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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Concepção Existencial de Deus-J. Herculano Pires

 

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J. Herculano Pires

Concepção Existencial de Deus

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Frederic Church

O Rio de Luz

Conteúdo resumido

Nesta obra, Herculano tenta, ousadamente, fazer uma definição do Ser Onipotente, criador e sustentador do Universo.

Em princípio, essa é uma pretensão descabida, visto que somos apenas criaturas ínfimas, praticametne no início do processo de evolução espiritual.

Mas a obra nos demonstra que, dentro de nossas possibilidades humanas, conhecendo a grandeza da criação, nós poderemos ter uma minúscula idéia da grandeza do Criador.

Ademais, o ser espiritual é um átomo da essência de Deus, que tem o objetivo de evoluir até Ele, através das milhares de alternâncias entre a vida material e a espiritual. Não seria, então, o mais agradável de todos os desafios conhecer uma face, a mais minúscula que fosse, da essência dAquele que é a Causa de nossa existência?


Prefácio
Uma Conversa sobre Deus

Com uma capacidade indiscutível de falar sobre o complexo de maneira simples, Herculano Pires enfrenta neste livro o desafio do tema que se expressa no próprio título: a Concepção Existencial de Deus. Vai o autor abordar o Absoluto, o Criador, na feliz tentativa de colocá-lo em termos humanos, daquilo que existe, que é, e fugir, portanto, das abstrações incapazes de lhe dar um rosto. “Deus – afirma ele – como Existente, que existe na nossa realidade humana, pode ser tocado com os dedos e sentido, captado pelo nosso sensório comum”. O desafio de Herculano, contudo, corre como um rio para o perigoso e estreito campo do antropomorfismo, onde Deus foi confundido com a imagem do homem e transformado, ele mesmo, em homem. Ao dar-lhe esse rosto coerente com a filosofia espírita, o rosto do Existente, que pode ser valorizado pelo trato da lógica, do bom senso, ao contrário de confundi-lo com o ser finito fisicamente. Herculano vai torná-lo exatamente um pouco mais compreensível aos sentidos humanos, aproximando-o mais do mundo terreno e daqueles que o habitam, como nós. Eis, então, que “não necessitamos da percepção extra-sensorial para captar sua existência”, porque podemos vê-lo na sua obra, com a visão elaborada do poeta ou a visão prática do homem simples; a partir dos cálculos e métodos do cientista ou depois das experiências cotidianas daqueles que, também existentes, percebem, sem qualquer possibilidade de elaboração filosófica mais apurada, um Existente a presidir a vida em todos os sentidos.

Herculano, aqui, como em tantos outros momentos de sua vida intelectual fecunda, ao mesmo tempo em que combate o erro inominável das religiões, ou seja, essa dupla tentativa frustrante de “apresentar Deus como enigma insolúvel e exigir que o amemos de todo o coração e de todo o entendimento”, empreende o esforço de refletir sobre a “concepção existencial de Deus, entendido este não mais como elaboração imaginária dos homens deslumbrados pelo esplendor da Natureza, mas como necessidade lógica e ôntica da compreensão do real”. Tudo isto para alcançar uma síntese de valorização da consciência humana ou, melhor dizendo, uma capacitação dessa consciência para a própria visão de mundo que cada um constrói. E a síntese de Herculano se expressa nessa conseqüência. “Ao homem-existente junta-se necessariamente, e portanto de maneira inegável e indispensável, o Deus-Existente, cuja imagem absoluta se reflete na pluralidade humana”. Deus existe assim como o homem existe, mas trata-se de uma realidade que se objetiva pelas relações que se estabelecem entre ambos em contextos maiores e menores. Assim como o senso comum admite hoje, sem maiores complicações, que o homem não pode ser compreendido fora do social, assim também Herculano vai demonstrar que este mesmo homem “não pode ser explicado fora do contexto natural do Cosmo” sem os limites e os universos que a mentalidade relativizada ainda lhe impõe.

Wilson Garcia


Deus Existe?

Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, são anjos rebelados e decaídos do Paraíso Medieval. Nesta fase de inquietações e contradições que marca os flancos bovinos do Século XX com imenso sinal de interrogação em ferro e em brasa, a tese da Morte de Deus, oriunda da II Guerra Mundial e inspirada no episódio do louco de Nietzche, anuncia a liquidação final do espólio medieval no pensamento contemporâneo. Os bens desse espólio se constituem dos imóveis patrimoniais de um Cristianismo deformado, com as suas catedrais gigantescas, a estrutura econômico-financeira do Vaticano, os artigos da velha simonia contra a qual Lutero se rebelou e os inesgotáveis lotes de quinquilharias sagradas, vestes e paramentos ornamentais, símbolos e dogmas das numerosas Igrejas Cristãs. Essa a razão por que, matando Deus, os novos teólogos pretendem colocar o Cristo provisoriamente em seu lugar. A imensa literatura religiosa medieval, que superou de muito os absurdos dos sofistas gregos, destina-se ao arquivo milenar da estupidez humana.

O Materialismo e o Ateísmo do Renascimento, acolitados pelo Ceticismo, o Positivismo e o Pragmatismo, formam o cortejo do féretro gigantesco e sombrio, manchado de cinza e sangue, da pavorosa arrogância em que se transformou a pregação de humildade, os exemplos de tolerância e simplicidade do Messias crucificado. É o lixo do famoso Milênio, carreado para a Porta do Monturo do Templo de Jerusalém, para ser lançado nas geenas ardentes. Dispensa-se o inventário, porque não sobraram herdeiros. Nenhuma civilização morreu de maneira mais inglória do que essa, em que Deus figurou como o carrasco impiedoso da Humanidade ingênua e ignorante.

Apesar da rudeza dessa visão trágica, assim pintada em cores fortes na tela de um pintor primitivista (bem ao gosto do século), ela não implica a negação da necessidade histórica da Idade Média. Pelo contrário, o fundo histórico desse panorama, na perspectiva tumultuada das civilizações da mais remota antiguidade, todas fundadas na força, na violência e nos arbítrios das civilizações massivas que vêm da lendária Suméria até a Macedônia e a Pérsia, projetando-se num impacto em Esparta e Roma, e um clarão de beleza e consciência em Atenas (que também não escaparia aos eclipses da escravidão e da execução de Sócrates) justificam histórica e antropologicamente a tragédia humana desses séculos de primarismo e barbárie que sucederam ao estranho advento do Cristianismo. Nada se pode condenar nesse panorama monstruoso, em que as idéias cristãs, renovando tímidos lampejos de esperanças frustradas e revigorando-os na visão de esperanças futuras, penetravam na massa e a ela se misturavam como o fermento da parábola evangélica. As leis naturais da evolução criadora, segundo a expressão de Bergson e de acordo com a tese dialética de Hegel, levavam ao fogo de Prometeu (roubado ao Céu) o caldeirão implacável das fusões dantescas, na percepção intuitiva de Wilhelm Dilthey, os elementos conjugados das civilizações mortas. Os deuses mitológicos eram caldeados nas próprias chamas votivas de seus templos, fundindo-se com Iavé, o Deus Único dos hebreus, para modelagem futura do Deus Cristão, que nascera da palavra mágica do Messias: Pai.

