

Nas fases inferiores da evolução, em que o princípio inteligente passa por ações e reações destinadas a desenvolver as suas potencialidades, a ação da lei é natural e automática. Não existe ainda a consciência individual coletiva responsável; nas fases seguintes, até ao plano dos animais superiores e dos antropóides, a consciência está ainda em formação; mas ao iniciar-se a humanização, quando o espírito recebe, segundo a bela expressão de A Gênese, de Kardec – quando Deus põe o seu selo na fronte do indivíduo, com a auréola da Razão – este e o grupo começam a assumir a responsabilidade dos seus atos e pensamentos. Este princípio não se refere apenas a essas fases iniciais, mas estende-se a todo o desenvolvimento humano, como vemos em diversas passagens evangélicas, como na resposta de Jesus aos fariseus: “Até agora dissestes não saber e não tínheis pecado, mas agora dizeis saber e subsiste o vosso pecado.” E como no caso da mulher adúltera, em que ninguém atirou a primeira pedra para a sua lapidação. Dessa maneira, parece-nos fácil a compreensão do problema. Quem faz, sabendo que faz, é responsável pelo que fez. Quem faz por instinto, automatismo, compulsão inconsciente ou condicionamento social não tem responsabilidade pelo que fez ou pelo menos tem a sua responsabilidade atenuada. Por outro lado, as compulsões determinadas pelo passado nem sempre são fatais, podendo ser atenuadas ou mesmo eliminadas pelo comportamento favorável dos responsáveis na vida atual. Dessa maneira, não há contradição, mas seqüência e equilíbrio entre o fatalismo das conseqüências anteriores e a liberdade atual do indivíduo ou grupo. E a própria responsabilidade coletiva não é massiva, distribuindo-se o efeito na medida exata das responsabilidades individuais de cada um de seus componentes. Há ainda o problema do fatalismo voluntário, decorrente do pedido de espíritos culpados de passarem pelo que fizeram aos outros. Nesses casos, a consciência pesada do indivíduo ou do grupo só pode aliviar-se com a auto-imolação dos culpados. Com isso desaparece a falsa teoria da Ira de Deus e da vingança divina provinda de épocas de obscurantismo e de concepção extremamente antropomórfica de Deus. A Justiça Divina, segundo a concepção espírita, não é ditada por um tribunal remoto e de tipo humano, mas exclusivamente pela consciência do réu. É ele mesmo quem se condena, no tribunal especial instalado em sua consciência. Por isso, enquanto essa consciência não está suficientemente desenvolvida, a punição tarda, mas quando ela atinge o grau necessário de responsabilidade a punição se manifesta de maneira rigorosa.

Como pode uma criança inocente, pergunta-se às vezes, ser condenada por Deus a morrer esmagada num acidente? Primeiro temos de lembrar que a criança não é inocente, mas está vestida com a roupagem da inocência, como observou Kardec. Depois, é preciso lembrar que o homem responsável pelo ato de brutalidade em que esmagou uma criança no passado, sob o amparo de legislação humana, sente a necessidade de sofrer uma violência correspondente, para livrar a sua consciência do peso que a esmaga e que o impede de continuar avançando em sua evolução. Os familiares da criança são participes do crime do passado e pagam a sua cota de responsabilidade com o mesmo fim de se libertarem. Aquilo, pois, que parece uma atrocidade divina, não passa de uma imolação em grupo, determinada pelas próprias consciências culpadas. Mas há também imolações voluntárias e sem culpa que as justifique, pedidas por espíritos que desejam socorrer criaturas amadas que se afundam nas ilusões da vida material, necessitando de um choque profundo que as arranque do caminho do erro, onde acumulam conseqüências dolorosas para si mesma. São atos sublimes de abnegação e de amor, que elevam o espírito abnegado e abrem novas perspectivas para os que sofreram o que, em nossa ignorância, chamamos desgraça determinada pela impiedade divina. Os responsáveis pelo acidente responderão por sua culpa no tribunal de suas próprias consciências.

Os Espíritos falam em contabilidade divina, registros e fichários especiais do mundo espiritual, para nos darem uma idéia humana da Justiça Suprema, mas essa Justiça não precisa dos nossos recursos inseguros e falhos. A mecânica de ações e reações é processada subjetivamente em cada um de nós e o fichário de cada qual está visível nos registros da memória de cada um, inscritas de maneira viva e ardente nos arquivos da consciência subliminar a que se referia Frederic Myers. Não há organização mais perfeita e infalível do que essa. A misericórdia divina manifesta-se nas intervenções consoladoras e nos socorros dispensados aos sofredores para que possam suportar os seus pesados resgates. Mas por que toda essa complicada engrenagem, se Deus é onipotente e onisciente? Não poderia Ele, no seu absolutismo total, livrar as criaturas desse trânsito penoso pelos caminhos da evolução, fazendo-as logo perfeitas em ato? Essa objeção comum, provinda dos desesperados ou dos materialistas, provêm da idéia falsa do mundo como uma realidade mágica, produzida por Deus no simples ato oral do fiat. A complexíssima estrutura da realidade, em suas múltiplas dimensões cósmicas, devia ser suficiente para mostrar-nos quanto ainda estamos longe de compreender Deus. Certamente não seriamos nós, criaturas do seu amor, em fase embrionária de desenvolvimento espiritual que iríamos perceber agora o que Ele sabe desde todos os tempos. Temos de revisar os nossos ingênuos conceitos de Deus, gerados pela nossa pretensão e as nossas superstições. Se Deus pudesse fazer tudo mais fácil, com a destreza inconseqüente de um malabarista que tira coelhos da cartola, é evidente que já seriamos há muito tempo anjos, arcanjos e serafins, revoando felizes e inúteis nas regiões celestiais. Indagar como e por que motivo Deus não age como um malabarista é simplesmente revelar a extensão da nossa ignorância. Como podemos conhecer os problemas divinos, se ainda não conhecemos sequer os humanos?

Mas podemos imaginar o seguinte, a partir de certas concepções contemporâneas, como a teoria do físico inglês Dirac sabre o oceano de elétrons livres em que o Cosmos estaria mergulhado, a da luz infravermelho de que o Universo teria surgido, segundo físicos russos, a teoria do Deus-Éter, de Ernesto Bozzano, e, por fim, a que nos parece mais aceitável, a tese de Gustav Geley, ex-presidente do Instituto de Metapsíquica de Paris, sobre o dínamo-psiquismo-inconsciente que impulsiona todas as coisas do inconsciente ao consciente, sendo este o título do seu livro a respeito. Deus poderia ser interpretado, à luz dessa teoria, como a Unidade no Inefável da intuição pitagórica ou o Eterno Existente e Incriado da concepção budista. O dínamo-psiquismo de Geley explicaria, no caso, o estremecimento inexplicável da Unidade que desencadeou a Década, estruturando o Universo. O dínamo-psiquismo-inconsciente de uma realidade estática teria atingido o consciente, num tempo remoto em que a Consciência Única e Suprema surgiria na solidão do Caos, gerando por sua determinação consciente e sua vontade a estrutura do Cosmos, com todas as leis que o regem. Consciência Única e Suprema, seria a Inteligência Absoluta da concepção espírita, criadora de todas as coisas e todos os seres. Essa Idéia de Deus supriria as lacunas lógicas do processo da Criação, conservando-lhe todos os atributos. Ao mesmo tempo, a mitologia antropomórfica e absurda do Deus das igrejas desapareceria, sendo substituída por uma hipótese científica de força e matéria unificadas na mão de uma Consciência Cósmica não pessoal. Claro que esta não seria a solução do problema que ninguém pode resolver por conta própria, mas uma tentativa de equação nas bases científicas do nosso conhecimento atual. Resta sempre uma dúvida insolúvel. Se Deus realizou-se na evolução comum de todas as coisas e seres, quem estabeleceu essa lei evolutiva e quem criou, antes de Deus o Inefável e o dínamo-psiquismo-inconsciente?

A questão é solipsista, tautológica, girando sempre em torno de um ponto único de que não podemos sair. O que prova a nossa total impossibilidade, em nosso estágio evolutivo atual, de conseguir resolvê-la. E o Espiritismo a coloca nos devidos termos, ao dizer que só chegaremos à sua solução quando avançarmos o suficiente na escala evolutiva. Temos de subir a planos ainda muito distantes de nós para chegarmos a vislumbrar a verdade a respeito. De qualquer maneira, entretanto, temos de colocá-la, para mostrar que o Espiritismo não endossa as absurdas concepções teológicas, nem os mistérios absolutos que regam a percepção dos enigmas metafísicos. Deus espera a nossa maturação espiritual para nos revelar o que agora não podemos entender. Somos filhos e herdeiros de Deus e toda a Verdade nos espera nas supremas dimensões da Realidade Universal, de que conhecemos apenas uma reduzida parcela. Por outro lado, não podemos admitir que, a pretexto de nossa impotência atual, os supostos agraciados com uma sabedoria infusa nos imponham como verdades reveladas suas conclusões dogmáticas sobre problemas inconclusos.

A posição espírita é a única aceitável atualmente: Deus existe como a Causa Inteligente do efeito inteligente que é o Todo Universal, e por este efeito podemos avaliar a grandeza da Causa. Esta é a conclusão a que podemos chegar e a que Kardec chegou muito antes de podermos dispor dos recursos atuais das Ciências.

A existência de Deus é aceita como a maior e mais poderosa realidade com que nos defrontamos e que não podemos negar sem cairmos na situação ilógica de quem pretende negar a evidência. A colocação do problema por Kardec, baseado nos diálogos com os Espíritos Superiores, prova ao mesmo tempo a grandeza conceptual do Espiritismo, a firme posição científica e filosófica do Codificador, a elevação intelecto-moral dos Espíritos que o assistiram e a capacidade espírita de enfrentar racionalmente todos os problemas do homem e do mundo. Graças a isso, o Espiritismo se apresenta em nosso tempo como aquela síntese superior do Conhecimento Humano a que Léon Denis se referiu em O Gênio Céltico e o Mundo Invisível.

A trama das ações e reações na vida humana, que determina a extrema variedade dos destinos individuais e coletivos, não pode mais, diante dos princípios comprovados da doutrina, ser considerada como ocorrência de fatores ocasionais, aleatórios, que pudessem escapar das leis naturais que regem a totalidade cósmica em todas as suas minúcias, desde as simples amebas até às galáxias no Infinito. A ordem rigorosa dos eventos em todos os planos da realidade, as supostas lacunas que a pesquisa científica preenche, mais hoje, mais amanhã, descobrindo que pertencem a conexões ainda não conhecidas, as particularidades que confirmam a existência de uma estrutura sutil regendo ações e movimentos por toda parte, evidenciam a presença de uma inteligência vigilante e atenta. A Cibernética e a Biônica demonstraram quanto temos de aprender com a Natureza no tocante aos organismos animais. Seria estranho que nessa maravilhosa estrutura macro e micro refinada, as ações e reações da vida humana fossem esquecidas à margem. Por outro lado, o livre-arbítrio do homem não é apenas resguardado, mas também protegido e incentivado pelas responsabilidades que sobre ele se acumula sem cessar. Tudo é importante e significativo no caleidoscópio universal. Cada ação, sentimento, pensamento e anseio das criaturas humanas pesa na balança de todos os destinos. E isso se comprova diariamente na vida particular e na vida coletiva dos homens.

Não vivemos por viver, mas para existir na transcendência.


16 
A Morte de Deus e o Século XX

Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco de Nietzsche, teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos, fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém foi convidado para o enterro, nem se efetuou nenhum registro funerário da ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os espíritos crentes de Deus. Para tranqüilizar os assustados, os teólogos agoureiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto”, e colocaram Jesus de Nazaré, o Cristo, provisoriamente no Trono do Império Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos ante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à espera de Novo Deus que deve surgir.”

Não se trata de brincadeira nem de galhofa, mas de coisa sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!” Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava agonizando, e continua em lenta agonia, sustentada por milhões de seus beneficiários do profissionalismo religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia. Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma, mas continua resistindo às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha idéia. Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu Reino. Jesus-Cristo, herdeiro direto e filho consangüíneo de Deus, não tomou conhecimento do assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem. São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios, como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo de velórios da civilização utópica de Herman Hesse, onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando.

Não nos interessam essas lamentações de carpideiras em torno de um hipotético cenotáfio, túmulo vazio construído no após guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas catedrais e anuncia por toda parte a nova Alvorada da Verdade. William Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto: que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco de Nietzsche, de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas soturnas do coveiro que abria a cova, e esse louco era uma ficção. Se os teólogos continuam a ensinar suas teologias fanadas, os místicos a destilar seus óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro seus sacramentos, o populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias de igrejas, judeus e cristãos a manter seus cultos por toda parte, nem mesmo o Deus da Bíblia deixou de existir. Se não ocorreu a morte física de Deus e nem ocorreu a morte metafísica, se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro que o bando necrófilo está delirando.

Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatônica deste século estranho, em que vacilamos entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessões individuais e coletivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo instante os vendavais arrancam os homens do chão e os atiram no ar em cambalhotas alucinantes. Os espíritas, que conhecem o problema da obsessão e sabem que não são as encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam, mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de malícia das trevas, ludibriando criaturas ingênuas com a falsa importância de suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho de seus títulos universitários. Outros se aboletam em sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices empolgam pessoas desavisadas por toda parte, formando os quistos de mistificação que minam o movimento doutrinário.

Se mesmo fora do campo doutrinário, e entre pessoas de inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode-se avaliar ao que estamos expostos no Espiritismo, onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se sutil em nosso íntimo, excitando os vírus da vaidade e infestando-nos por dentro. Desde então, pensamos com as idéias dele e aceitamos a sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. Nossa vigilância tem de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da morte de Deus e caíram no ridículo, porque os espíritas haveriam de rejeitar a sugestão de deturpar os textos doutrinários para atualizá-los, prestando enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do dever para lançar-nos na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e não oramos. O orgulho e a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar essa hora.