Mas até que os homens pudessem compreender o sentido dessa breve palavra, desse átomo oral, os detritos ferventes do caldeirão medieval teriam de escorrer pelas muralhas do preconceito e da ignorância, queimando o solo do planeta e a frágil carne humana. Não é de admirar que as atrocidades da II Guerra Mundial tenham feito o mesmo. Em meados do Século XX estávamos ainda bem próximos das fogueiras da Inquisição e dos instintos ferozes dos antigos sátrapas das civilizações massivas, monstruosas expansões das tribos bárbaras, em que os ritos do sangue e do ódio ao semelhante purificavam a túnica dos sacerdotes e das vestais, manchadas pelos sacrifícios humanos e pela prostituição sagrada nos altares e nas escadarias dos templos. Os abutres da guerra devoravam Prometeu em cada vítima da loucura hitlerista e chafurdavam na prostituição sagrada dos mitos da violência, essa Górgora terrível e insaciável do Jardim das Hespérides nazista. A histeria e o sadismo, a brutalidade e o homossexualismo campeavam livres nas guarnições de heróis, como um Estige de lamas que escorresse do Fuherer para a Alemanha, asfixiando as mais belas conquistas da sua tradição cultural a invadir e contaminar as nações vencidas. Os campos de concentração e suas câmaras de gás destruíam a confiança no homem, revelavam a falência do Humanismo e a fé em Deus nas cinzas das incinerações brutais. Na Itália dos poetas e cantores tripudiavam os asseclas do Duce, submisso ao Fuherer, e no Japão das cerejeiras e dos Kaikais o fanatismo dos kamikazes desafiava a insensibilidade de Truman, que não tardou a lançar suas bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima, no mais monstruoso genocídio da História.

Não nos é possível sequer conceber o Nada, o vazio absoluto, do qual Deus teria saído como o Ser Absoluto. Tirar o Absoluto do Nada é uma contradição que nosso entendimento repele. A existência de Deus, como anterior à Criação é inconcebível. E se algo existia antes, temos um poder criador anterior a Deus. A tese budista do Universo incriado, que sempre existiu, subordina o poder de Deus a essa existência misteriosa e inexplicável. Nos limites da nossa mente esses problemas não cabem, são mistérios que serviram para todos os sofismas, jogos de palavras e conclusões monstruosas do pensamento teológico. Mas quando aplicamos o bom-senso, com a devida modéstia de criaturas finitas e efêmeras, diante do Infinito e da Eternidade, podemos reduzir o ilimitado aos limites da realidade inteligível. Então o raciocínio dedutivo, de ordem científica, que parte do chão da existência evidente, para alcançar pouco a pouco as alturas acessíveis, nos coloca diante de uma realidade que podemos dominar. Deus como Existente, que existe na nossa realidade humana, pode ser tocado com os dedos e sentido, captado pelo nosso sensório comum. Não necessitamos da percepção extra-sensorial para captar sua existência. O grande erro das religiões é apresentar Deus como enigma insolúvel e exigir que o amemos de todo o coração e todo o entendimento. Essa colocação contraditória levou-as a um absurdo ainda maior, o de transformar Deus num tirano sádico que nos criou para submeter-nos à tortura e à perdição. Por mais que se fale em amor, misericórdia e piedade, essas palavras nada valem diante das ameaças da escatologia religiosa.

Mas Deus como Existente é o Pai que Jesus nos apresenta em termos racionais, pronto a nos guiar e amparar, a nos dar pão e não cobras quando temos fome e a nos convidar incessantemente para o seu Reino de Harmonia e Beleza. Se podemos percebê-lo em nós mesmos, na nossa consciência e no nosso coração, se podemos vê-lo em seu poder criador numa folha de relva, numa flor, num grão de areia e numa estrela, se podemos conviver com ele e sentarmos com ele à mesa e partir o pão com os outros, então ele realmente existe em nossa realidade humana e o podemos amar, e de fato o amamos de todo o coração e de todo o entendimento. Deus como Existente é o nosso companheiro e o nosso confidente. Não dependemos de intermediários, de atravessadores do mercado da simonia para expor-lhe as nossas dificuldades e pedir a sua ajuda. A existência de Deus se prova então pela intimidade natural (não sobrenatural) que com ele estabelecemos em nossa própria existência.

Diante desse quadro horripilante, e particularmente dentro dele, nada mais se poderia esperar dos crentes e dos teólogos do que a pergunta amarga e geralmente irônica: Deus existe? Na Antiguidade os sátrapas eram considerados como investidos de prerrogativas divinas. Tudo quanto faziam vinha de Deus e a crendice popular não se atrevia a discutir os direitos humanos ante o perigo sempre iminente da Ira de Deus. Mas após o Renascimento, a Época das Luzes, a crendice transformou-se em crença sofisticada pelas racionalizações abusivas. O homem moderno escorava a sua fé no conceito hebraico da Providência, sempre vigilante e pronta a socorrer a fragilidade humana. Esse homem não poderia suportar a catástrofe que se abatia sobre ele de maneira implacável, ante a mudez comprometedora do Céu. Sua razão aprimorada condenava o passado e jamais supusera possível a sua ressurreição brutal, sob as asas metálicas dos aviões de bombardeio e das bombas voadoras. O ateísmo do passado parecia-lhe agora uma simples atitude pedante. O seu ateísmo, o seu materialismo e o seu pragmatismo, pelo contrário, assentavam-se agora nas bases sólidas de um horror que o deixara só e frágil em face dos carrascos poderosos. Os velhos teólogos não podiam explicar a indiferença divina, o desprezo de Deus pelas suas criaturas que, segundo eles, haviam sido criadas por amor. Os novos teólogos só encontraram uma explicação possível: a Morte de Deus.

Entretanto, por mais esmagado que esteja, o homem não pode ficar sem uma luz de esperança. Os novos teólogos lhe ofereceram então a figura humana de Cristo. Um Deus histórico, existencial, que sofrera e morrera por ele aqui mesmo, na Terra dos Homens. Não foi uma solução pensada, mas nascida das entranhas da desgraça total, das entranhas do horror. Homens que cresceram e se formaram nas crenças em Deus, alimentados pelas ilusões teológicas do Cristianismo, cobravam agora do Cristo as suas promessas frustradas. Ele, o Cristo, assumiria o lugar vazio de Deus em termos de emergência. Foi dessa situação premente que surgiu a aventura do Cristianismo Ateu. Por isso, quando lemos os livros brilhantes dos novos teólogos, transbordantes de uma inteligência vibrátil, mas impotente, que não consegue nem mesmo esclarecer o que é a Morte de Deus, perdendo-se em rodeios e sofismas que nunca atingem uma definição, compreendemos o desespero total a que chegou a inteligência humana ante os enigmas existenciais deste fim dos tempos. Na proporção em que a rotina da vida se restabelece no mundo arrasado, recompondo-se aos impulsos naturais da vitalidade humana, os tempos negros esmaecem na distância, introjetando-se na memória profunda da espécie como arcanos do inconsciente. As forças da vida reagem contra a destruição e a morte, a ponto de fazerem brotar redivivas – indiferentes às ameaças maiores que pesam no horizonte – as flores de antigas e esmagadas esperanças. Queremos todos confiar, queremos todos esperar.

Mas isso não acontece apenas pelo influxo das forças vitais. Acontece sobretudo pela certeza íntima, que todos trazemos em nós, de que cometemos um erro imperdoável ao alimentar nas gerações sucessivas um conceito falso de Deus. Muitas vezes essa certeza aparece como simples suspeita, desprovida de provas que lhe dêem validade ôntica. Mesmo assim ela nos sustenta no presente e nos faz esperar. Os reflexos dessa situação ocidental no Oriente não-cristão provocaram o mesmo abalo e a mesma desconfiança que sentimos. Os mestres indianos, os gurus e bonzos que viviam isolados em seu orgulhoso ascetismo, ciosos de seus segredos milenares, fizeram-se caixeiros viajantes perfumados e sorridentes, assessorados por técnicos em relações públicas, para venderem aos ocidentais os mistérios sagrados. Essa atitude, embora não seja geral, revela a suspeita insidiosa no inconsciente guru quanto à validade tradicional de suas técnicas religiosas. O pesadelo da guerra e o desespero posterior contribuíram de maneira decisiva para que o mundo se transformasse na Aldeia Global de Mac Luhan. Parece que pelo menos acreditamos todos, no Ocidente e no Oriente, que o mundo de comunicação de massa nos oferece a opção coletiva de esperar sem preocupações, pois todos sabemos que se apertarem os botões da guerra nuclear morreremos na solidariedade absoluta. A destruição não será mais tão dolorosa e lenta. Seremos aniquilados de um só golpe, na morte tecnológica.

Deus ressurge, se não no seu amor, ao menos na sua Justiça. Já será um consolo para os que sempre sofreram e morreram, enquanto outros vivem felizes no uso e abuso dos bens terrenos. A idéia de um Pai todo poderoso, e no entanto insensível à miséria e ao sofrimento da maioria dos filhos, sempre perturbou os que pensam e levou muitas criaturas à revolta e à descrença. De duas, uma: ou aceitavam a injustiça ou não admitiriam a existência de Deus. Bastaria isso para nos mostrar que o conceito de Deus, formulado pelas religiões e sustentado a ferro e fogo através dos milênios, não pode estar certo. Precisamos examinar esse grave problema enquanto não apertam os botões do Juízo Final.


O Existente

Na Filosofia da Existência, que caracteriza o pensamento de nosso século, o homem é considerado como o existente. É nele que se procura descobrir o mistério do Ser, porque é ele o ser mais acessível à investigação ontológica. A partir da sua análise, não apenas em termos psicológicos, mas na visão de conjunto de toda a sua realidade ôntica, é que podemos partir para indução do conceito real do Ser. É uma subversão filosófica, um virar no avesso os processos tradicionais da dedução, para que o pensamento contemporâneo se enquadre no plano do real – o plano dos efeitos e não das causas. O avanço tecnológico mostrou a validade indiscutível do método científico, na pesquisa das leis que determinam a estrutura das coisas, da rés que nos dá o real. Ao invés de atrelar-se da Filosofia ao carro da Ciência, como pretendeu Augusto Comte, os filósofos atuais atrelaram o método dedutivo da Ciência ao método dedutivo do pensamento filosófico, provocando o processo dialético da fusão que resultou no método existencial. O homem, como ponto de encontro do finito com o infinito, de causas e efeitos que nele se conflitam, apresenta-se como a síntese natural de toda a realidade, normal e paranormal. No aqui e agora das Filosofias Existenciais temos o encontro do tempo com a eternidade, que Kierkegaard figurou no instante, o fiat criador da criatura, ou seja, o lapso rapidíssimo do tempo em que o mistério se revela como um impacto, numa espécie de insight não apenas mental, mas total, que abrange toda a potencialidade do Ser. Descartes, como precursor, já revelara esse processo no cogito, ou seja, no instante em que o seu mergulho na cogitação sobre o real lhe revelou a ligação do homem com Deus.

Pai da Ciência, do Método e do Pensamento moderno, Descartes ficou esquecido no processo do deslanche científico, que absorveu o pensamento criador nas minúcias necessárias da investigação objetiva. Mas a sua aventura subjetiva foi o marco de um novo rumo para o pensamento filosófico. O cogito ergo sum (penso, logo existo) foi o abre-te Sésamo da Nova Filosofia. Graças a ele, o pensamento moderno libertou-se das amarras tradicionais para agir com desembaraço na investigação de uma realidade que é una, seqüente e não atomizada nos processos de análise. A fragmentação dos conhecimentos científicos estava barrada pela possibilidade da globalização do pensamento filosófico.

O dogma religioso da Criação arrancada do nada por uma espécie de passe de mágica perdeu o seu poder hipnótico sob os pensadores ainda subjugados pela subserviência medieval, descortinando no Renascimento a visão platônica do Mundo das Idéias, na qual o efeito aparece como reflexo da causa, ligados ambos pela necessidade de ser que é o próprio fundamento do Ser em si mesmo. Todas as figurações absurdas da Teologia caíram no ridículo, como simples invenções.

Resulta daí a concepção existencial de Deus, entendido este não mais como elaboração imaginária dos homens deslumbrados pelo esplendor da Natureza, mas como necessidade lógica e ôntica da compreensão do real. Ao homem-existente junta-se necessariamente e, portanto, de maneira inegável e indispensável, o Deus-Existente, cuja imagem absoluta se reflete na pluralidade humana. A inaceitável imagem de um Deus antropomórfico é imediatamente substituída pela antiimagem de um Deus Absoluto, existente por si mesmo, cuja idéia se reflete na Criação produzindo o homem. A idéia, que para Platão era a própria mônada de que nascem os seres, substitui assim a imagem criada pelos homens. Causa e efeito se distinguem com clareza, não permitindo mais o jogo de sofismas teológicos e filosóficos do passado, em que causa e efeito se confundem e se revezavam nas argumentações falaciosas. Se temos o existente no plano relativo ansiando pela sua própria transcendência, buscando o arquétipo do absoluto, a unidade causa-efeito se confirma no plano ôntico, revelando uma nova dimensão do homem e gerando um novo conceito de Deus. O homem já não pode ser explicado fora do contexto natural do Cosmo, como uma criação artificial e ocasional, espécie de capricho do Criador para uma experiência romântica. E também não cabe mais na medida exígua das concepções materialistas, na colher de pau dos fazedores de bonecos de barro, destituídos de conteúdo e sentido. Restabelecemos a dinâmica simbiótica de Pitágoras, na qual, apesar da figura egípcia da metempsicose, a criatura humana aparecia no processo cósmico de maneira natural. O homem isolado era uma pretensão frustrada, suas dimensões se fechavam no circuito efêmero de berço e túmulo, sem nenhuma perspectiva que pudesse justificar os seus sonhos inúteis. A concepção existencial o projeta no infinito através da transcendência. Por outro lado, a transcendência não se limita a um anseio do homem, pois se revela como lei, como fato verificável, positivo, em todos os elementos da Criação, como na teoria do transformismo de Darwin e na teoria da evolução criadora de Bergson. A ambas Kardec apresenta a contribuição das pesquisas espíritas em termos psicológicos, seguindo-se as contribuições de Zöllner, Richet, Crookes e dos atuais parapsicólogos, inclusive os materialistas da área soviética. O Padre Chardin, no próprio seio da Igreja imutável, lança sua gigantesca teoria da evolução, na linha do pensamento espírita de Léon Denis, com as mesmas bases do critério científico de pesquisa e experimentação de Kardec. O pensamento fixista das instituições imutáveis não passa de um entulho que as correntes poderosas da evolução criadora removem de um golpe.