Se os teólogos realmente compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de fato a sua doutrina, as entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um gesto de cortesia que nos comove, um ingênuo cartão de saudações, um abraço de fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa música sutil cresce em nós a madrágora do orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos em nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos em nossa insignificância com desespero.

Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século para revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a Religião e toda a Cultura Humana estão comprovando o acerto absoluto de Kardec e seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória, de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos, certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina, mas a hora nossa, pessoal, que nos fascina.

Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente, decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus, que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent nos dá uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demônio.” A glória de Hamilton se define neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais nada. E Bent o considera como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, que será essa obra de demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática de Brutus, assassinando Deus pelas costas?

Os homens enrolam-se em suas próprias palavras, como as abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras. Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia, quando Sócrates pedia a definição dos conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que estão dizendo, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras ante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador de nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal, desde os judeus palradores que assustavam os romanos com suas infindáveis querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e espalhou-se pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e suas quintas-colunas genocidas. Depois das explosões atômicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada norte-americana no Vietnã, não era de admirar o assassinato misterioso de Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador.

No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a espécie, pelo mal verborrágico. Tem sido difícil convencer o povo ingênuo de que os grandes faladores não passam de mistificadores. Falam em atitudes teatrais, de olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral.

Este é um problema grave num meio interessado por uma doutrina lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores doutrinários conscientes de sua responsabilidade e não apenas interessados em fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloqüentes em nossas assembléias, mas estudiosos da doutrina que procurem transmitir os seus princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem no complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos palradores inveterados.


17 
Ação Espírita na
Transformação do Mundo

Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo:

a) Amor,

b) Trabalho,

c) Solidariedade.

1 – Amor

O amor abrange a compreensão e a tolerância, pois quem ama compreende o ser amado e sabe tolerá-lo em todas as circunstâncias. Abrange também a Verdade, pois quem ama sabe que o alvo supremo do Amor é a Verdade. Ninguém ama a mentira, pois mesmo os mentirosos apenas a suportam na falta da verdade. O amor egoísta do homem por si mesmo expande-se no desenvolvimento psicobiológico como, segundo já vimos, em amor altruísta, amor pelos outros, a partir do núcleo familial até à Sociedade, à Pátria e à Humanidade. Alguns espíritas dizem que os espíritas não têm pátria, pois sabem que todos podemos renascer em várias nações. Isso é uma incongruência, pois então não poderíamos também amar pai e mãe, que variam nas encarnações sucessivas. O Amor não tem limites, mas nós, os homens, somos criaturas limitadas e estamos condicionados, em cada existência, pelas limitações da condição humana. Amamos de maneira especial aqueles que estão ligados a nós nesta vida ou se ligaram a nós em vidas anteriores. Amamos a todos os seres e a todas as coisas na proporção do nosso alcance mental de compreensão da realidade. E amamos a nossa Terra, o pedaço do mundo em que nascemos e vivemos e a parte populacional a que pertencemos, no recorte da população mundial que corresponde população da nossa terra. E amamos os que estão além da Terra, nas zonas planetárias espirituais, como amamos, por intuição mental e afetiva, a todos os seres e coisas de todo o Universo. O ilimitado do Amor se impõe aos limites temporários da nossa condição imediata. E é esse o nosso primeiro degrau para a transcendência espiritual. Na proporção em que a nossa capacidade infinita de amar se concretiza na realidade afetiva (nascida dos sentimentos profundos e verdadeiros do amor) sentimo-nos elevados a planos superiores de afetividade intelecto-moral, respeitando progressivamente todas as expressões da vida e da beleza em todo o Universo. O Amor não é gosto, nem preferência, nem desejo – é afeição, ou seja, afetividade em ação, fluxo permanente de vibrações espirituais do ser que se expandem em todas as direções da realidade. Foi por isso que Francisco de Assis amou com a mesma ternura e o mesmo afeto, chamando-os de irmãos, aos minerais, aos vegetais, aos animais, aos homens e aos astros no Infinito. As ondas do Amor atingem a todas as distâncias, elevações e profundidades, não podendo ser medidas, como fazemos com as ondas hertzianas do rádio. Depois de ultrapassar os limites possíveis da Criação, o Amor atinge o seu alvo principal, que é Deus, e Nele se transfunde.

O Espiritismo aprofunda o conhecimento da Realidade Universal e não pretende modificar o Mundo em que vivemos através de mudanças superficiais de estruturas. Essa é a posição dos homens diante dos desequilíbrios e injustiças sociais. Mas o homem-espírita vê mais longe e mais fundo, buscando as causas dos efeitos visíveis. Se queremos apagar uma lâmpada elétrica não adianta assoprá-la, é necessário apertar a chave que detém o fluxo de eletricidade. Se queremos mudar a Sociedade, não adiante modificar a sua estrutura feita pelos homens, mas modificar os homens que modificam as estruturas sociais. O homem egoísta produz o mundo egoísta, o homem altruísta produzirá o mundo generoso, bom e belo que todos desejamos. Não podemos fazer um bom plantio com más sementes. Temos de melhorar as sementes.

As relações humanas se baseiam na afetividade humana. Não há afetos entre corações insensíveis. Por isso a dor campeia no mundo, pois só ela pode abalar os corações de pedra. Mas o Espiritismo nos mostra que o coração de pedra é duro por falta de compreensão da realidade, de tradições negativas que o homem desenvolveu em tempos selvagens e brutais. Essas relações se modificam quando oferecemos aos homens uma visão mais humana e mais lógica da Realidade Universal. Essa visão não tem sido apresentada pelos espíritas, que, na sua maioria, se deixam levar apenas pelo aspecto religioso da doutrina, assim mesmo deformado pela influência de formações religiosas anteriores. Precisamos restabelecer a visão espírita em sua inteireza, afastando os resíduos de um passado de ilusões e mentiras prejudiciais. Se compreenderem a necessidade urgente de se aprofundarem no conhecimento da doutrina, de maneira a formarem uma sólida e esclarecida convicção espírita, poderão realmente contribuir para a modificação do mundo em que vivemos. Gerações e gerações de espíritas passaram pela Terra, de Kardec até hoje, sem terem obtido sequer um laivo de educação espírita, de formação doutrinaria sistemática. Aprenderam apenas alguns hábitos espíritas, ouviram aulas inócuas de catecismo igrejeiro, tornaram-se, às vezes, ardorosos na adolescência e na juventude (porque o Espiritismo é oposição a tudo quanto de envelhecido e caduco existe no mundo), mas ao se defrontarem com a cultura universitária incluíram a doutrina no rol das coisas peremptas por não terem a menor visão da sua grandeza. Pais ignorantes e filhos ignorantes, na sucessão das encarnações inúteis, nada mais fizeram do que transformar a grande doutrina numa seita de papalvos. Duras são e têm de ser as palavras, porque ineptas e criminosas foram as ações condenadas. A preguiça mental de ler e pensar, a pretensão de saber tudo por intuição, de receber dos guias a verdade feita, o brilhareco inútil e vaidoso dos tribunos, as mistificações aceitas de mão beijada como bênçãos divinas e assim por diante, num rol infindável de tolices e burrices fizeram do movimento doutrinário um charco de crendices que impediu a volta prevista de Kardec para continuar seu trabalho. Em compensação, surgiram os reformadores e adulteradores, as mistificações deslumbrantes e vazias e até mesmo as séries ridículas de reencarnações do mestre por contraditores incultos de suas mais valiosas afirmações doutrinárias.

Este amargo panorama afastou do meio espírita muitas criaturas dotadas de excelentes condições para ajudarem o movimento a se organizar num plano superior de cultura. Isso é tanto mais grave quanto o nosso tempo que não justifica o que aconteceu com o Cristianismo deformado totalmente num tempo de ignorância e atraso cultural. Pelo contrário, o Espiritismo surgiu numa fase de acelerado desenvolvimento cultural e espiritual, em que os espíritas contaram e contam com os maiores recursos de conhecimento e progresso de que a humanidade terrena já dispôs. Todos os grandes esforços culturais em favor da doutrina foram negligenciados e continuam a sê-lo pela grande maioria dos espíritas de caramujo, que se encolhem em suas carapaças e em seus redutos fantásticos. Falta o amor pela doutrina, de que falava Urbano de Assis Xavier; falta o amor pelos companheiros que se dedicam à seara com abnegação de si mesmos e de suas próprias condições profissionais e intelectuais; falta o amor pelo povo faminto de esclarecimentos precisos e seguros; falta o amor pela Verdade, que continua sufocada pelas mentiras das trevas.

Os médiuns de grandes possibilidades se vêem cercados de multidões interesseiras, que os levam quase sempre ao fracasso ou ao esgotamento precoce. Só os interessados os procuram: os que pretendem aproveitar suas produções em proveito próprio; os que desejam apenas dizer-se íntimos do médium; os que procuram consolação passageira em sua presença; os que buscam sugar-lhes os benefícios fluídicos e assim por diante. Os próprios médiuns acabam muitas vezes entregando-se ao desânimo e desviando-se para outros campos de atividade onde, pelo menos, poderão gozar de convivências menos penosas.

A exploração inconsciente e consciente dos médiuns pelos próprios adeptos da doutrina é um dos fatores mais negativos para o desenvolvimento do Espiritismo em nosso país e no mundo. A contribuição que eles poderiam dar para a execução das metas doutrinárias perde-se na miudalha das consultas pessoais e nas mensagens cotidianas de sentido religioso-confessional, mais tocadas de emoção embaladora do que de raciocínio e esclarecimento. É isso o que todos pedem, como crianças choramingas acostumadas a dormir ao embalo das cantigas de ninar. Até mesmo um médium como Arigó, dotado de temperamento agressivo como João Batista e assistido por uma entidade positiva como Fritz, acabou envolvido numa rede de interesses contraditórios que o envolveram através de manobras que o aturdiram, misturadas a calúnias e campanhas difamatórias que o levaram, na sua ignorância de roceiro inculto, a precipitar-se, sem querer, na sua destruição precoce. As grandes teses da Doutrina Espírita não foram suficientes para mobilizar os espíritas em favor do médium, resguardando-o e facilitando, pelo menos, a investigação dos cientistas norte-americanos, de diversas Universidades e da NASA, que tentaram desesperadamente colocar o problema em termos de equação científica. O que devia ter sido uma vitória da Verdade em plano universal reverteu-se em mesquinho episódio de disputas profissionais acirradas por clérigos e médicos de visão rasteira. E tudo isso por que estranho motivo? Porque os espíritas não foram capazes de sair de suas tocas, empunhando as armas poderosas da doutrina, para enfrentar o conluio miserável das ambições absorventes e vorazes.

Cada espírita, ao aceitar e compreender a grandeza da causa doutrinária e sua finalidade suprema – que é a transformação moral, social, cultural e espiritual do nosso mundo – assume um grave compromisso com a sua própria consciência. O aparecimento de um médium como Chico Xavier ou Arigó não tem mais o sentido restrito do aparecimento de uma pitonisa ou um oráculo no passado, mas o do aparecimento de um João Batista ou de um Cristo na fase crítica da queda do mundo clássico greco-romano, da trágica agonia da civilização mitológica. Mas após um século da semeadura evangélica, na hora certa e precisa da colheita, vemos de novo o povo eleito enrolado em intrigas na Porta do Monturo, enquanto os romanos crucificam entre ladrões os que se imolaram em reencarnações providenciais.

Essa mentalidade de corujas agoureiras, e troianos que não ouvem Cassandra, decorre do egoísmo (essa lepra do coração humano, segundo a expressão Kardeciana) do comodismo e da preguiça mental. A falta de estudo sério e sistemático da doutrina, que permite a infiltração de elementos estranhos no corpo doutrinário, causando-lhe deformações rebarbativas e fantasiadas de novidades, avilta a consciência espírita com a marca de Caim nos grupos de traidores. Esses traidores não traem apenas à doutrina, ao Cristo e a Kardec, mas também à Humanidade e ao Futuro. Onde fica o princípio do Amor em tudo isso? Quem revelou amor à Verdade? Quem provou amar e respeitar a doutrina? Quem mostrou amar ao seu semelhante e por isso querer realmente ajudá-lo, orientá-lo, esclarecê-lo? A esse fim superior sobrepõe-se o interesse falso e mesquinho de fazer bonito aos olhos que necessitam de luz, bancar saberetas para os que nada sabem, impor a criaturas ingênuas a sua maneira mentirosa de ver o ensino puro e claro de Kardec.

O amor não está nos que se acumpliciam, se comprometem reciprocamente na trapaça, enleando-se na solidariedade da profanação consciente ou inconsciente, O amor está nos que repelem a farsa e condenam o gesto egoísta dos escamoteadores da verdade em proveito próprio, levando multidões ingênuas e desprevenidas à deturpação da doutrina esclarecedora. O amor, nesse caso, pode parecer impiedade, mas é piedade, pode assemelhar-se à injúria e agressão, mas é socorro e salvação. As condenações violentas de Jesus a escribas e fariseus não foram ditadas pelo ódio, mas pela indignação justa, necessária, indispensável do Mestre, que sacudia aquelas almas impuras para livrá-las da impureza com que aviltavam o simples. Quem não tiver condições para compreender isso deve ter pelo menos a humildade de André Luiz, o médico lançado às zonas umbralinas, de contentar-se com trabalhos de limpeza e lavagem nos hospitais dos planos superiores para aprender a grandeza da humildade, a nobreza dos pequeninos, ao invés de rebelar-se contra as leis divinas da busca da Verdade. Nosso movimento espírita, como todo o negro panorama religioso da Terra, está cheio de ignorantes revestidos ou não de graus universitários, que se julgam mestres iluminados e são apenas os cegos do Evangelho que levam outros cegos ao barranco. Impedi-los de cometer esse crime de vaidade afrontosa é o dever dos que sabem realmente amar e servir. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!” advertiu Jesus, não para condená-los ao fogo do Inferno, mas para salvá-los do inferno de si mesmos.