O conceito existencial de Deus se impõe como conseqüência lógica do conceito existencial do homem. Deus não se torna, por isso, num existente, mas no Existente Arquétipo. Se não nos é possível provar essa existência nas retortas da Química, para satisfazer a ambição das mentalidades de fichário, isso ocorre porque os limites estreitos da metodologia científica não conseguiram e jamais conseguirão abranger a totalidade do real. As próprias transformações da metodologia científica, mormente nos últimos decênios, mostram de sobejo a inadequação dos processos empíricos às exigências da realidade global. Mas o homem não dispõe apenas das antigas retortas e dos modernos computadores; dispõe também do instrumento superior do pensamento perquiridor e criador que o leva muito além do seu próprio sensório e das tentativas de laboratório. Por outro lado, os métodos analíticos da Ciência funcionam eficazmente no plano do sensível, da matéria em sua ilusão concreta; e assim mesmo sob controle matemático, o que vale dizer sob o controle abstrato do pensamento. Alienando-se à ilusão da matéria, os cientistas se fecham nas chamadas realizações concretas. Disso Resulta o desprezo pelo metafísico, para o que muito contribui a ilusão mística dos chamados homens de Deus, como se todos os homens não fossem de Deus. A mente ilusória, fascinada pelas aparências, apega-se a elas e rejeita as intuições de uma visão superior da realidade. A hipnose do fenômeno produz a alienação do homem ao sensório, frustrando-lhe a percepção do número, da causa primária que é a própria essência do fenômeno. O próprio Kant negou-se a penetrar no mistério da clarividência de Swedenborg, apesar das provas espontâneas e evidentes que teve em mãos, e demarcou rigidamente os limites da Ciência, no campo da dialética sensorial, como se a função da Ciência não fosse precisamente a de conquistar os domínios do mistério. É por isso que o progresso material caracteriza nosso século, com a supremacia esmagadora do progresso material sobre o moral e o espiritual. Não obstante, o avanço das pesquisas científicas rompeu a barreira kantiana no próprio campo da Física, quando esta teve de penetrar no mistério da constituição da matéria, que se desfez nas mãos dos cientistas em átomos e partículas infinitesimais, revelando a realidade surpreendente do Véu de Ísis, da trama sutilíssima de vetores inframicroscópicos tecida sobre um fundo radiante de campos de força desconhecida. Logo mais, a descoberta atordoante da antimatéria, a princípio considerada como estranha à Terra, mas logo mais revelando a sua presença no íntimo das estruturas atômicas, deu o golpe de misericórdia na hipnose do fenômeno. Graças a isso, estamos chegando ao fim do século com uma visão mais real da realidade e descobrimos a verdadeira grandeza do homem naquilo que Rhine chamou de conteúdo extrafísico do homem.

Essa revolução conceptual é tão violenta que a maioria dos cientistas sentem-se atônitos e recusam-se a aceitar as novas proposições apresentadas pelos cientistas libertos da hipnose. Em contrapartida, existem os alucinados que se lançam a hipóteses malucas, jogando com os dados ainda inseguros da visão nova da realidade na elaboração de teorias e prognósticos insensatos. De um lado permanecem em catalepsia os que Remy Chauvin considerou como dominados pelo mal científico da alergia ao futuro, de outro lado os que se entregam à nova hipnose da pulverização do real. Para estes, todas as suposições se tornam possíveis ou até mesmo verídicas, ante a derrocada dos pressupostos materialistas em que se apoiavam.

A idéia de Deus, abastardada pelos teólogos, mostra-se mais do que nunca inaceitável. Mas a ordem, a precisão absoluta, a inteligência orientadora e reguladora que se manifesta nas estruturas do real, a conotação das hipóstases de Plotino na organicidade cósmica exigem o conceito científico de Deus como fonte genética e estruturadora de toda a realidade. A existência de Deus não é mais uma questão teológica, aleatória, mas uma exigência científica da coerência do pensamento. Confirma-se a proposição cartesiana de que tirar Deus do Universo é como tirar o Sol do sistema Solar. Cairíamos no caos. nenhum pensamento sobre a realidade pode justificar-se e sustentar-se na ausência de Deus. Mas não do Deus das religiões, que é uma grotesca interpretação de Deus nos traços caricaturais da figura humana, um resíduo da selva, onde os homens desprovidos dos recursos da Ciência, armados apenas de experiências primárias, imaginaram Deus na forma de um super-homem, sem nenhuma consciência do que faziam, mas já sentindo em si mesmos, na sua simplicidade e na sua ignorância, a necessidade urgente de uma concepção de Deus.

O conceito existencial de Deus é uma superação de todo o passado humano, Kierkegaard, o pai involuntário do Existencialismo, era um teólogo e representou em nosso tempo o papel de Pitágoras na Antigüidade, servindo de transição entre o passado teológico e o presente científico da cultura humana. Podemos aplicar-lhe a imagem que Bertrand Russell aplicou a Pitágoras: um homem que tinha um pé no passado e outro no futuro. Do passado mítico das culturas da Antigüidade, Pitágoras avançava para o futuro racional. Por isso, como sucederia mais tarde a Hegel, a posição pitagórica produziu correntes conflitivas no mundo helênico. O mesmo se deu com o pensamento angustiado de Kierkegaard, que arriscava um passo além da Teologia Medieval. Desse passo brotaram as posições antípodas do pensamento de Heidegger e de Sartre, Marcel e Jaspers. Embora o tema central da existência predomine em todas essas correntes, as posições diversas em face dos problemas fundamentais caracterizam orientações muitas vezes divergentes. Para Sartre, Deus não existe. Para Karl Jaspers, Deus é o Ser que buscamos na transcendência vertical. Para Heidegger, o que importa na filosofia é o problema do Ser, sendo a existência apenas um meio de se perquirir a natureza e o sentido do Ser. Max Scherer propôs uma nova prova da existência de Deus como Ser Supremo, acrescentando-a às provas clássicas do pensamento medieval. Scherer entende que o fato de haver um saber a respeito de Deus, saber que só pode ser obtido através de Deus, prova a sua existência. Ocorre, porém, que o saber pode ser falso, o que parece não ter ocorrido ao filósofo. A prova existencial de Deus decorre naturalmente de três fatos incontestáveis:

1) a existência da idéia de Deus no homem, manifestando-se universalmente na lei de adoração, que levou todos os povos, em todos os tempos, à adoração de um Poder Supremo;

2) a inteligência da estrutura total da Natureza, em seus mínimos detalhes, que nos revela a imanência cósmica de um poder inteligente;

3) a lei de causa e efeito, que nos mostra a impossibilidade de efeitos inteligentes sem uma causa inteligente.

Como corolário dessas provas podemos lembrar que essa inteligência imanente manifesta-se em graus progressivos nos reinos da Natureza, para alcançar a culminância no homem. Importante também é o fato de que todo o saber humano nasce da experiência vital do homem, sujeito, desde o seu aparecimento no planeta, aos poderes e aos condicionamentos das leis naturais, que constituem a fonte desse saber. Assim, a inteligência humana tem sua origem na inteligência imanente da Natureza e o saber humano foi adquirido num longo processo de aprendizado do saber da Natureza. Atribuir tudo isso ao acaso é simplesmente uma fuga à realidade, que implica a contradição de se atribuir inteligência ao acaso. Por outro lado, uma concepção materialista do Universo implica necessariamente (em termos de necessidade lógica) a atribuição de inteligência à matéria, que hoje sabemos, cientificamente, não existir em si mesma, sendo o produto da acumulação da energia, que se realiza com lucidez e precisão científicas, visando a fins determinados num gigantesco esquema de ações e reações inimaginavelmente diversificadas. Essa realidade espantosa levou Francis Bacon à conhecida afirmação de que, para dominar a natureza, precisamos, primeiramente obedecê-la. A Ciência, como se vê, a orgulhosa ciência humana, não é mais do que ato de obediência a Deus. No plano ético a revolta materialista é como a queda dos anjos, no mito bíblico, uma atitude de ingratidão e estupidez ante a Inteligência Suprema. O materialismo não passa de uma crise de adolescência da Humanidade.