2 – Trabalho

O trabalho é exigência do princípio de transcendência. O homem trabalha por necessidade, como querem os teóricos da Dialética Materialista, mas não apenas para suprir as suas necessidades físicas de subsistência e sobrevivência. Não só, como querem os teóricos da vontade de potência, para adquirir poder. E nem só, também, como pretendem Bentham e os teóricos da ambição, para acumular posses que representam poder. A busca das causas, nesse campo, morreria no plano das causas secundárias. Mas a Filosofia Existencial, em nosso tempo, descobrindo o conceito de existência e definindo o homem como o existente (aquele ser que existe, sabe que existe e luta para existir cada vez mais e melhor), mostrou e provou que a natureza humana é subjetiva e não objetiva (externa e material) e que a mola do mundo não está nos braços e nas mãos, mas na consciência. Confirmou-se assim, no plano geral da Cultura, o tantas vezes rejeitado e ridicularizado conceito espírita do trabalho. Em O Livro dos Espíritos temos a afirmação de que tudo trabalha na Natureza. Essa tese espírita antecipou a tese de John Dewey sobre a natureza universal da experiência. Em todo o Universo há forças em ação, inteligentemente dirigidas segundo planos determinados. Nada se fez ao acaso. Em termos atuais de eletrônica podemos dizer que o universo é uma programação gigantesca de computadores em incessante atividade rigorosamente controlada. De um grão de areia a uma constelação estelar, de um fio de cabelo e de um vírus isolado até às maiores aglomerações humanas dos grandes parques industriais do mundo, tudo trabalha. O próprio repouso é uma forma de diversificação do trabalho para recuperações e reajustes nos organismos materiais e nas estruturas psicomentais do homem. As criaturas humanas que só trabalham para si mesmas ainda não superaram a condição animal. Vivem e trabalham, mas não existem. Porque existir é uma forma superior de viver, que inclui em seu conceito plena consciência das atividades desenvolvidas com finalidades transcendentes.

No próprio desenvolvimento da Civilização o trabalho individual se abre, progressivamente, nos processos de distribuição, para o plano superior do trabalho coletivo. Por isso, é no trabalho e através do trabalho que o homem se realiza como ser, desenvolvendo suas potencialidades. A extrema especialização da Era Tecnológica nasceu nas selvas, quando nos primeiros clãs o homem se incumbiu da guerra, da caça e da pesca, e a mulher da criação, alimentação e orientação dos filhos. A Revolução industrial na Inglaterra marcou um momento decisivo da evolução humana para a consciência da solidariedade. É no esforço comum e conjugado das relações de trabalho que se desenvolve o senso de comunidade, provando a necessidade do princípio espírita de solidariedade e tolerância para o maior rendimento, maior estímulo e maior aperfeiçoamento das técnicas de produção. À concorrência de mercado, que estimula a ganância e a voracidade dos indivíduos e dos grupos, das empresas e dos sistemas de produção, opõe-se a conjugação das consciências, na solidariedade do trabalho comum, com vistas ao bem-estar de todos. Os teóricos que condenam as comunidades de trabalho voltadas para o interesse da maioria reduzem a finalidade superior do trabalho a interesses mesquinhos de enriquecimento individual e de grupos. A própria realidade os contesta com o espetáculo gigantesco do trabalho da Natureza, voltado para a grandeza do todo. Remy Chauvin considera os insetos sociais como expressões de sistemas coletivos de trabalho e de vida em que o egoísmo individualista e grupal (sociocentrismo) não impediu o desenvolvimento normal da solidariedade. A Natureza inteira é um exemplo que o homem rejeita em nome do seu egoísmo, da sua vaidade e das suas ambições desmedidas. Esses três elementos funcionaram na espécie humana como pontos hipnóticos que impediram o livre fluxo das energias livres do trabalho, condensando-as em formas institucionais absorventes. As tentativas de romper essas formas por métodos violentos representam uma reação instintiva que leva fatalmente, como o demonstra o panorama histórico atual, a novas formas de condensação. Esse circulo vicioso só pode ser rompido por uma profunda e geral compreensão do verdadeiro sentido do trabalho, que não leva a lutas e dissensões, mas à conjugação e harmonização de todas as fontes e todos os recursos do trabalho, nos mais diferenciados setores de atividade. A proposição espírita nesse sentido, como foi em seu tempo a proposição cristã original, encarna os mais altos ideais da espécie, voltados para o trabalho comunitário em ação e fins.

Hegel observou, em seus estudos de Estética, que a dialética do trabalho se revela nos reinos da Natureza. O mineral é a matéria-prima das elaborações futuras, apresentando-se como concentração de energias que formam as reservas básicas; o vegetal é a doação em que as forças do mineral se abrem para a floração e os frutos da vida; o animal é a vida em expansão dinâmica, síntese das elaborações dos dois reinos anteriores, endereçando esses resultados ao futuro, à síntese superior do Homem, no qual as contradições se resolvem na harmonia psicofísica e espiritual da criatura humana, dotada de consciência. Cabe agora a essa consciência elaborar a grandeza da Terra dos Homens (segundo a expressão de Saint-Exupéry). Por sinal que Exupéry, aviador, poeta e profeta, representa o arquétipo atual da evolução humana, na busca do Infinito. Por isso, Simone de Beauvoir considerou a Humanidade, não como a espécie a que nos referimos por alegoria com os planos inferiores, mas como um devir, um processo de mutações constantes na direção do futuro. Hoje somos ainda projeções dos primatas obtusos e violentos, antropófagos (segundo Tagore) devoradores de si mesmos e dos semelhantes, escarnecedores e aviltadores da condição humana. Mas amanhã seremos homens, criaturas humanas que encarnarão as forças naturais sob o domínio da Razão e da Consciência. Teremos então a República dos Espíritos, formada pela solidariedade de consciências de que trata René Hubert em sua Pedagogia Generale.

Como vemos através desses dados, a Doutrina Espírita não nos oferece uma visão utópica do amanhã, mas uma precognição do homem em sua condição espiritual, sem as deformações teológicas e religiosas da visão comum, calcada em superstições e idealizações rebarbativas. Tendo penetrado objetivamente no mundo das causas, um século antes que as Ciências Materiais o fizessem, a Ciência Espírita, experimental e indutiva – e que tem agora todos os seus princípios fundamentais endossados por aquelas, em pesquisas de laboratório e tecnológicas não formulou uma estrutura dogmática de pressupostos para figurar o homem de após morte e o homem do futuro. A imagem que nos deu do homem novo há um século está hoje plenamente confirmada pelos fatos. A controvertida questão da sobrevivência espiritual foi resolvida tecnologicamente de maneira positiva, comprovando a tese espírita. Falta pouco para romper-se, nas mãos já trêmulas dos teólogos, a Túnica de Nessus da dogmática religiosa, que gerou por toda parte angústias e desesperos. Estamos agora em condições de pensar tranqüilamente num futuro melhor para a Humanidade em fases melhores da sua evolução. Podemos agora nos integrar conscientemente na gigantesca oficina de trabalhos da Terra, preparando o caminho das gerações vindouras. As revelações não nos chegam mais de mão beijada, pois, como ensina Kardec, brotam dos esforços conjugados do homem esclarecido com os espíritos conscientes. Os dois mundos em que nos movemos, o espiritual e o material, abriram as suas comportas para que as suas águas se encontrem no esplendor de uma nova aurora. E o Sol que acende essa aurora não é mais uma chama solitária na escuridão total dos espaços vazios, mas apenas uma tocha olímpica entre milhões de tochas que balizam as conquistas futuras do homem na escalada sem-fim. Prometeu não será mais sacrificado por querer roubar o fogo celeste de Zeus, pois esse fogo é o mesmo que resplandece no corpo espiritual da ressurreição, que brilha na alma humana e define a sua natureza divina. Basta-nos continuar em nossos trabalhos para termos a nossa parte assegurada na Herança de Deus, pois como ensinou o Apóstolo Paulo, somos herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo. O conhecimento é a nossa fé, que não se funda em palavras, sacramentos e ídolos mortos, mas na certeza das verificações positivas e nas conquistas do trabalho humano, gerador constante de novas formas de energia para a escalada humana da transcendência.

3 – Solidariedade

A solidariedade espírita se manifesta particularmente no campo da assistência à pobreza, aos doentes e desvalidos. O grande impulso nesse sentido foi dado, desde o início do movimento doutrinário na França, pelo livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, que trabalhou em silêncio na elaboração dessa obra, sem nada dizer a ninguém. Selecionou numerosas mensagens psicografadas, procedentes de diversos países em que o Espiritismo já florescia. Sua intenção era oferecer aos espíritas um roteiro para a prática religiosa, baseado no que ele chamava de essência do ensino moral do Cristo. Conhecendo profundamente a História do Cristianismo e as dificuldades com que os originais do Evangelho haviam sido escritos, em épocas e locais diferentes, bem como o problema dos evangelhos apócrifos e das interferências mitológicas nos textos canônicos e as interpolações ocorridas nestes, afastou todos esses elementos espúrios para oferecer aos espíritas uma obra pura, despojada de todos os acessórios comprometedores. Seu trabalho solitário e abnegado deu-nos uma obra-prima, que conta com milhões de exemplares incessantemente reeditados no mundo. Essa obra foi ameaçada com a tentativa de adulteração. Foi o maior atentado que a obra de Kardec já sofreu no mundo, pior que a queima de seus livros em Barcelona pela Inquisição Espanhola. Muito pior, porque foi um atentado provindo dos próprios espíritas, através de uma instituição doutrinária que tem, por obrigação estatutária, defender, preservar e divulgar a Doutrina Espírita codificada por Kardec. A conseqüência mais grave desse fato lamentável foi a quebra da solidariedade espírita, a desconfiança e a mágoa provocadas entre velhos companheiros. O ataque das Trevas à vaidade e à ignorância de alguns espíritas invigilantes produziu os efeitos necessários. Sirva o exemplo doloroso para todos os que assumem encargos doutrinários, julgando receber prebendas e consagração. A vaidade excitada leva monges de pedra a se julgarem poderosos na aridez e na solidão dos desertos.

A solidariedade espírita não é apenas interna, entre os adeptos e companheiros. Projeta-se pelo menos em três dimensões:

a) no plano social geral da comunidade espírita, além dos grupinhos domésticos e das instituições fechadas;

b) envolve todas as criaturas vivas, protegendo-as, amparando-as, estimulando-as em suas lutas pela transcendência, procurando ajudá-las sem nada pedir em troca, nem mesmo a simpatia doutrinária, pois quem ajuda não tem o direito de impor coisa alguma;

c) eleva-se aos planos superiores para ligar-se a Kardec e sua obra, a todos os espíritos esclarecidos que lutam pela propagação do Espiritismo no mundo e a Deus e a Jesus na Solidariedade cósmica dos mundos solidários.

Nessas três dimensões a Solidariedade Espírita realiza, como que apoiada em três poderosas alavancas, o esforço supremo de elevação do mundo, estimulando a transcendência humana. As mentes que ainda não atingiram a compreensão desse processo podem fechar-se em grupos e instituições de tipo igrejeiro, isolando-se em seus ambientes de furna, onde os espíritos mistificadores e embusteiros se acoitam facilmente. Mas na proporção em que os adeptos assim isolados, ou pelo menos alguns deles, procurarem realmente compreender a doutrina, a situação se modificará, despertando os indolentes para atividades maiores.

Todo trabalho espírita é exigente e penoso, porque faz parte de uma grande batalha – a da Redenção do Mundo, iniciada pelo jovem carpinteiro Jesus, filho de Maria e José. Essa batalha não é a de Deus contra o Diabo, o estranho anjo de luz que se revoltou para fundar o Inferno. Essa ingênua concepção das civilizações agrárias e pastoris teve o seu tempo e a sua função, o seu efeito de controle em fases de barbárie, mas não passa de uma alegoria inadequada ao nosso tempo. Tudo no Evangelho, como Kardec demonstrou, desde que afastado do clima mitológico, torna-se claro e demonstra a posição evidentemente racional do Cristo. O jovem carpinteiro não pertencia à Era Mitológica e encerrou essa era com a sua passagem pela Terra e a propagação do seu ensino. O mito vingou-se dele, pois o transformou também em mito. Por muito tempo, até aos nossos dias, a figura humana de Jesus figurou na nova mitologia, na fase romana do Renascimento Mitológico, em que se destacou a figura do Imperador Juliano, o Apóstata, que depois de aceitar o Cristianismo apostatou-se e empenhou-se na salvação dos seus deuses antigos. Os resíduos da mentalidade mitológica das civilizações arcaicas, particularmente a Grega e a Romana, reagiram, como era natural, contra o racionalismo cristão. Dessa maneira, na mente das populações bárbaras do Império Romano decadente, Jesus foi transformado num mito da Era Agrária. Os padres e bispos do Cristianismo nascente, todos impregnados pela carga mitológica de um longo passado de ignorância e superstições, não foram capazes de compreender o racionalismo das proposições cristãs. Pelo contrário, cheios de temor e de espanto, contribuíram para a deformação do Cristianismo. Antes e depois da queda do Império, os cristãos fizeram concessões necessárias aos povos bárbaros para absorvê-los no seio da Religião Redentora. Onde quer que os cristãos se impusessem pela força do número e das armas, as igrejas pagãs eram transformadas em templos cristãos, conservando-se cautelosamente as tradições mitológicas mais arraigadas. O exemplo clássico e mais conhecido dessa tática romana é a Catedral de Notre Dame, em Paris, que ainda guarda nos seus subterrâneos os restos do templo pagão da Deusa Lutécia. A Deusa pagã foi conservada no templo, mas com o nome de Nossa Senhora, para que o povo ingênuo aceitasse assim o culto cristão a Maria sob o prestígio secular da deusa pagã. Blavatsky lembra que a Deusa Céres, divindade da fecundação e em muitas regiões, mais especificamente, deusa dos cereais, forneceu ao Cristianismo nascente uma das mais conhecidas imagens de Nossa Senhora, em que ela é representada com o manto estrelado do Céu, em pé sobre o globo terreno: Céres cobrindo a Terra com seu manto celeste para fecundá-la. Esse mesmo processo de transposição ocorre hoje no Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro e nas formas de sincretismo de outros países da América, onde os ritos e as figuras dos deuses ou santos católicos são absorvidos pelas religiões africanas transplantadas pelo tráfico negreiro de escravos ao novo continente. Jesus virou Oxalá, Nossa Senhora virou Iemanjá, São Jorge virou Ogum (deus da guerra), São Sebastião virou Oxum (deus da caça, e assim por diante) .