Mas é necessário considerarmos, no plano cultural, a infinidade de equívocos surgidos ao longo da História, que acabaram por levar a inteligência humana a repudiar a fonte da sua precária sabedoria. O desenvolvimento da razão despertou a vaidade do ser humano – único detentor do pensamento lógico e produtivo na Terra –, voltando-o contra a herança de submissão do passado teológico; a espantosa seqüência de crimes e atrocidades praticadas em nome de Deus, por seus pretensos representantes, negando a sabedoria e o amor de Deus; a comercialização das religiões e a conseqüente profissionalização do sacerdócio, que resultou no poderio político e econômico das igrejas; a deformação total dos princípios fundamentais das religiões ocidentais e orientais, que acabaram trocando o Reino do Céu pelos reinos da Terra, numa espécie de câmbio espúrio, em termos da mais calamitosa simonia. Esses fatores negativos, causando revolta e ateísmo, atenuam em parte os aspectos da estupidez humana gerada pela vaidade. O homem pode desculpar-se diante de Deus, alegando que as condições específicas da vida planetária e os impulsos cegos de seu primitivismo o arrastaram para a ingratidão e a falta de respeito à Inteligência Suprema. É o único álibi a que pode agarrar-se, quando despertar para a compreensão real da sua posição na estrutura cósmica. Mas esse mesmo álibi parece tristemente acusador, quando nos lembramos de que a intuição do Poder Supremo nunca lhe faltou, pois a marca de Deus em seu íntimo jamais foi apagada, antes reforçada constantemente pelos reclamos da sua consciência.

Provada assim a existência de Deus, tanto no plano objetivo quanto no subjetivo, na realidade exterior em que a Sua presença imanente é manifesta e na realidade interior em que Ele permanece em nós, manifestando-se nos vetores conscienciais e no impulso de transcendência que nos leva a buscar a integração de nosso ser na perfectibilidade possível de seu arquétipo divino, não há como negar que existimos porque Ele existe e que a nossa existência se funda na Sua existência. Essa é a concepção existencial de Deus, o conceito do Existente Absoluto, cuja forma, como prescrevia o Judaísmo, não pode ser figurada de maneira alguma, porque não se figura o Absoluto. A própria existência humana é considerada, nas Filosofias da Existência, como subjetividade pura. Podemos figurar o homem em sua realidade aparente, mas não podemos fazê-lo em sua subjetividade, que é a sua única realidade verdadeira. A criação do homem à imagem e à semelhança de Deus, segundo o mito bíblico, torna-se compreensível, não dando lugar à proposição inversa que nos apresentaria Deus à imagem e semelhança do homem. Colocando esse problema no plano histórico da Ontogênese podemos explicar racionalmente a filogênese divina dos panteons religiosos do passado, em que vemos Deus passar pelas metamorfoses do mito, desde a litolatria, passando pela fitolatria, a zoolatria, a pirolatria e assim por diante, até chegarmos à antropolatria e por fim ao panteísmo de Espinosa, em que a cosmolatria nos aproxima de Deus-Pai do Evangelho de Jesus.

Resta naturalmente a grande incógnita a cuja decifração ainda não podemos aventurar-nos: a das origens do seu porquê. Há uma origem de Deus? Podemos saber ou imaginar como, onde e quando, de que maneira Ele surgiu – não no Cosmos, que não podia ainda ter existido, mas no Inefável, como queria Pitágoras? Remontando a concepção matemática dos pitagóricos, podemos imaginar o número 1 imóvel no Inefável e o seu estremecimento que desencadeou a década, atingindo na equação do número 10 todo o circuito da Criação? A simples imaginação do Inefável nos coloca ante a vertigem do vazio absoluto, que não podemos conceber. E como explicar o número 1 em meio desse vazio e a causa possível de seu estremecimento? Podemos naturalmente pensar na hipótese mais modesta de Aristóteles: Deus como o Primeiro Motor Imóvel, no centro da gigantesca Usina do Infinito, onde, apesar de imóvel, põe em movimento os motores estelares e todos os demais motores de uma realidade subitamente acionada. Mas onde a engenharia criadora, quando o próprio Deus não existia? A solução bíblica do Fiat é evidentemente a mais prática, mas também a que estabelece a barreira mais pesada ao nosso entendimento, pois Deus é o Verbo que usa o Seu próprio verbo para fazer que o Nada se transforme no Todo. Estas especulações ingênuas servem apenas para mostrar a nossa impotência e deveria servir, mas não serviu, para despertar a nossa humildade.

Mas se quisermos perguntar a nós mesmos pela nossa origem, poderemos responder com segurança? O tema da facticidade, nas Filosofias da Existência, mostra a nossa ignorância total a respeito da nossa origem. Nascemos no mundo como náufragos desmemoriados que fossem lançados a uma praia desconhecida, impotentes e nus. Só trazemos conosco a facticidade, a forma e a maneira porque fomos feitos. Nada sabemos de nada. Estamos, segundo Kardec, vestidos apenas com a roupagem da inocência, mas não somos inocentes. No fundo misterioso da memória subliminar, nos arcanos do inconsciente, trazemos uma bagagem secreta que só poderemos usar na proporção do nosso desenvolvimento psicofisiológico. Teremos de passar por todas as fases bem graduadas do processo ontogenético, como se ainda não fôssemos um ser, para depois começarmos a revelar as formas ocultas do nosso ser, na realidade já preexistente. Nossas origens são tão misteriosas como as origens possíveis de Deus, cuja facticidade se revela no Fiat. Assim, tudo quanto se pretende saber a respeito de Deus – o saber de Deus através de Deus, de Max Scherer – nada mais é do que um jogo de palavras, flatus e nada mais. E apesar disso podemos querer negar a Existência daquele Poder que existia antes de nós? Não obstante, não são inúteis estas digressões. Elas servem para nos mostrar a falácia de todas as construções utópicas do pensamento humano a respeito de Deus, no tocante a sua origem e natureza. Cabe-nos ater-nos apenas ao conceito existencial de Deus, que podemos sustentar com os dados da nossa própria existência.


Deus no Homem

A consciência humana tem a mesma estrutura fundamental em todas as raças. O problema das raças está hoje praticamente superado, em virtude da miscigenação, das incessantes misturas raciais que se verificaram no tempo e em todos os tempos, produzindo sub-raças e variedades inúmeras de tipos humanos em todas as latitudes do globo. Pesquisas universais, realizadas pelos organismos especiais da ONU e de vários governos e instituições científicas, revelaram a inexistência de uma raça pura no mundo. Mas a tipologia racial ainda se apresenta de maneira definida em certos povos, caracterizando-os quanto à linhagem principal do seu desenvolvimento. Este não é o problema de nosso estudo, mas como se relaciona com ele, aludimos à questão sem maiores informações a respeito.