Basta lermos o Livro de Atos dos Apóstolos, no Evangelho, e as epístolas de Paulo (anteriores aos Evangelhos) para termos a confirmação dessa verdade histórica. Na primeira epístola de Paulo aos Coríntios, no tópico referente aos Dons Espirituais, temos uma descrição viva do chamado culto pneumático (do Grego: Pneuma, sopro, espírito), as sessões mediúnicas realizadas pelos primeiros cristãos e nas quais, segundo as pesquisas históricas modernas, que confirmam os dados da Tradição, manifestavam-se espíritos inferiores cheios de ódio a Cristo. Essas manifestações assustadoras foram consideradas como diabólicas, reforçando a imagem tradicional do Diabo na mente ingênua dos adeptos.

A luta entre o Bem e o Mal é simplesmente o processo dialético da evolução. O Mal é a ignorância, o atraso, a superstição. O Bem é o conhecimento, o progresso, a adequação da mente à realidade. Essa é a grande luta das coisas e dos seres, figurada na revolta absurda de Luzbel, o anjo de luz que se entregou à inveja e converteu-se em adversário de Deus. Esses símbolos de um passado bárbaro e longínquo ainda prevalecem na Terra como resíduos míticos que o tempo desgasta na proporção em que a Cultura se desenvolve. A Ciência incumbiu-se de ajustar a mente humana à realidade terrena, mas os homens se envaideceram e negaram-se a si mesmos nas idéias materialistas, colocando-se abaixo de tudo quanto existe. Duro castigo que o orgulho humano ainda não reconheceu. A Ciência afirma que nada se perde na Natureza, tudo se transforma. O homem aprova isso com entusiasmo e sorri de si mesmo (sem perceber), pois só ele não subsiste, só ele é pó que reverte ao pó. Essa é a verdadeira queda do homem, que se rebaixa ao pó num mundo em que tudo se eleva incessantemente na direção dos planos superiores. A tentação simbólica de Jesus no deserto assemelha-se à tentação de Buda na floresta. É a tentação dos homens pelas fascinações dos bens terrenos. Quando o homem se apega à terra (com t minúsculo, porque a terra que pisamos e não o Globo Terreno), ele se nega evoluir e é castigado pelas forças da evolução, que o impelem a sair da sua toca de bicho para atingir a condição existencial da espécie. A lei da existência não é o pó, mas a transcendência. Pode o homem andar de joelhos pelas ruas e as estradas, jejuar, mortificar-se, ciliciar-se quanto quiser, mas com isso não se tornará melhor. Voltará às reencarnações difíceis e dolorosas para aprender, no sofrimento e na decepção, que não se busca Deus rastejando, mas elevando-se no amor e na dedicação aos outros. As práticas religiosas de purificação são egoístas, aumentam a miséria humana e o apego do homem a si mesmo. As tentações que sofremos não vêm do Diabo, mas de nós mesmos, da nossa ignorância e do nosso apego hipnótico aos bens perecíveis da vida terrena. O Diabo é o Bicho-Papão dos adultos, o espantalho dos supersticiosos. Giovanni Papini, escritor católico italiano, contemporâneo, em seu livro Il Diavolo, escandalizou o Vaticano, pregando a conversão do Diabo. Não conseguia admitir esse mito impiedoso em sua teologia. O Padre Teilhard de Chardin, em seus estudos teológicos, negou a condenação eterna do Diabo. O Espiritismo se limita a mostrar a natureza mitológica do Diabo e a demonstrar, prática e logicamente, a impossibilidade da queda do Anjo Luzbel. A evolução espiritual é irreversível. O espírito que se elevou ao plano angélico não pode regredir, não pode ter inveja e outros sentimentos humanos. O anjo-mau é uma contradição em si mesmo, pois a Angelitude é a condição divina que o espírito busca e atinge na existência. A luta do homem para transformar o mundo é a luta do homem consigo mesmo, pois é ele quem faz o mundo, e o faz à sua imagem e semelhança. Deus criou a Terra e todos os mundos do espaço, mas deu cada mundo aos homens que os habitam, para que eles aprendam o seu ofício paterno de Criador, tentando criar o mundo humano que lhes compete. É evidente que existe o mundo físico, material, em que nascemos, vivemos e morremos. E é também inegável que, sobre esse mundo físico com os seus materiais, os homens construíram um mundo diferente, feito de artifícios humanos. O mundo material e sua contraparte espiritual (que os cientistas começam a descobrir como antimatéria) constituem o mundo natural. Mas sobre ambas as partes desse mundo natural os homens constroem os seus mundos factícios. Cada Civilização é um mundo imaginário que o homem constrói com o seu trabalho, modelando em argila e pedra os seus sonhos e as suas ilusões. Esses mundos artificiais são o reflexo das ideações humanas na matéria. Nós os criamos, alimentamos, desenvolvemos, dirigimos e matamos. Os mundos bárbaros criados na Terra eram ingênuos; os mundos civilizados apresentam uma gradação que reflete a evolução humana, indo das civilizações agrárias, fantasiosas e alegóricas até às grandes civilizações orientais, massivas e arrogantes e às Civilizações Teocráticas, míticas e supersticiosas; chegando às Civilizações Científicas, politeístas e pretensiosas, que se transformam em Civilizações Tecnológicas, materialistas e conflitivas, que morrerão para dar lugar à Civilização do Espírito, na busca cultural da Transcendência. Segundo Toynbee, mais de vinte grandes civilizações já existiram na Terra. Agora está surgindo aos nossos olhos e sob os nossos pés uma Nova Civilização - a do Espírito - que podemos chamar de Cósmica ou Espiritual. É para preparar o advento dessa Civilização do Espírito que o Espiritismo surgiu. Não adianta querermos fazer do Espiritismo uma religião dogmática, carregada de misticismo tolo ou de materialismo alienante. As novas gerações que se encarnam para realizá-la não temem a Deus nem ao Diabo, simplesmente confiam nos planos irreversíveis de Deus, que se executam segundo as leis da consciência humana em relação telepática permanente com as entidades angélicas a serviço de Deus. O Espiritismo é a Plataforma de Deus, aprovada pelos Espíritos Superiores para a transformação e elevação da Terra.


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O Problema das Mistificações

Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa de Kardec. Todos os grandes médiuns, inclusive Daniel Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados. Cientistas eminentes, como Charles Richet, William Crookes, Frederic Zöllner, Russel Wallace, Screnk-Notzing e tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos da mentira, proclamaram por toda parte que, com o grande fisiologista francês, Prêmio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica, a goécia moderna, ciência monstruosa de profanação dos túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se havia reencarnado na Universidade de Duke (EUA) em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks e Rhine (americano) e William McDougal (inglês) eram os fundadores dessa nova escola científica de pesquisa dos fenômenos espíritas. Com recursos técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controle estatístico dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos exaustivos, todas as barreiras do preconceito, da ignorância e dos interesses subalternos e impôs-se ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais vivo interesse da URSS e em toda a sua órbita de influência.

Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de tática e passaram também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O problema das fraudes e mistificações morreu por si mesmo, ante as novas possibilidades de controle absoluto das pesquisas. Essa última filha do Espiritismo, a Parapsicologia, tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo laço de família com a Astronáutica, que interessou-se pelos seus poderes e a transformou em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine), confirmou a veracidade de suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com esta um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre a reencarnação tomaram conta do mundo científico. Não é mais possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que amarravam panos nas pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar a famosa dança das mesas como o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se tornou tão ridículo, ante as evidências científicas da verdade, que hoje somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs da salvação ainda se atrevem a gritar, perante assembléias de fanáticos, que o Espiritismo é um instrumento do Diabo.

Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto de velhas mistificações, tentando criar um anti-espiritismo de orientação materialista-mecabicista, carregado de contradições internas e de todas as incongruências características de amadores sem preparo. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram de mistura com o cientificismo insolente – que considerava Kardec superado e suas teorias empoeiradas – brotavam do chão, como as heresias do tempo de Tertuliano, estranhas florações de concepções arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá, eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro de enxofre. O Espiritismo regredia, nas mãos dos falsários, uns ingênuos e outros vaidosos, às pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a adulteração, elaborada em segredo e a portas fechadas, como os assassinatos a punhal nos templos de Veneza.

Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da Terra. O atentado a Kardec e a Jesus, à Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os esquemas do vandalismo planejado e já iniciado, que abrangiam toda a obra gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo, no salão vazio da antiga dignidade espírita.

Tudo isso resulta das mistificações, não as ingênuas, tolas mistificações das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado e que hoje só podem ocorrer entre criaturas desatualizadas e incapazes de tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as doutrinárias, e essas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de supostos mestres espirituais. Dali por diante, numa seqüência natural, encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas, instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados em estilo das antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais no tipo de congregações marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isso quer, dizer que não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e confuso do passado para estabelecer uma linha racional de espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso, aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu completo desconhecimento da doutrina e. da sua falta de orientação histórica e filosófica. Nunca os espíritos mistificadores acharam campo mais vasto, fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos.

O problema das mistificações é permanente nos mundos inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria da população desses mundos. É evidente que a população desencarnada, espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes do planeta é da mesma natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos (como advertiu Kardec), empenhados a transmitir suas idéias aos homens. As ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada, às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a .que ordem e grau da escala espírita pertencem essas criaturas em conluio. Dos. descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra isso que precisamos lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito da Verdade. Esse é um dos pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do aquém. Restabelecer o ensino do Cristo em sua pureza é a função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. Seu ensino apresenta em forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito da Verdade. Há uma tese do Dr. Canuto de Abreu que contraria essa verdade histórica, suficientemente provada nas comunicações inseridas em Obras Póstumas de Kardec e demonstrada ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos precisam se prevenir contra essas ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que essa tese já vem marcada pelos seus absurdos e sua incongruência.

Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a questão. Oliver Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec, que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange em sua concepção toda a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas atuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão inteira razão a essa interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num esquema esclarecedor, para tornar mais claro cada um dos seus aspectos:

a) O conhecimento da realidade se processa no contacto do homem com o mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais (a reminiscência platônica do mundo das idéias) e ao formar em seu espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstração, ele desenvolve o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade natural concreta, como Descartes demonstrou que a imaginação avança além da razão. Nesses avanços surgem as deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo desligou-se da realidade. Igrejas, ordens espiritualistas, irmandades secretas impregnaram-se de elementos ilusórios, de pressupostos considerados como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao mito, mas de fato envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Iavé, o Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no protecionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de animais e dos homens.

b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que atravessou os milênios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do lendário diamante-Schamil com que Moisés teria escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do mundo. Iavé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para se transformar no Deus Único, mas o povo judeu o aceitou como tal porque isso agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório, que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no trato com os povos estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que egípcios e babilônios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade interesseira, aumentada por um protecionismo escandaloso, e a coragem e tenacidade que demonstrava em todas as circunstâncias, deram a Iavé uma posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar o seu presente em batalhas alucinadas. Verdadeiro presente de grego, que custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na verdade, Iavé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e cultura desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios da História. E sobre a terra ensangüentada, juncada de cadáveres, o povo ludibriado construiu seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Iavé não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a por suas narinas divinais.

Por dois milênios considerou-se o nascimento de Jesus em Israel como uma confirmação da grandeza de Iavé. Mas essa grandeza era apenas uma fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude brutal de Iavé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria Bíblia:

c) Iavé nada mais era do que o espírito orientador do clã arrogante e ganancioso de Abraão, Isac e Jacó na velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa de Moisés e dos Anciãos no deserto para materializar-se entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Iavé falava cara a cara com seu servo Moisés, dando-lhe prestígio necessário para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas contemporâneas e atuais sobre esses fenômenos mediúnicos desvendaram o mistério. Os estudos de Max Fredon Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelaram o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem constituídas por um plasma físico formado de partículas atômicas livres. Iavé, o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que na sua expansão manifesta cheiro de ozona, foi considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de enxofre. Frederic Zöllner demonstrou, na Universidade de Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder de dinamites. Essas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Iavé e este lhe aparecia em forma de sarça ardente, segundo o Gênese.

Diante dessas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por Israel. E o maior milagre de Jesus se apresenta como sendo a utilização do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o desenvolvimento da sua missão mediúnica de implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Iavé numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A fusão absurda desses deuses antagônicos no Cristianismo explica-se pela incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinos de Jesus, através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes, nos revela o panorama de paixões exacerbadas, em meio a interesses políticos e sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epistolas de Paulo e do Livro de Atos dos Apóstolos, do que foram as dissenções no próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou de maneira clara e lapidar, cegou a ser compreendida. O culto pneumático, de manifestações de espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre das assembléias cristãs foi injetada de elementos complexos dos cultos religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes nos cultos cananitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas tornaram-se dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer.

A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus, referente a sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no corpo carnal, de maneira que Tomé, o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente, acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das muitas virgens mães da Antigüidade de que trata Saint'Ives num livro excomungado; José passou de pai a padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por milagre a definição de João: Deus é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingênua de uma flor nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível em meio ao entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para escurecer o Céu e ensangüentar a terra. Os erros dos copistas, as adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingênuas de reformistas ignorantes passaram ao redor dessa definição de Deus sem atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não cessaram até hoje. As pretensas atualizações de linguagem dos velhos textos prosseguem em nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas instituições guardiãs de sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura humana, a definição de Jogo ainda não foi mascarada.

Os adulteradores espíritas de Kardec mostraram-se de uma grande ignorância. O que fizeram com O Evangelho Segundo o Espiritismo é de estarrecer. Deformaram, cortaram, tornaram o texto lógico do mestre incongruente e contraditório. Não pouparam sequer as mais belas e poderosas frases de Jesus, como: Amai aos vossos inimigos, que reduziram a esta vergonha lingüística: Amai aos que não vos amam. Das eloqüentes mensagens de Lázaro extraíram as figuras expressivas e viris como: Nós vos faremos avançar com a dupla ação do freio e da espora, talvez por já estarem sentindo as esporas nas virilhas. Emacularam os textos, como se fossem eunucos destinados a servir nos haréns de velhos e trêmulos sultões.

Todas essas formas de mistificações, geralmente a serviço de interesses humanos subalternos, estão presentes em todas as culturas e em todas as religiões, porque a mistificação é própria do homem, encarnado ou desencarnado. Na inferioridade visível e palpável do nosso mundo os mistificadores pululam no plano espiritual ligado à Terra e na crosta planetária. Nas escrituras sagradas de todas as correntes espiritualistas e de todas as religiões podemos encontrar e identificar diversos tipos de mistificação. Kardec foi o único a estabelecer um método seguro de prevenção das mistificações. Mas os mistificadores se servem da vaidade humana para infiltrar-se nas instituições doutrinárias, onde sempre encontramos criaturas ansiosas por novidades que superem a obra do mestre. O Espiritismo é uma questão de bom-senso, como escreveu Kardec, mas as criaturas insensatas estão por toda parte. Precisamos manter constante vigilância em nossos estudos para não cairmos nas mistificações que nos levam a deturpar e aviltar a doutrina. Bastaria um pouco de humildade para vermos, como ensina Kardec, a ponta de orelha do mistificador, que sempre aparece nos textos mentirosos ou ilusórios. A mistificação se alimenta de vaidade e pretensão, desse orgulho infantil a que não escapam nem mesmo pessoas ilustradas. Muitas vezes, pelo contrário, as pessoas ilustradas não passam de analfabetas ilustres, mais sujeitas, por sua vaidade pueril, à mistificação, do que as pessoas humildes mas dotadas de bom-senso. Kardec tem razão ao afirmar que o bom-senso e a humildade são preservativos da mistificação. Nenhum espírito nos mistifica se nós mesmos já não estivermos nos mistificando por vontade própria.

Os médiuns dispõem de vários recursos para evitar as mistificações: orar e vigiar, manter sua fé racional em Deus e nos Espíritos Superiores; confiar em seus protetores espirituais; ler todos os dias pelo menos um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, manter a mente arejada e serena, sem temores inúteis; alimentar pensamentos altruístas, ou seja, em favor dos outros, evitando idéias de grandeza; rejeitar os Espíritos que lhes prometem revelações e os que pretendem contar-lhes o que foram em outras encarnações; afastar de sua mente qualquer idéia de maldade contra os outros; afugentar ódios e ressentimentos; não querer tornar-se anjos de um momento para outro; viver como todas as criaturas pacíficas dignas, cumprindo os seus deveres sociais e morais, sem jamais se julgarem superiores aos outros; suportar as dificuldades da vida sem reclamações, dando mais atenção às necessidades dos outros do que às suas próprias; fazer todo o bem possível ao seu alcance, sem exageros e tendo sempre em vista que não devemos acocar-nos nem acocar os outros, pois todos temos de passar pelas experiências; evitar disputas sobre opiniões; não admitir interferências de dinheiro ou lucros de qualquer espécie em suas atividades mediúnicas. Tudo isso se resume, como vemos, em caridade, humildade e honestidade. O médium ou espírita que seguir esses princípios estará vacinado contra a mistificação, desde que não se convença que estará livre de ser mistificado. A simples idéia de ter esse privilégio pode ser a porta que esqueceu aberta e pela qual a mistificação entrará com facilidade.

O maior caso de mistificação, capaz de levar qualquer pessoa à fascinação, é a obra Os Quatro Evangelhos, de Jean Baptiste Roustaing, que a Federação Espírita Brasileira tomou como fundamento da sua orientação doutrinária. A mistificação é tão evidente nessa obra que uma pessoa simples, mas de bom-senso, logo a percebe. Mas como se apóia nos resíduos mitológicos e místicos da nossa formação religiosa tradicional, continua a fazer suas vítimas entre nós através dos anos. Nessa obra, Jesus é transformado num mistificador que fingiu nascer mas não nasceu, fingiu mamar mas não mamou, fingiu morrer na cruz mas não morreu; fingiu ressuscitar mas não ressuscitou, pois era um agênere, uma criatura não gerada, uma simples aparição tangível que combinou no espaço encontrar-se na Terra com Maria Madalena. E isso é apenas um pedaço mínimo do imenso ridículo em que essa obra das trevas procura mergulhar a Doutrina dos Espíritos Superiores. As obras de Ramatis constituem o segundo caso de mistificação em nosso movimento espírita, divergindo daquela em alguns pontos e apresentando outras novidades absurdas. A obra A Vida de Jesus Ditada por Ele Mesmo, recebida na Alemanha e completada na Argentina, onde existe uma instituição espírita para mantê-la, divulgá-la e defendê-la, é outro caso típico de mistificação em grande estilo, que tem iludido multidões de pessoas. Nessa obra vemos Jesus, em suas memórias, prestar-nos um depoimento estranho sem começo e sem fim e com deformidade de um texto do Corto, de Maomé. Fala Jesus: “Meus irmãos, escutai o relato da minha vida terrestre como Messias.” A seguir o livro nos conta as primeiras peripécias de Jesus após a morte de José, seu pai, sua ida a Jerusalém e a entrega dos negócios da família em mãos estranhas. Jesus se diz o mais velho dos nove filhos de José e Maria. Descreve a vida tranqüila que levava em Nazaré, mas lamenta que as suas idéias messiânicas o tenham levado para o caminho perigoso. Refere-se aos fundamentos da Ciência Kabalística que aprendeu, conta que após a morte do pai envolveu-se em Jerusalém com grupos subversivos e tornou-se agitador político. Nesse ritmo de estória à Jock London, o livro atinge a fase messiânica de Jesus. O auto-memorialista proclama: “Minha obra era santa, porque era a Obra do Pai; minha missão não era de ódio, mas de amor.” Um livro mediúnico sem nenhuma base histórica, sem nada de novo quanto à interpretação da figura humana de Jesus, sem nenhuma marca da época, decalcado em situações atuais, desprovido da mínima verossimilhança, e que no entanto e apesar do seu volume de cerca de 400 páginas, não pesa em nada na balança da História. Mistificação evidente e sem defesa possível. Como podem espíritas ilustrados, inteligentes, perspicazes, aceitar esse relato de fraca imaginação como autobiografia do Cristo, do assombroso personagem histórico que transformou o mundo com as suas idéias, no vago registro das loggia, das anotações fragmentárias de seus ensinos morais, frases e expressões que balizaram o desenvolvimento humano a partir das suas prédicas? Essa é a glória da mistificação – fazer passar como verídicas as mais infundadas aberrações. Mas não se pense que o triunfo é da mistificação em si. Pelo contrário, é dos que se deixam mistificar, dos que desejam iludir-se e para isso alimentam o seu bom-senso nas bancas de câmbio da imaginação. Essas criaturas ansiosas pelo maravilhoso, não encontrando o que desejam nas pesquisas e nos estudos sérios, aceitam emocionados os maiores absurdos.

É um curioso mecanismo de compensação interior que leva os leitores dessas falsidades ingênuas a considerá-las como verídicas. O anseio de novidades maravilhosas é nelas mais poderoso do que a razão, que sabem aplicar nas coisas da vida diária, mas fracassam ao aplicá-las ao sonho, pois este exige a descoberta dos segredos a qualquer preço. É o mesmo caso das obsessões, em que o apego do obsedado ao obsessor é que da forças a este para agir sobre aquele. O mesmo caso dos viciados, que embora conhecendo as conseqüências do vício, não podem abandoná-lo, pois sem ele a vida perderia em gosto e sentido. Uma face pouco ou nada conhecida dos processos esquizofrênicos. Uma área em que a Psicologia Espírita tem muito a trabalhar.

Mas não é só no Espiritismo que isso acontece. A natureza é uma só em toda parte. No Corão, de Maomé, a mistificação é tão transparente como no caso acima. O mistificador cobre as suas deficiências com o manto embriagador ou atordoante da fantasia. E serve-se de afirmações enfáticas, de frases altissonantes para melhor impressionar os que desejam ser enganados. Todo o gênese bíblico reveste-se desse mesmo aspecto. O episódio do nascimento de Jesus, no Corão, é ao mesmo tempo anedótico, pitoresco e impressionante. Maria recebe a anunciação do Anjo, que a manda fugir para o deserto. José foi inteiramente excluído dessa estória das Mil e Uma Noites em que um velho carpinteiro nada tinha a fazer. A jovem virgem foge da casa dos pais e dirige-se a tamareira solitária no meio do areal. Ali se deita e o Anjo lhe ensina como proceder. Ao mesmo tempo, faz correr um filete de água ao pé da tamareira. Quando tiver fome, basta-lhe sacudir a árvore e os frutos maduros caem. O menino nasce e o anjo a manda voltar para a casa. Lá, a família a repreende, mas ela tem o menino Jesus nos braços. Maria conta o que se passou e o menino recém-nascido o confirma. O espanto é geral e tudo se acomoda. A estória ingênua é simples ideação mistificadora, mas a palavra do Profeta é suficiente para transformá-la em realidade histórica. O Islã nasceu do tronco bíblico, é uma espécie de sombra judaica projetada sobre a Arábia. As figuras bíblicas de Abraão, Isaac e Jacó aparecem deformadas nessa projeção. Era natural que Maria e Jesus também aparecessem assim. Mas temos nessa projeção conceptual uma espécie de intuição profética animitológica. O nascimento de Jesus sob uma tamareira no deserto devolve o acontecimento real à sua singeleza verdadeira. Resta o mito do Anjo Gabriel, mas este corresponde à realidade subjetiva da inspiração de Maomé. O fato de o menino Jesus falar precocemente não é mitológico, pois pode ser considerado na pauta da precocidade natural. É importante lembrar que o Islamismo revela maior tendência para a realidade figurada do que para o mito. A exclusão de José e os cuidados do Anjo com Maria parecem indicar o Anjo como o pai do menino, em lugar do Espírito Santo. Uma análise profunda desse episódio do Corão, que estabelece uma ligação genésica entre o Islamismo e o Cristianismo, pode revelar maiores significações na perspectiva histórica. A mistificação religiosa decorre muitas vezes de exigências lógicas num processo histórico de ocorrências complexas e cujas linhas se tornaram indefinidas no tempo. Esse é um problema de Para-história, nova área de interpretação histórica nascida das conquistas atuais da Parapsicologia, e que por isso mesmo interessa de perto aos espíritas.

Maomé foi geralmente considerado como um mistificador, mas na verdade era um médium, um paranormal que, segundo Emmanuel, tinha a missão, em que fracassou, de forçar o retorno da Igreja de Roma à realidade histórica. O fracasso do Profeta Árabe decorreu do seu excessivo apego à matéria, em virtude de sua forte vitalidade. Por isso Dante o colocou no Inferno com o ventre rasgado e os intestinos caindo fora do ventre, condenação típica dos excessos de sensualidade. Todos estes elementos são importantes para uma reinterpretação do conjunto religioso-histórico formado pelo triângulo bíblico Judaísmo-Cristianismo-Islamismo. Cabe às instituições culturais espíritas, no futuro, analisar estes problemas referentes ao processo da evolução da humanidade terrena. O alfanje[2] islâmico guarda ainda os segredos do Crescente Lunar, que podem ainda fazer mais luz do que o Sol sobre a condição humana.


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Amor, Sexualidade e Casamento

No Espiritismo o problema do amor implica a relação direta do homem com Deus. Criador e criatura se religam no desenvolvimento humano da lei de adoração. Quanto mais o homem desenvolve as suas potencialidades existenciais, o seu potencial ôntico, mais ele se aproxima de Deus, mais o sente e mais o compreende. Nunca houve nem poderia haver um rompimento total e definitivo entre Criador e criatura. No próprio dogma da queda a expulsão do homem da face de Deus é apenas temporária. Por isso o Espiritismo é Religião, mas não é igreja. A diferença entre Igreja e Religião é a mesma que existe entre alma e corpo. O homem perde o corpo na morte, mas não perde a alma. A Religião anunciada por Jesus não possui corpo, é alma pura, que sobrevive por si mesma. No diálogo com a Mulher Samaritana Jesus desprezou o Templo de Jerusalém e o Templo do Monte Gerasin, referindo-se apenas à Religião Livre do Futuro. Porque a relação religiosa é puramente espiritual. A Religião não depende de formalismos, sacramentos, instituições e órgãos. É subjetiva e se define como o Amor a Deus. Essa relação direta exclui naturalmente todas as formas de discriminação, pois seu objetivo é a unidade. Quando uma criatura se liga a Deus, liga-se ao mesmo tempo a todas as criaturas e a todo o Universo, integra-se na realidade absoluta. Tudo o mais são coisas humanas, pertence à diáspora, ou seja, ao tempo do exílio, em que o homem se afastou de Deus. Esta simplificação da Religião só ocorre na máxima complexidade, que é o mergulho do homem em sua essência, proveniente de Deus e que é o próprio Deus em nós. Exemplifiquemos humanamente esta questão. Conta-se que um sábio indiano mandou três filhos estudar na Inglaterra. Quando voltaram diplomados perguntou ao primeiro: “O que é Deus”? O rapaz fez uma longa e confusa digressão a respeito. O segundo vacilou em sua explicação e disse que precisava estudar mais o assunto. O terceiro calou-se e seus olhos se encheram de estranha névoa luminosa. O pai disse aos três; por ordem das perguntas: “Você, meu filho, procurou Deus nas teologias e não conseguiu achá-lo; você, meu segundo filho, está tateando no escuro como um cego; e você, meu filho, que não me respondeu, encontrou Deus e nele mergulhou de tal maneira que não pode traduzi-lo em palavras. Você não perdeu tempo com as coisas exteriores e por isso foi o único que realmente aprendeu o que é Deus.”