Hoje, o mais certo seria falar-se de nacionalidades, pois em cada nação, mesmo naquelas racialmente mais definidas, existe sempre um mosaico racial que não se revela facilmente quando a mistura se deu em vários ramos da mesma raiz, do mesmo tronco racial e lingüístico. Mas o que nos interessa é a constatação em todos os povos da mesma estrutura fundamental da consciência humana, naturalmente diferenciada com a preponderância ou não de fatores constitutivos, em virtude de exigências mesológicas ou da interferência de fatores históricos e culturais ligados às condições geográficas, climáticas, alimentares, tradicionais e assim por diante. Mesmo na Antigüidade, nas fases de isolamento das civilizações, os fundamentos da consciência humana revelavam-se os mesmos em todos os povos, como se pode verificar pelas suas manifestações culturais. Nesse sentido, não importam as diferenças da concepção de Deus entre os povos, que tanto podiam cultuar a Zeus como a Brama, ao Tao chinês como ao Ivaé hebraico ou aos deuses egípcios. Do Templo de Amom-Rá ao Templo de Diana ia a distância espacial e cultural que os tornavam estranhos.

Mas em todos os templos e cultos o que se manifestava, como lei universal, era a idéia de um poder superior que o homem deveria reverenciar. E para reverenciar esse poder os homens deviam sempre mostrar-se dignos dele, cumprindo as leis morais das prescrições religiosas. Cultos e ritos podiam variar ao infinito, mas a essência era a mesma: a intenção de agradar aos deuses através de um comportamento coerente com as exigências da evolução espiritual do homem.

Nas civilizações mais adiantadas os princípios fundamentais da consciência humana se evidenciavam em traços mais fortes. No plano moral as divergências formais davam, aos observadores superficiais, a impressão da existência de sistemas morais contraditórios. Isso acarretou, a partir do Renascimento, o desenvolvimento das pesquisas científicas, um movimento intelectual depreciativo para o conceito de moral. Entendeu-se que cada povo tinha a sua moral própria, de maneira que a suposta existência de uma moral superior e eterna não passaria de sonho vão, acalentado por sonhadores e místicos. Como a moral vem da raiz latina mores, que quer dizer costumes, chegou-se a conclusão de que a moral era nada mais do que uma práxis, variável em seus fundamentos como os costumes. Citou-se muito o exemplo da Grécia, onde o casamento era monogâmico antes da Guerra do Peloponeso e tornou-se poligâmico depois da guerra, pela necessidade de restaurar a população masculina terrivelmente dizimada. Esquecia-se o essencial, ou seja, que o objetivo da poligamia então instaurada era o restabelecimento da nação em seu estado natural, destruído pela guerra, e do seu poder defensivo. O que se objetivava, portanto, não era a poligamia em si, mas a continuidade da nação e do seu desenvolvimento cultural, ou seja: o bem. O prosseguimento das pesquisas e dos estudos a respeito dessas variações da moral acabou revelando que o princípio moral prevalecia sempre, na busca de um objetivo único, que era o bem das nações, dos povos, do homem em geral. Coube a Henri Bergson, na linha das proposições universalistas de Pestalozzi, restabelecer o conceito de moral como elemento básico da consciência humana. Bergson revelou a conotação natural existente entre Religião e Moral, em sua famosa tese sobre As Duas Fontes da Moral e da Religião. Ambas, religião e moral, brotam das exigências da consciência humana, primeiro nos costumes e depois na estruturação convencional das regras de moral, bem como na formulação dos preceitos religiosos, cultos e ritos.

Essa reviravolta anulava os efeitos negativos da interpretação errônea de moral e religião. A verdade era que ambas nasciam da própria natureza espiritual do homem, que requeria disciplina e orientação nas estruturas sociais. Um duro golpe para o pensamento materialista, que insistia na tese da natureza animal do homem. As pesquisas antropológicas e sociológicas, particularmente entre povos primitivos, em regiões selvagens, confirmaram essa nova colocação do problema, embora ainda hoje materialistas e pragmatistas insistam no erro, procurando sempre, segundo a expressão do Apóstolo Paulo, sujeitar o espírito à carne. Vã tentativa sustenta a vaidade humana, que vai sendo progressivamente frustrada pelo avanço das pesquisas científicas sobre a natureza humana. Temos assim três princípios fundamentais da consciência humana bem visíveis em suas manifestações no plano social: a idéia de Deus no homem, o seu anseio de transcendência e o desejo natural do bem. Neste anseio do bem encontramos o sentimento de afetividade, de amor pelos semelhantes, que se traduz no princípio de fraternidade universal. Do anseio de transcendência derivam os impulsos de ligações sociais, que determinam a formação das famílias e grupos afins, bem como o sentimento estético, determinante do interesse pelo belo em todas as suas expressões. O sentimento de justiça é corolário do amor e depende, nas suas variações de intensidade e clareza, do grau de nitidez da idéia de Deus.

Esses vetores da consciência humana pertencem à espécie, e estão presentes em todas as criaturas humanas, com as variações determinadas pelos fatores psicofisiológicos e mesológicos ou ambientais, influenciados em maior ou menor grau pela educação e o meio social. A idéia de Deus é o conceito que rege ao desenvolvimento e à manifestação de todos estes vetores na dinâmica social da existência individual e coletiva. Vem daí a importância do conceito de Deus para o comportamento do homem, solitário ou em grupo. O chamado homem sem Deus, que não aceita a existência de Deus por falta de um conhecimento mais claro do problema, nem por isso está desprovido desse princípio em sua consciência. O conceito de Deus, mesmo negativo, exerce influência em seu comportamento. Ele pode contrariar essa influência em virtude de preconceitos ou de experiências passadas, como frustrações religiosas ou sociais, mas em geral, mais hoje ou amanhã, cederá aos impactos dos seus impulsos afetivos. A liberdade é a própria consciência, o ambiente espiritual em que todos esses vetores conscienciais se desenvolvem. A supressão da liberdade numa consciência é o eclipse que a lança na escuridão. Essa supressão pode ser produzida por fatores endógenos ou exógenos, por temores e traumas íntimos ou por diversos tipos de pressão vindos do exterior. Os tiranos assumem pesada responsabilidade, seja no âmbito restrito das relações familiais ou no âmbito aberto das atividades políticas e sociais, ao criarem situações supressivas ou limitadoras da liberdade.

O problema da estética, geralmente considerado em segundo plano, negligenciado pelos estudiosos do comportamento humano, é o segundo em importância, depois da idéia de Deus, na estrutura da consciência. O belo não é apenas um vetor da consciência, é um arquétipo espiritual da espécie humana que atrai o homem para a transcendência e particularmente para sua integração consciencial. As fases iniciais da transcendência, que se passam no plano da sociabilidade (a transcendência horizontal de Jaspers) preparam a consciência para sua integração, que é a fusão dos vetores conscienciais numa unidade global. O chamado homem prático desenvolveu eficazmente a sua consciência de relação, através da mente, que é o instrumento das relações com o exterior. Esse homem, como ensina René Hubert, tem plena consciência de sua posição social e de seus deveres profissionais, acha-se teórica e praticamente preparado para as suas atividades. Mas sua consciência só atinge o pleno desenvolvimento quando ele aprimora a sua estesia, conquistando os planos superiores de uma visão estética geral. Sabemos a importância que os gregos davam à beleza e ao sentimento estético. Platão chegou a afirmar que através dos belos corpos a alma atingia o Belo. A pobreza espiritual do nosso tempo interpreta essa afirmação em termos sensoriais, quando o seu sentido é puramente espiritual. Os belos corpos despertam admiração e amor, este se converte em devoção e eleva a alma ao encontro do arquétipo ou idéia superior do Belo, no mundo das idéias. Só neste momento o homem se liberta da animalidade e penetra os arcanos da espiritualidade. Sua consciência se desprende dos liames terrenos para atingir o desenvolvimento pleno. A visão do Belo impregna toda a sua alma, transfigura o mundo aos seus olhos iluminados pelos clarões da Eterna Beleza. Essa visão não tolera o mal nem a injustiça e penetra na essência do próprio Feio para ali descobrir os germens ocultos da Beleza. Deus não é apenas o Bem, pois sem o Belo não existe o Bem na sua perfeição necessária.