A contradição máxima complexidade e máxima simplicidade não é contradição, mas fusão. A complexidade infinita das coisas e dos seres no Universo aturde o homem que busca Deus, mas ao encontrá-lo o homem percebe de pronto que toda a complexidade se funde na Existência Única de Deus. É como o marinheiro que navegou por muitos mares, surpreso com as variedades e as diferenciações formais de todos eles, mas ao terminar a sua navegação constata que todos os mares não são mais do que o Grande Mar.

A religião em Espírito e Verdade é esse Mar Total em que todos mares e todas as águas se reúnem numa coisa só.

Todas as religiões nasceram da mediunidade, que é o fundamento de todas as religiões, que por sua vez se fundem na Religião em essência que é a Religião do Espírito ou o Espiritismo. Nela não se precisa de coisas específicas, pois todas as coisas se fundem numa só – o Amor a Deus.

Um jovem e uma jovem se amam e o amor que os atrai é o Amor de Deus nas criaturas. A bênção do amor já os ligou e eles não necessitam de palavras, ritos ou sacramentos para se unirem, pois unidos já estão. Se não houver amor entre eles, não estão unidos e de nada valerá a união formal por meios sacramentais. É por isso que no Espiritismo não há sacramentos nem formalismo algum, pois tudo depende, em todas as circunstâncias, da essência única – e única verdadeira – que é o Amor.

Mas o Espiritismo reconhece a necessidade humana de disciplinação social, e por isso recomenda apenas casamento civil. Ainda por isso o Espiritismo reconhece a necessidade do divórcio, pois no plano ilusório da matéria as criaturas se confundem e misturam sexualidade e desejo com o Amor. Jesus, respondendo aos judeus por que motivo Moisés permitia o divórcio, disse-lhes: “Por causa da dureza dos corações, mas no princípio não foi assim.” Kardec explica que no princípio da humanidade o amor era espontâneo, livre de injunções estranhas, e então não era necessário o divórcio. O Espiritismo não faz casamentos nem divórcios, nem as anulações de casamento que a Igreja faz, pois esses problemas pertencem às leis humanas. Da mesma maneira o Espiritismo não faz batizados – pois o batismo é do espírito – nem recomenda defuntos ou distribui bênçãos, pois todas essas coisas não são feitas pelos homens e sim por Deus. Todos os sacramentos e formalismos são substituídos no Espiritismo pela prece, que serve em todas as ocasiões da vida e da morte, pois é um momento de ligação do homem com Deus, o diálogo com o Outro, como queria Kierkegaard. Toda intervenção humana interesseira e venal é substituída pela serena confiança nas bênçãos gratuitas do Céu. Nesse ato humano de louvor ou de súplica, desprovido de aparatos exteriores, a presença da Divindade é o cumprimento da promessa de Jesus, sem nenhuma evocação formal. A solidariedade espiritual se revela no esforço de transcendência vertical das criaturas, conscientes da lei da sublimação. Não há fórmulas orais nem gestos, nem signos ou mitos na tranqüila vibração das consciências na intimidade de todos e de cada um.

A prece espontânea brota das profundezas do ser com a naturalidade de uma flor que desabrocha. Não é um ato da vontade, mas um aflorar do espírito. Não é uma ficha arrancada do arquivo da memória, mas um impulso do coração. As raízes latinas: prex, precis, determinaram no tempo, através de séculos e milênios, a forma leve e suave da palavra portuguesa prece, que soa nos lábios como um bater secreto de asas minúsculas. Prefere-se prece à oração, porque a primeira condiz e se harmoniza com o ato interior e invisível com que a alma se lança na transcendência. Há um mistério sutil nessa escolha intuitiva desse par de sílabas poéticas que repercutem nos corações como o perpassar de uma brisa entre pétalas. Não tentamos fazer poesia nem divagar, mas descobrir através de imagens e palavras, o imponderável do instante da prece.

Os que não se contentam com esse sopro do espírito, esse pneuma grego, esse frêmito inaudível, captado mais pela alma do que pelos ouvidos, preferindo orações extensas e grandíloquas, estão ainda imantados aos formalismos sacramentais. Nada revela mais claramente a natureza intimista da religião espiritual do que essa preferência espírita pela prece. Livrar a criatura do peso da matéria, para que ela possa elevar-se a Deus no silêncio de si mesmo é a finalidade da prece.

Do problema da prece temos de passar à questão sexual, o que não seria recomendável ainda há pouco tempo. O tabu sexual fechava todas as passagens a atrevimentos dessa espécie. As marcas da era fálica haviam aterrorizado o Cristianismo Primitivo, que teve de lutar tenazmente contra a depravação romana e do paganismo em geral. As epístolas de Paulo nos mostram o desespero do Apóstolo ante o comportamento animal dos conversos em certas igrejas, particularmente na de Corinto. Isso impediu o Apóstolo, já assustado com a corrupção grega e romana no próprio Judaísmo, a tomar uma atitude radical no tocante ao sexo. O falso conceito judeu da pureza (mais racial e religioso do que moral), provocava os seus brios de antigo Doutor da Lei contra o perigo da época. Das reações de Paulo e do puritanismo hipócrita dos fariseus teria de nascer uma era antifálica e anti-sensual, voltada para o extremo oposto da castidade forçada e do celibato sacrificial. Foi tão violenta essa reação que nem mesmo os exemplos de mentalidade aberta do Cristo puderam atenuá-la. Não somente o sexo, como instrumento de perdição, mas a própria sexualidade foram condenadas sumariamente. Por pouco a prática judaica da circuncisão, que alguns apóstolos mais afoitos, como Pedro, exigiam dos conversos pagãos, não se transformou na castração árabe dos haréns. É significativo o fato de Paulo, depois da circuncisão que praticou recusar-se a continuar circuncidado e até mesmo a batizar com água.

Houve também, como teria de haver, reações contrárias a essa posição extremada, com liberalidades também extremadas, que mais tarde resultariam no episódio dos Libertinos do Século XX, católicos e protestantes rejeitados pelas idéias renascentistas, precursores da fase atual de libertinagem que abalaram o mundo. A pornografia assustadora de hoje, que fomenta a indústria das perversões sexuais em revistas, jornais, cartazes, cinema e televisão, é por sua vez um novo eclodir da sensualidade sem freios, desvirtuando o sentido natural da sexualidade. São esses os balanços de um barco de loucos atirado à fúria de tempestades marítimas, à semelhança do Barco dos Mortos de Traven. A contra-reação da moral vitoriana inglesa nada mais fez do que preparar a sua própria explosão, na fase atual do homossexualismo europeu desenfreado, que parece vingar a prisão de Oscar Wild em Reading.

A sexualidade afrontada encontrou em Marcuse o seu defensor filosófico, mas em termos exagerados. Desde o século passado o Espiritismo colocou nos fundamentos de toda a realidade terrena a questão do princípio vital, elemento mantedor de toda a vida planetária. A sexualidade, que não é o sexo, mas a potência sexual geradora e mantenedora de vida, é a carga de energia vital do planeta, distribuída nos indivíduos de todas as espécies. Na era fálica essa força era cultuada mas não havia libertinagem nem pornografia nesse culto, pois não se considerava o sexo como pecado, mas como instrumento sagrado de reprodução da espécie. Na Suméria os casais se uniam nos altares dos templos, na presença de sacerdotes que os abençoavam para a fecundação. Esse senso da dignidade do sexo perdeu-se nas civilizações teocráticas, esmagado sob as condenações do gozo, que impediam a alma de alcançar a salvação. Marcuse tem razão ao defender a teoria das civilizações suicidas, que condenam o sexo e a ele se entregam na exclusiva busca do prazer, desenvolvendo a indústria aviltante do gozo sexual, que reduz o sexo a instrumento de loucura e perversão. A colocação espírita desse problema é clara e precisa como vemos no capítulo sobre a Lei de Reprodução, de O Livro dos Espíritos:

“As leis e costumes humanos que objetivam ou têm por efeito obstar a reprodução são contrários à lei natural?: Tudo o que entrava a marcha da Natureza é contrário à lei geral”.

Todas as espécies devem reproduzir-se, mesmo as que parecem daninhas. O equilíbrio mesológico se faz segundo as leis biomesológicas de cada área específica: o campo, o cerrado, a floresta, as águas, as cidades e assim por diante. Há espécies daninhas que são sobrevivências de formas em extinção ou mutação, para adaptações a condições novas que estão surgindo. Como Kardec adverte: o homem, que só vê um canto do quadro geral da Natureza, não pode julgar o todo e se confunde em suas apreciações da harmonia natural. No tocante à população humana do planeta, que hoje preocupa os homens e os governos, o Espiritismo sustenta a tese do equilíbrio natural, governado pelas leis naturais. Afirma que a Terra está longe de possuir a população a ela destinada e que o homem não tem capacidade para impedir a progressão populacional. O recente Congresso Demográfico Mundial da ONU, provou isso. Depois de vários dias de debates e defesa de teses absurdas, o Secretário Geral da ONU advertiu os congressistas de que, durante as discussões, milhões de crianças haviam nascido em todo o mundo. Era impossível deter o aumento populacional através das medidas propostas, algumas delas ridículas, como a de um cientista inglês que propunha medidas para reduzir o tamanho atual dos homens, reduzindo-os a homúnculos, para se conseguir mais espaço e diminuir as necessidades de alimentos. Por outro lado, vários cientistas colocaram o problema da chamada explosão demográfica e falta de alimentos em termos de crescimento local dos grandes centros urbanos e falta de controle da produção alimentícia, com esbanjamento de grandes produções por falta de transportes, ganância exagerada de lucros e transportes excessivamente caros de regiões produtoras distantes para as zonas consumidoras. Resta ainda considerar que todo crescimento populacional não é permanente, seguindo uma curva estatística de ascensão que depois decai, ajusta-se em linha regular ou entra em declínio. Tudo isso confirma a posição espírita. Escapa ao homem o controle biomesológico em todo o conjunto de áreas populacionais animais e humanas, de maneira que as intervenções humanas só servem para provocar desequilíbrios perigosos.

Passando desse problema para o de abstenção sexual e o de casamento e celibato, vamos novamente verificar o acerto do Espiritismo em sua posição firmada desde meados do século passado. O casamento representa uma conquista na evolução social, disciplinando as relações humanas com vistas à organização da família na estrutura mais ampla da sociedade. Se a maioria dos casamentos na Terra apresenta dificuldades e desajustes, isso decorre das condições inferiores do nosso mundo. O casal é uma unidade biológica que se forma por atração afetiva recíproca desenvolvida em vidas sucessivas ao longo da temporalidade, que é a larga e profunda esteira dos tempos sucessivos. A afetividade que o liga no presente é positiva, mas está geralmente carregada de cargas negativas, provenientes de situações não resolvidas, de compromissos e dívidas morais recíprocas. Formada a unidade, ela funciona como um dínamo-psiquismo que atrai as entidades comprometidas com o par nas existências anteriores. O par sozinho enleia-se nos sonhos de felicidade dos anseios de amor. Mas as interferências dos comparsas causa disritmias e atritos na harmonia do dínamo, muitas vezes desde o namoro e o noivado, prenunciando tempestades magnéticas. São os filhos que buscam a reencarnação e os parentes do par e outros compromissados que chegam, cobradores de dívidas afetivas e de compromissos rompidos. Não é Deus que determina essas situações embaraçosas, mas os próprios envolvidos em complôs remotos e o próprio par, motivo de ações negativas anteriores que, segundo a lei de ação e reação, formam o karma do grupo, ou seja, o conjunto de insolvências passadas, agora postas em resgate comum. (A palavra karma, de origem sânscrita, vem de arcaicas religiões indianas reencarnacionistas, mas é empregada no meio espírita por seu sentido prático e preciso). Se o casal se recusa a ter filhos os compromissados reagem com vibrações mentais e psíquicas negativas, quebrando a harmonia do dínamo e provocando distúrbios biopsíquicos no casal e até mesmo ocasionando a interferência de reencarnados compromissados com o par. São essas as causas da maioria das situações difíceis resultantes de casamentos felizes. Os casos de abortos provocados no passado constituem pesados compromissos a resgatar, e os casos de abortos recentes (sem necessidade clínica real), acumulam-se aos anteriores ou passam para débitos futuros. É por isso que os sentimentos de amor e respeito ao próximo constituem elementos defensivos da felicidade futura de todos nós. A partir deste quadro podemos compreender com mais clareza as situações dolorosas em que se precipitam muitos casamentos felizes, e que as religiões explicam assustadoramente como castigos divinos ou influências diabólicas. Todas essas ocorrências dependem exclusivamente de nossas relações humanas no passado e no presente. A consciência humana dispõe, em todos nós, dos recursos preventivos dessas situações. Nossa falta leviana de atenção às exigências e advertências da consciência respondem pelas situações negativas que criamos por nós mesmos, contra os nossos interesses evolutivos.

O problema do celibato

No tocante ao celibato a posição espírita é decisivamente contrária, considerando-o como fuga ao dever humano da reprodução da espécie, determinada pelo egoísmo. O celibato religioso, imposto pelas igrejas, vai além disso, pois representa uma violação consciente das leis divinas, sob o pretexto de exclusiva dedicação a Deus. Só é justificável o celibato obrigatório, motivado por questões orgânicas ou impedimentos decorrentes de doenças ou mutilações. Admite-se o celibato por devotamento integral a uma causa social absorvente. Nesses casos o egoísmo está naturalmente excluído. No caso do sacerdócio e votos de castidade o egoísmo reponta da pretensão de agradar a Deus violando as suas leis. Há mesmo, de parte do sacerdócio, como o demonstram as religiões em geral, conveniência no casamento dos sacerdotes, que não se vêem forçados à hipocrisia ante às exigências vitais do homem e da mulher. Uma grande causa pode levar uma criatura abnegada a não se casar para não causar sacrifícios à família que iria constituir. Essa é uma questão de consciência pela qual cada um responde individualmente. Mas o Espiritismo não determina, pois não é uma igreja nem uma instituição secreta. A atitude espírita refere-se apenas aos deveres conscienciais da criatura perante as exigências da evolução humana.

Há ainda o problema da poligamia, que o Espiritismo encara historicamente, lembrando que o casamento, com responsabilidades sociais definidas, superou as experiências poligâmicas do passado. Toda essa posição espírita está perfeitamente de acordo com as leis vigentes no mundo atual. Os movimentos atuais do próprio clero católico pela abolição do celibato sacerdotal e as concessões feitas pela Igreja em numerosos casos, confirmam a necessidade crescente de uma revisão pela Igreja dessa instituição contraditória em que ela se colocou, dividindo sua posição em duas medidas antagônicas: casamentos de clérigos na Igreja do Oriente e celibato obrigatório no Ocidente. O celibato das freiras é uma herança da castidade obrigatória das vestais romanas, sujeitas a serem enterradas vivas se violassem o voto. É interessante lembrar que as vestais, que mantinham o fogo da deusa Vesta nos templos, podiam casar-se sem perigo ao completar 30 anos de idade. As medidas contrárias às leis naturais, que são as leis de Deus, tendem a desaparecer com a evolução cultural, moral e espiritual da Humanidade.

Dizia o Apóstolo Paulo que há eunucos feitos pelos homens e os que se fazem eunucos por amor ao Reino de Deus. Há também os que nascem eunucos. Aplicando-se isso aos nossos dias podemos dizer que há celibato forçado por deficiências orgânicas congênitas, por acidentes mutiladores e pelo desejo de servir a Deus. Mas o Espiritismo, colocando os antigos problemas místicos e as velhas superstições religiosas à luz da razão, nos mostra a contradição da suposta dedicação a Deus através de violações egoístas das leis naturais. Se há, por assim dizer, todo um dispositivo natural de desenvolvimento das potencialidades humanas através de lento e complexo processo evolutivo, como pode o homem, sujeito a esse processo, fechado em suas exigências condicionantes, querer modificá-lo, corrigindo Deus? A quem aproveita o sacrifício de uma jovem saudável na cela de um convento ou a negação por um jovem da sua própria virilidade? O móvel dessas atitudes se revela na ambição egoísta de conquistar o céu para gozo próprio, adiantando-se aos demais e escapando às leis do processo evolutivo natural. Todas as formas de auto-flagelação, cilícios, abstenção exagerada, isolamento e quietismo são fugas à realidade que todos devem enfrentar, no cumprimentos dos deveres inalienáveis de solidariedade humana e amor ao próximo. E toda fuga é um ato de desobediência à vontade divina.

O mito de Adão e Eva tem a beleza poética do ato criador, mas a presença da serpente no Éden é uma advertência às pretensões humanas. Se não fosse a astúcia desse animal rastejante, a Obra de Deus ficaria reduzida, pela timidez do primeiro casal, a uma tentativa frustrada no melo do deserto.

Desde que o homem atingiu, no processo da evolução criadora, segundo a tese de Bergson, a capacidade de pensar e julgar, seu primeiro julgamento foi favorável a si mesmo, pois julgou-se capaz de corrigir os erros de Deus. O despertar da inteligência faz o vinho subir à cabeça, mas é bom não esquecermos que a bebedeira de Noé após o dilúvio o atirou nu no fundo da tenda, escandalizando seus próprios filhos.

Por isso o Espiritismo tomou do ensino de Paulo sobre a maior virtude o seu lema de redenção racional: Fora da caridade não há salvação. As igrejas cristãs clamam até hoje que a salvação pela caridade excita a vaidade humana. Se ajudar os que sofrem e amar o próximo é ato de orgulho, então a humildade deve estar como os que se entregam à ambição da fortuna pessoal e do poder, tirando suas correias do lombo do próximo.


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Como Combater o Espiritismo

O mito bíblico da matança das crianças por ordem de Herodes, o Grande, para livrar-se do Messias, passou para o Evangelho em forma de realidade histórica. Que é mito, não há dúvida, pois tem todas as características míticas e se apresenta ligado ao contexto mitológico, ingênuo e poético, do nascimento de Jesus em Belém de Judá. Mas todo mito é gerado na imaginação do povo a partir de fatos reais. Tanto a nobreza israelita quanto os dominadores romanos da Palestina temiam o aparecimento do Messias e até mesmo a idéia de que o Messias estivesse crescendo no meio do povo. Assim, era conveniente sacrificar as crianças entre as quais ele devia ocultar-se. O sangue inocente, principalmente de crianças, teve sempre significação mágica na Mitologia de todos os povos. A matança de crianças em Monte Santo, num ambiente de fanatismo delirante, descrito por Euclides da Cunha em Os Sertões, tem o mesmo cheiro nauseabundo do infanticídio herodiano. Mas o que nos importa neste caso é a tentativa de matar o Cristianismo no berço, que se repetiria no caso do Espiritismo. Se as forças dominantes na Judéia se conjugaram contra a ameaça que vinha da Galiléia, também no mundo moderno veríamos a reunião de todas as forças do sistema contra a ameaça do Espiritismo, que nascia ao mesmo tempo na América e no centro da civilização européia, que era Paris. As meninas Fox em Hidesville foram impiedosamente trucidadas. E se as meninas Boudin não o foram em Paris, isso deveu-se à cautela de Kardec, que ocultou os seus nomes e simbolicamente as mandou, no mesmo burrinho que levou Maria e José ao Egito, para os confins das Gálias, escondendo-as entre os dólmens e os carvalhos dos druidas. Não obstante essa precaução, os asseclas herodianos, reencarnados em sacerdotes cristãos e cientistas europeus, esquartejaram cada criança que encontravam pelos caminhos da incipiente e arrogante cultura da época. Os tempos haviam mudado após as deslumbrantes conquistas técnicas da Ciência no Século XVIII, e Kardec não chegou a ser crucificado, mas o submeteram a todas as torturas refinadas e os retardatários inquisidores espanhóis o queimaram em Barcelona, na efígie simbólica das suas obras.

Como no caso cristão, tudo isso foi inútil. O Espiritismo impôs-se entre as novidades culturais da época, os Saulos da Ciência foram convertidos pela evidência dos fenômenos e o Cristo Ressuscitado reapareceu na Europa. Por sinal que essa transposição já tinha um precedente: a da fuga de Maria de Magdala para a França após a crucificação, segundo a lenda.

O paralelismo prossegue. Simão, o Mago, que queria obter os segredos da mágica de Paulo, reaparece na figura de Oudine, o mágico moderno que desejava descobrir os truques do médium escocês não espírita pertencente a uma linhagem nobre, Daniel Douglas Home, que produzia manifestações ectoplásmicas de mãos que materializavam-se e levitavam-se na presença de assistentes assustados. Richet, o maior fisiologista do século, à maneira de Tomé, não acreditava na ressurreição e tocou as chagas da verdade crucificada com a ponta dos dedos. Crawford, professor de mecânica da Universidade de Belfast, descobria a alavanca de ectoplasma com que os fenômenos de levitação se produziam. Conan Doyle tornava-se o Apóstolo dos Gentios entre os povos africanos. Ochorowicz desdobrava, sem saber como nem por quê, o corpo da médium Stanislava. Shrenck-Notzing descobria os processos de emissão e reabsorção do ectoplasma pelos médiuns e obtinha as primeiras análises de laboratório, em Berlim e Viena, sobre a constituição física dessa estranha matéria orgânica.

A luta contra o Cristianismo só se tornou eficaz quando os adeptos se deixaram fascinar pelo já agonizante Império Romano. Graças a essa fascinação o Império conseguiu submeter o Cristianismo ao seu serviço e o desfigurou em pouco tempo. No Espiritismo temos agora a técnica semelhante do Império das Trevas, organizado nas regiões inferiores do mundo espiritual, onde os espíritos apegados à matéria, revestidos de corpo espiritual em que os elementos materiais predominam, continuam a viver em condições terrenas. População maior do que a encarnada na crosta do planeta, essas entidades disputam as almas ignorantes e vaidosas das fileiras espíritas e as utilizam como instrumentos de confusão no meio doutrinário. As mistificações mais grosseiras são aceitas por esses adeptos vaidosos, que chegam à extrema audácia de aviltar os textos da Codificação Kardeciana e tentar substituí-los por obras eivadas de contradições e absurdos de toda a espécie. Ao invés de procurarem instruir-se melhor em seus conhecimentos, pretendem transformar-se em novos reveladores de mistérios assombrosos. Há várias correntes já formadas no meio espírita, contra as quais as pessoas sensatas precisam precaver-se. É claro que essas mistificações de homens fátuos e espíritos inconseqüentes serão varridas pela evolução, mas até que isso aconteça haverá tempo suficiente para que muitas criaturas ingênuas sejam envolvidas em processos obsessivos. Todo espírita consciente de suas responsabilidades humanas e doutrinárias está no dever intransferível de lutar contra essas ondas de poluição espiritual que pesam na atmosfera terrena. Ninguém tem o direito de cruzar os braços em nome de uma falsa tolerância que os levará à cumplicidade. Os próprios e infelizes corifeus e propagadores dessas teorias ridículas são os mais necessitados de socorro. É legítima caridade repelir todas essas fantasias em nome da verdade, mesmo que isso magoe os companheiros iludidos. A tolerância comodista dos que vêem o erro e se calam é crime que terá de ser pago no futuro. Quem pactua com o erro para não criar problemas está, sem o saber, enleando-se nas teias sombrias da mentira, compromissando-se com os mentirosos. E esse compromisso é um desrespeito a todos os que se sacrificaram no passado e se sacrificam no presente para ajudar a Humanidade na defesa dos seus direitos evolutivos. Este é o momento grave da evolução terrena em que não podemos esquecer a advertência de Jesus: Seja o teu falar sim, sim; não, não. Multidões de criaturas foram sacrificadas no passado para que a Humanidade se libertasse de seus enganos e pudesse encontrar os caminhos limpos da verdade, ou seja, das coisas reais, verdadeiras, que nos conduzem ao saber e à liberdade. Se trairmos hoje, comodistamente, esses mártires inumeráveis, estaremos conspurcando a dignidade humana, cobrindo de lixo as sendas da verdade abertas pelo Cristo e agora reabertas pelo Espírito da Verdade através de Kardec.

Trocar o ensino puro do Mestre pelas bugigangas de camelôs vaidosos é fazer o papel dos porcos da parábola, que rejeitam as pérolas e avançam, raivosos contra quem as oferece. Palavras duras, sem dúvida, mas que foram usadas por Jesus para despertar as almas empedernidas. Não há mais lugar para comodismos, compadrismos, tolerâncias criminosas no meio espírita. Cada um será responsável pelas ervas daninhas que deixar crescer ao seu redor. É essa a maneira mais eficaz de se combater o Espiritismo na atualidade: cruzar os braços, sorrir amarelo, concordar para não contrariar, porque, nesse caso, o combate à doutrina não vem de fora, mas de dentro do movimento doutrinário.

A mais ridícula mistificação da doutrina, o Roustainguismo, continua a dominar a Federação Espírita Brasileira, que reedita e propaga, sustenta e defende a obra Os Quatro Evangelhos. Jean-Baptiste Roustaing, advogado em Bordeaux, na França, publicou essa obra no tempo de Kardec. O mestre a examinou e criticou com paciência cristã. Depois dele, muitos outros espíritas lúcidos e cultos denunciaram as incongruências dessa obra, decalque e deformação da obra Kardeciana. O próprio advogado explicou no prefácio da obra, com a ingenuidade típica dos fascinados, as condições precárias de saúde em que se encontrava quando a recebeu, depois de evocações temerárias. A mecânica da mistificação foi exposta ao público pela própria vítima. Roustaing é o anti-Kardec, mente confusa, misticismo beato e portanto vulgar, crendice popularesca, falta absoluta de critério científico, desprezo pelos dados históricos, mitologia arcaica, raciocínio confessadamente avariado, aceitação pacífica de teses clericais obscurantistas, posições anedóticas na explicação dos fatos evangélicos (a falsa gravidez de Maria, Jesus-menino fingindo que sugava o seio da mãe e devolvendo-lhe magicamente o leite aos vasos sanguíneos em forma de sangue, espíritos superiores reencarnando em mundos inferiores como criptógamos carnudos, em forma de lesmas em carne humana e assim por diante). Um montão de ridicularias que se repetem nos cansativos volumes da obra num ritornelo[3] desesperante. E homens de cultura regular (não pode ser superior) a vangloriar-se dessas tolices a ponto de considerarem a FEB como – pasmem as criaturas de mediano bom-senso – como a Casa-Máter do Espiritismo. Ignoram certamente a existência histórica da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e todo o trabalho exaustivo de Kardec. Várias Federações Estaduais atrelaram-se ao carro funerário dessa Mistificação.

A Federação Espírita do Estado de São Paulo, considerada durante anos como instituição bem orientada, passou por períodos de aceitação e estudo das obras de Ramatis, eivadas de pretensões paranóicas e teorias absurdas sobre Jesus, sobre a mediunidade, sobre práticas mágicas, carregadas de afirmações ridículas sobre o passado da Terra, a existência da Atlântida, as relações de vidas anteriores de Jesus e Maria Madalena e assim por diante. Recentemente, depois do escândalo da adulteração de O Evangelho Segundo o Espiritismo, depois de dez anos de ausência, O Livro dos Espíritos, obra fundamental da doutrina, reapareceu nos cursos de algumas casas, como novidade. Kardec havia sido cassado por estar superado. Onde a convicção, a fé, a certeza racional dos princípios doutrinários, hoje cientificamente comprovados, andaram nesse longo intervalo de vacilações e de apego a obras dessa espécie?

Bastam esses fatos para nos mostrar que o Espiritismo é o Grande Desconhecido dos próprios espíritas. E é por isso, por causa dessa negligência imperdoável no estudo da doutrina, que os próprios adeptos se transformaram em eficientes instrumentos de combate ao Espiritismo. As pessoas de bom-senso e cultura se afastam horrorizadas de um meio em que só poderiam permanecer em ritmo de retrocesso ao condicionamento das crendices e do fanatismo. No campo científico o nada não existe nem pode existir. E como a base da doutrina é a Ciência, a sólida base dos fatos, a verdade incontestável é que o nosso movimento espírita não tem base. Se os espíritas conscientes não se dispuserem a uma tentativa de reconstrução, de reerguimento desse edifício em perigo, ficaremos na condição de nababos que desprezam as suas riquezas por incompetência para geri-las. Temos nas mãos a Ciência Admirável que o Espírito da Verdade propôs a Descartes e mais tarde confiou a Kardec. Mas do que vale a ciência e o poder, a fortuna e a glória, se não formos capazes de zelar por tudo isso e nem mesmo de compreender o que possuímos? Nós mesmos abrimos o portal da muralha e recolhemos, alegres e estultos, o Cavalo de Tróia em nossa fortaleza inexpugnável.