Como vemos, Deus está no homem não apenas como idéia, mas como a própria essência da criatura. Foi o que sentiu o apóstolo Paulo quando disse que em Deus vivemos e nele nos movemos. Deus é assim a essência da existência humana. Por isso, Deus não é o Existente Absoluto apenas por existir além das nossas dimensões, mas porque determina o homem como existente e participa da existência humana. O conceito existencial de Deus é o único adequado a esta fase tormentosa da evolução humana, quando todos os mitos do passado se despedaçam aos nossos pés para que a Verdade possa escapar do invólucro dos símbolos e iluminar o mundo novo que está nascendo.


Natureza Inteligente

A inteligência da Natureza contrasta chocantemente com a estupidez dos homens. O equilíbrio ecológico perfeito, medido rigorosamente na dosagem certa dos elementos que o compõem, parece a obra de uma equipe de especialistas. A estrutura de uma árvore, da raiz às franças, exigiria anos de pacientes trabalhos para ser feita. A composição do ar que respiramos, na proporção exata de quatro partes de azoto e uma de oxigênio, única medida que permite a oxigenação vital das plantas, dos animais e do homem, só poderia ser estabelecida por um químico especializado em manutenção da vida no planeta, pois bastaria um excesso de oxigênio para que toda a vida desaparecesse. As simples proporções de oxigênio e hidrogênio na composição da água, para que ela se tornasse vitalizadora e não corrosiva, seria suficiente para lembrar-nos a presença de determinações inteligentes na Criação. Tudo isso sem tratarmos da constituição muito mais complexa do corpo humano, com suas múltiplas exigências de segurança e regularidade no funcionamento orgânico, desafia os mais hábeis construtores de robôs e computadores da moderna tecnologia. A Cibernética e a Biônica esforçam-se em nossos dias para arremedar grosseiramente a perfeição dos organismos vivos. Mas apesar dessa exuberância de provas da existência de uma inteligência imanente na natureza, os homens elaboram teorias absurdas para explicar o prodígio como decorrente de fatores ocasionais ou de uma dialética dos opostos que representa em si mesma a maior exigência de um poder inteligente. Durante os últimos dois séculos milhares de cientistas têm lutado desesperadamente para afastar da humanidade ingênua a perigosa superstição da existência de Deus. Para tentar equilibrar as estruturas sociais destrambelhadas, estabelecendo a Justiça Social no mundo injusto, de saques e pilhagens sistemáticas, surgido ao acaso dos instintos de rapinagem, voracidade e arrogância, chegaram mesmo à conclusão de que a idéia de Deus devia ser apagada da mente humana.

Basta-nos olhar uma flor, ouvir o canto de um pássaro, sentir a carícia de uma brisa primaveril, para estarmos recebendo a saudação de uma inteligência prodigiosa, oculta na realidade subjacente do mundo das coisas e dos seres. Mas ao invés de perceber isso, os homens se revoltam indignados contra os que sustentam que a Natureza é obra de Deus. Por que Deus, para os expoentes da cultura materialista do século, não passa de um resíduo dos tempos de superstição. Não obstante, essa própria cultura, através das pesquisas científicas, provou, sem querer, que a matéria, seu ídolo e única verdade, só existe de fato como ilusão dos nossos sentidos. Bertrand Russell, para enfrentar a crise do materialismo sensorial, apegou-se apenas a uma tábua de salvação: “Até agora – afirmou – as leis físicas não foram mudadas e continuam válidas.” Arthur Compton, menos opiniático, declarou conformado: “Descobrimos que por trás da matéria está a energia, mas parece que há algo por trás da energia e esse algo é pensamento.” Na verdade, como Einstein ironizou: “O materialismo morreu de asfixia, por falta de matéria.” Mas apesar de alguns expoentes, dos mais graduados, do meio científico-internacional, terem a coragem de enfrentar a realidade, a maioria permanece apegada à concepção materialista com um desespero de náufragos. Por que essa teimosia, se justamente agora a pesquisa científica levanta o Véu de Ísis que a Ciência há muito vinha lutando para rasgar? Temos nesse episódio a prova do poder da inércia, do instinto de conservação. O saber adquirido se acumula e consolida, resistindo a tudo que possa modificá-lo. Inútil resistência, porque não vivemos num Universo estável, mas constituído precisamente pela instabilidade dos fluxos. Como dizia Tales de Mileto, não podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Querer anquilosar a Ciência, organismo vibrátil, de penetração na realidade mutável, é como tentar recolhê-la a um museu. Nos fins da Idade Média e no Renascimento, cientistas e filósofos tiveram de lutar contra a imutabilidade fictícia da Igreja. Agora a Igreja se entrega à correnteza e os próprios cientistas se agarram nas raízes do barranco.

Mais do que nunca a inteligência imanente – o pensamento por trás da energia – revela-se aos nossos olhos. Ultrapassando os dados tradicionais, as pesquisas atuais nos mostram uma estrutura da realidade em que a inteligência da Criação esplende de maneira inegável. As estruturas atômicas, suas infinitas formas de conjugação, os campos de força do espaço sideral, as partículas atômicas livres formando os plasmas físicos, o outro mundo da antimatéria e tantas outras descobertas recentes ampliaram tanto o poder da inteligência imanente que não existe mais a mínima possibilidade de negá-la.

Deus se revela na Natureza, como queria Camille Flammarion. E como pretendia Ernesto Bozzano, talvez se possa explicar cientificamente a ação de Deus em termos da antiga teoria do éter espacial, hoje revivida pela luz infravermelha dos físicos soviéticos, que impregna todo o Universo, ou pelo oceano de elétrons livres de Dirac, em que o universo está mergulhado. Não se trata de Deus antropomórfico das religiões, do Velho Padre Eterno da crença popular, nem mesmo do Iavé bíblico, esse caprichoso manipulador de bonecos de barro em que soprava o hálito da vida, e nem tão pouco do Brama indiano que gerava as castas segundo a hierarquia dos membros do seu corpo humano, mas de uma Inteligência Cósmica dotada de ciência e poder, que a tudo se liga pelo seu magnetismo ou pelo seu pensamento, criando, sustentando e renovando as coisas e os seres no infinito. Não é um Deus alheio ao destino da Criação, mas ligado a ela em todas as minúcias e agindo segundo um plano em que todos os objetivos estão definidos. Sua poderosa ação não é jamais aleatória, mas teleológica, determinante, precisa. Negar isso seria negar as próprias conquistas da Ciência em nosso tempo. A verdade inegável e insofismável é que essas conquistas provaram de sobejo a existência de Deus, não mais apenas como necessidade lógica, mas como realidade sensível e verificável a todo instante.