Os homens, em geral, não conhecem o ritmo de execução das programações divinas. Mas os espíritas, em particular, não podem desconhecê-lo. Sabem que a Terra não é um mundo perdido no espaço sideral, mas regido pelas leis naturais no âmbito de uma vasta programação para o desenvolvimento da galáxia em que se inclui. Podemos falhar na crosta terrena por nossa incúria e despreocupação, mas nos computadores cósmicos os Espíritos Superiores zelam pelo cumprimento dos desígnios de Deus. Desde meados do século passado fomos avisados, através de mensagens dirigidas a Kardec, de que a evolução terrena começara a se acelerar com a chamada Guerra da Itália e avançaria irresistivelmente através de guerras e convulsões sociais, revoluções científicas e morais, num ambiente de tensão em que os valores de uma civilização, coitada, feita de arrebiques, ruiriam aos impactos das grandes transformações. Kardec perguntou, preocupado, se haveria convulsões geológicas devastadoras. Os Espíritos responderam que não se tratava disso, mas de profundas convulsões morais que sacudiriam todas as nações. O estudo dessas mensagens mostrou-nos que o período anunciado abrangeria todo o século XX, numa espécie de revisão febril de toda a realidade planetária. Hoje vemos, próximo ao fim do século, que a programação se cumpriu e se acelera o seu ritmo cada vez mais, como devêssemos entrar no terceiro milênio da Era Cristã com a velocidade de um foguete espacial. Não temos motivos para duvidar daquilo que vemos com os nossos olhos e sentimos na nossa pele. Não podemos também duvidar da realidade da pequena parte da programação que nos foi revelada e realmente se cumpriu. Sabemos, portanto, com segurança, que estamos entrando na Era Cósmica, nessa era nova em que a Terra entrará no sistema cósmico de relações dos mundos. Mas se não tomarmos consciência disso e não procurarmos cumprir os nossos deveres, seremos substituídos e passaremos à condição de povos deserdados. Nosso apego doentio aos bens perecíveis nos farão incapazes de tratar dos bens do espírito, que temos negligenciado.

Sabemos claramente que estamos divididos, embora materialmente fundidos no plano material e semi-material, numa grande mistura de graus evolutivos. A lei das migrações cósmicas poderá lançar-nos, em grande parte, a mundos dolorosos de reajuste e recuperação, enquanto a parte evoluída de nossa humanidade continuará na Terra, auxiliada por contingentes de povos mais aptos e responsáveis.

Não se trata de uma ameaça nem de um castigo, mas apenas do que poderíamos chamar medidas administrativas em nosso próprio benefício. Temos exemplos constantes dessas medidas na colheita diária que a morte realiza sem cessar ao nosso redor. Vemos, pelas comunicações dos espíritos em nossas sessões de doutrinação e desobsessão, onde a maioria dos mortos comparece em situação precária. Foram removidos, aqui mesmo, do âmbito da vida terrena, para regiões de provas a que se adaptam penosamente, sem se conformarem de não haver encontrado as regiões felizes com que sonhavam. Temos ainda o aviso das mensagens psicográficas, em que se destacam as recebidas por Chico Xavier, ora estimulando o nosso esforço na compreensão e no bem, ora advertindo-nos quanto às dificuldades encontradas pelos que perderam o seu tempo.

Os filósofos que pesquisaram o problema da consciência humana, e particularmente Wilhelm Dilthey, que tratou particularmente da transição da consciência pagã para a consciência cristã, ressaltaram a importância do conceito de Providência Divina, formulado pelo Judaísmo. Os deuses pagãos eram mitos copiados da própria psique humana. Tinham a leviandade e a displicência dos homens. Intervinham nas suas disputas, participavam das suas guerras, conquistavam as mulheres e as filhas dos homens, usavam de discriminações injustas e pouco se importavam com os problemas superiores. Iavé, o deus judeu, era também um deus pagão dotado de todos os defeitos dos demais. Mas interessou-se pelo destino do seu povo e assumiu o seu comando, pelo que foi chamado de Deus dos Exércitos. Jesus aproveitou-se dessa oportunidade, espécie de abertura na concepção inferior dos deuses, para dar ênfase à intervenção divina nas questões humanas. O conceito superior do Deus-Pai, vigilante e providencial, gerou e abriu possibilidades à compreensão da Providência Divina, pela qual Deus – Único e Absoluto – surgia como o orientador dos povos. Essa idéia da Providência, juntamente com o conceito grego do Logos ou Razão Divina e o conceito romano de Justiça, constituem, segundo Dilthey, os elementos naturais da consciência universal criada pelo Cristianismo. A preocupação com os mundos siderais, existente nas civilizações astrológicas, tomou aspecto mais positivo e racional no Cristianismo, dando nascimento à idéia da pluralidade dos mundos habitados. As referências de Jesus às muitas moradas da casa do Pai reforçou poderosamente essa visão cósmica, já bem assinalada na Filosofia de Pitágoras, com sua teoria da Música das Esferas no Infinito. A posição racional de Jesus, não obstante o clima místico e mitológico da época, repercutiu no Renascimento e definiu-se em plano científico com as contribuições de Galilei e Copérnico. No Espiritismo o problema tomou corpo e se impôs de maneira decisiva, com as numerosas comunicações mediúnicas referentes a outros mundos. Kardec incluiu em O Livro dos Espíritos a famosa Escala dos Mundos e o astrônomo Camille Flammarion, médium psicógrafo que trabalhava com Kardec, publicou o livro Pluralidade dos Mundos Habitados, que teve grande repercussão em todo o mundo. O teatrólogo Victorien Sardou recebeu, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, numerosos desenhos, assinados por Bernard Pallissy e Mozart, referentes a Júpiter, considerado como o mundo mais adiantado do nosso sistema solar. A teoria das migrações planetárias, dada mediunicamente por espíritos elevados, completou esse quadro do Universo habitado em todas as suas dimensões e da chamada solidariedade dos mundos, pela qual os mais adiantados auxiliam o progresso dos mundos inferiores. As migrações ocorrem nas fases de grandes e profundas transformações culturais nos mundos, com a providência administrativa da transferência de populações de um mundo para outro, facilitando o progresso de populações retardatárias.

O avanço atual das pesquisas cósmicas vem confirmando a teoria espírita a respeito, de maneira lenta, mas segura. Kardec declarou que o Espiritismo não é Astronomia, mas Ciência do Espírito, e que deve esperar dos astrônomos a solução positiva do problema. O desenvolvimento da Astronáutica reforçou em nossos dias essa posição Kardeciana. Flammarion observou que o princípio da reencarnação é corolário do princípio de pluralidade dos mundos habitados.

A posição de Kardec no século XIX foi a de intelectual europeu bem integrado na cultura da época, preocupado com a solução dos problemas do mundo através da Educação. Embora pertencesse a uma família tradicional de Lyon, formada de advogados e magistrados, sua vocação o levou para os estudos científicos e educacionais. Feitos os estudos iniciais em sua cidade natal, os pais o enviaram à Suíça para completar sua formação no Colégio de Yverdun, com Pestalozzi. Integrou-se na linha do pensamento pestaloziano, de um humanismo aberto e universalista que tinha suas raízes em Rousseau. Aprofundou-se no estudo das ciências médicas e clinicou em Paris, como atesta o seu amigo Henri Sausse, confirmado pelas pesquisas recentes de André Moreill, mas voltou-se em definitivo para a Pedagogia, dando continuidade aos trabalhos de Pestalozzi. Teve suas obras adotadas pela Universidade de França e exerceu nela o cargo de diretor de estudos. Viveu pobre e solitário num modesto apartamento da Rua dos Martyres, em Paris, tendo-se casado com a professora Amellie Boudet, da qual não teve filhos. Vida de trabalho, tranqüila e morigerada, bem conceituado nos meios culturais da França por sua cultura, seu bom-senso, sua seriedade e dedicação ao trabalho. Escritor de idéias amplas e mente arejada, possuía o estilo didático que se pode apreciar em suas obras. Nunca pretendeu ser um messias ou fundador de religião, segundo informam até hoje alguns dicionários enciclopédicos mundiais. Seu nome civil era Léon Hyppolyte Denizard Rivail, com que assinou suas obras universitárias e o famoso estudo que fez para uma remodelação do Ensino na França. Ao entregar-se à pesquisa dos fenômenos espíritas e organizar O Livro dos Espíritos, adotou o pseudônimo de Allan Kardec, para estabelecer a necessária distinção entre suas obras pedagógicas e seus livros espíritas. O pseudônimo lhe foi sugerido por seu espírito orientador, que lhe disse haver sido o seu nome na encarnação anterior, como druida, ou seja, sacerdote celta na Gália. Fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, para pesquisas, a Revista Espírita para divulgação e sustentação do Espiritismo, e no espaço de quinze anos codificou a Doutrina Espírita e universalizou o movimento doutrinário. Começou as investigações espíritas em 1854 e faleceu subitamente em 1869, deixando concluídas suas obras fundamentais da doutrina, que exerceram a função de uma introdução geral a toda a problemática do Século XX.

Kardec teve contra ele e suas idéias as forças conjugadas da segunda metade do século passado. A coleção da Revista Espírita, traduzida integralmente em São Paulo pelo engenheiro Júlio Abreu Filho, foi lançada pela Editora Cultural Espírita (EDICEL) em doze volumes de 400 páginas em média cada um. O tradutor concluiu o seu trabalho exaustivo em condições precárias de saúde, falecendo pouco depois. Dedicou-se extremamente a esse trabalho, mas seu estado de saúde não lhe permitiu atingir a perfeição desejada. A EDICEL convocou uma comissão de estudiosos do assunto para revisar todo o trabalho, constituída pelos Professores J. Herculano Pires, J. A. Chaves, Miguel Mairt e Anne Marie Marcier. Essa comissão não chegou a concluir toda a revisão. O primeiro incumbiu-se de traduzir em versos as numerosas poesias do texto, que Júlio traduzira em prosa. As poesias traduzidas foram publicadas na Revista em seu texto original francês e na tradução portuguesa em disposição paralela, para verificação e comparação dos leitores. São poemas de notável beleza, psicografados por diversos médiuns, e poemas de poetas espíritas, entre os quais uma série curiosa de um leitor da Revista, Sr. Dombe, que se tornou o fabulista espírita clássico de Esopo. Kardec estabeleceu a linha epistemológica da doutrina na seqüência lógica: Ciência, Filosofia e Religião, admitindo esta última como Moralidade, segundo a concepção de Pestalozzi, rejeitando a sua comparação com as religiões formalistas e dogmáticas. A Religião Espírita é livre e aberta, sem sacerdócio nem sacramentos, apoiada nas conquistas científicas e nos desenvolvimentos da Filosofia, buscando a verdade que só pode ser obtida pela adequação do pensamento à realidade comprovada pelos fatos cientificamente provados.

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Ficha de Identificação Literária

J. HERCULANO PIRES nasceu em 25.09.1914, na antiga Província do Rio Novo, hoje Província de Avaré, Zona Sorocabana e desencarnou a 09.03.1979, em São Paulo. Filho do Farmacêutico José Pires Corrêa e da pianista Bonina Amaral Simonetti Pires. Fez seus primeiros estudos em Avaré, Itaí e Cerqueira César. Revelou sua vocação literária desde que começou a escrever. Aos 9 anos fez o seu primeiro soneto, um decassílabo sobre o Largo São João, da cidade natal. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonhos Azuis (contos), e aos 18 o segundo livro, Coração (poemas livres e sonetos). Já possuía seis cadernos de poemas na gaveta, colaborava nos jornais e revistas da época, da província de São Paulo e do Rio. Teve vários contos publicados com ilustrações na Revista da Semana e No Malho. Foi um dos fundadores da União Artística do Interior, que promoveu dois concursos literários, um de poemas, pela sede da UAI em C. César, e outro de contos, pela Seção de Sorocaba.

Mário Graciotti o incluiu entre os colaboradores permanentes da seção literária de A Razão, em São Paulo, que publicava um poema de sua autoria todos os domingos. Transformou (1928) o jornal político de seu pai em semanário literário e órgão da UAI. Mudou-se para Marília em 1940 (com 26 anos), onde adquiriu o jornal Diário Paulista e o dirigiu durante seis anos. Com José Geraldo Vieira, Zoroastro Gouveia, Osório Alves de Castro, Nichemja Sigal, Anathol Rosenfeld e outros promoveu, através do jornal, um movimento literário na cidade e publicou Estradas e Ruas (poemas) que Érico Veríssimo e Sérgio Milliet comentaram favoravelmente. Em 1946 mudou-se para São Paulo e lançou seu primeiro romance, O Caminho do Meio, que mereceu críticas elogiosas de Afonso Schimidt, Geraldo Vieira e Wilson Martins. Repórter, redator, secretário, cronista parlamentar e crítico literário dos Diários Associados. Exerceu essas funções na Rua 7 de Abril por cerca de trinta anos. Autor de oitenta livros de Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Parapsicologia e Espiritismo, vários de parceria com Chico Xavier, e lançou recentemente a série de ensaios Pensamento da Era Cósmica e a série de romances e novelas Ficção Cientifica Paranormal. Alegava sofrer de grafomania, escrevendo dia e noite. Não tinha vocação acadêmica e não seguia escolas literárias. Seu único objetivo era comunicar o que achava necessário, da melhor maneira possível. Graduado em Filosofia pela USP, publicou uma tese existencial: O Ser e a Serenidade.

FIM

Notas:


[1] Sentimento de má vontade, aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção, um ressentimento

[2] Sabre de lâmina curta e larga, com o fio no lado convexo da curva.

[3] Qualquer coisa que se repete ou se reproduz em demasia.