Os sofismas levantados contra essas conseqüências do avanço científico são sempre ingênuos absurdos, portanto anticientíficos. Isso desespera os que, sem nenhuma esperança razoável, contavam com a negação total da existência de Deus pela Ciência. Estranha posição a desses fanáticos do Nada, que sabem e não podem deixar de saber que o nada não existe, não passou de uma suposição ante uma realidade plena, onde hoje não se encontra uma pequena brecha para se guardar o sonho de múmia da teoria sartreana da nadificação.

Estranha mentalidade humana, necrófila e suicida, que rejeita a sua própria imortalidade, pretendendo reduzir o homem, a essência do homem, o espírito, ao fogo-fátuo das combustões de gases nos cemitérios, num Universo em que nada se extingue, tudo se renova no fluxo evolutivo! Contra-senso dos sábios que não têm a humildade suficiente para se curvarem ante as provas contrárias às suas falsas teorias. A aceitação do conceito antropomórfico de Deus e a negação da Sua existência são igualmente anticientíficas e absurdas. O ateísmo foi uma reação ao deísmo tirânico das civilizações teocráticas da Antigüidade e ao milênio de atrocidades sagradas da Idade Média. Irmão gêmeo do Anarquismo, ligou-se a este na luta pela liberdade humana, contra os poderosos dominadores e exploradores dos povos. Tem, portanto, a sua justificação histórica e revestiu-se da nobreza das causas libertárias. Mesmo em nossos dias o ateísmo ideológico se apóia nesses fundamentos, como vemos no caso do Marxismo, das correntes de socialismo revolucionário e dos remanescentes de antigas instituições anticlericais. A posição de Sartre e Simone de Beauvoir insere-se nessa mesma linha. Mas acontece que a situação modificou-se profundamente em nosso tempo. O que se passou na área soviética basta para mostrar que a tirania não depende mais do poder divino das instituições religiosas. Além disso, o desenvolvimento cultural, apoiado em avançada tecnologia, pulverizou as razões e os argumentos aparentemente lógicos do passado. Os intelectuais dos séculos XVIII e XIX podiam vangloriar-se de avançados quando sustentavam a sua posição de ateus. Os intelectuais de hoje, pelo contrário, revelam ignorância das conquistas científicas que enriquecem a cultura do século XX e apresentam-se como remanescentes de um mundo morto. Essa é uma das contradições mais estranhas da posição existencial sartreana, alimentada por idiossincrasia que é inteiramente avessa à lucidez do pensamento filosófico.

O fato mais significativo da crise provocada pelo avanço científico no mundo marxista foi a recente descoberta do corpo bioplásmico dos seres vivos, particularmente do homem, nas pesquisas de uma equipe especializada na Universidade de Alma-Ata, na zona de pesquisas secretas do Centro Espacial da URSS, no Cazaquistão. Os cientistas puderam ver e fotografar esse corpo analisando a sua constituição atômica e constatando a sua retirada do corpo material no processo da morte. Submeteram moribundos às câmaras Kirlian de fotografia sobre campo imantado por alta freqüência elétrica. As câmaras foram conjugadas com microscópios eletrônicos de alta potência. Detectores de pulsações biológicas registraram a sobrevivência do corpo bioplásmico após a morte. O nome de corpo bioplásmico foi dado em virtude de se constatar que esse corpo luminoso, constituído de partículas atômicas livres, que formam um plasma físico, é o corpo vital do homem. O corpo material não se cadaveriza enquanto o corpo bioplásmico não se desliga dele totalmente.

O plasma físico é o quarto estado da matéria, formando torrentes de massas de partículas ionizadas. Esse corpo descoberto pelos cientistas soviéticos corresponde inteiramente, na forma, na aparência, na constituição energética e nas suas funções vitais, ao perispírito da teoria espírita que, por sua vez, confirma a tradição cristã do corpo espiritual, a que o Apóstolo Paulo alude na I Epístola aos Coríntios. Bastou a divulgação desse fato nos Estados Unidos, com repercussão mundial, para que medidas imediatas fossem tomadas pelo oficialismo soviético, desautorizando as pesquisas e sustando as informações para o exterior sobre o assunto. O oficialismo soviético percebeu o perigo que essa descoberta representava para as bases rigidamente materialistas da Filosofia do Estado. As pesquisas com as câmaras Kirlian prosseguiram nos Estados Unidos, mas ainda na fase da efluviografia. Os americanos não obtiveram informações sobre o processo de conjunção das mesmas com microscópios eletrônicos. Mas o fato auspicioso ficou registrado pelo livro Descobertas Psíquicas por trás da Cortina de Ferro, de autoria das pesquisadoras da Universidade de Prentice Hall (EUA) Scheila Ostrander e Lynn Schroeder, que antes das medidas proibitivas estiveram na URSS, verificaram o caso e entrevistaram os cientistas pesquisadores. O livro foi lançado pela editora da Universidade americana e depois pela Bentan Books, de New York, London e Toronto, entre 1970 e 1971. A Editora Cultrix, de São Paulo, lançou uma tradução para o português em 1974, de autoria de Antônio Mendes Cajado.

As pesquisas oficiais sobre o corpo bioplásmico foram realizadas por biólogos, biofísicos e parapsicólogos na famosa Universidade de Kirov. Essa Universidade fica na cidade de Alma-Ata. A equipe de pesquisadores constituía-se dos professores Iniushin, Grischenko, Vorobev, Shiski, Nadia Fedorova e Gibaduin. Em 1968 essa equipe anunciou que suas pesquisas haviam provado que todos os seres, vegetais, animais e humanos, possuem, além do corpo físico, um corpo energético formado de plasma biológico. Esta foi, sem dúvida, a maior conquista científica do século, mas a glória dos descobridores ficou soterrada no silêncio determinado pelos interesses do Estado. Ontem, o totalitarismo da Igreja sufocando a Ciência; hoje, o totalitarismo do Estado anti-religioso fazendo o mesmo. Presa por ter e por não ter cão, a Ciência avança, apesar de tudo, nos rumos certos da investigação imparcial da realidade. E a inteligência imanente revela cada vez mais a sua sabedoria sem limites. Que inteligência é essa? Dêem-lhe o nome que quiserem, mas historicamente, na tradição e no coração dos povos de todo o mundo ela se chama Deus.


Do Efeito à Causa

O pensamento científico inverteu os termos do pensamento antigo. Sabemos que essa inversão começou com Aristóteles, em sua curiosidade pela observação das coisas naturais. Mas na verdade começou bem antes, com fisiólogos gregos, entre os quais se destacam Tales de Mileto, um pesquisador atrevido que chegou a medir o diâmetro da Lua e calculou o seu peso. A intuição platônica, orientada pelas lições de Sócrates, eclipsou essa tentativa com esplendor de uma sabedoria de tipo pitagórico, haurida na fonte oculta das causas. Correriam os séculos sobre as inquietações dos povos, até que a razão grega pusesse fim ao pragmatismo dos povos europeus. A luz da Ásia teria de misturar-se, como o fermento da parábola evangélica, à massa do pão ocidental para levedá-la. O que Dilthey chamou de Caldeirão Medieval de fusão das idéias, foi antes a panela de pressão em que, na medida de tempo de um milênio, rigorosamente controlada pela válvula de escapamento, Platão e Aristóteles seriam cozinhados no caldo dos princípios cristãos. Só no Renascimento teríamos o quitute preparado com vários ingredientes estranhos colhidos no Olimpo devastado pelo vandalismo cristão.

Os estudos de Gilson sobre a Filosofia Medieval e as pesquisas de Dilthey, Cassirer e outros revelam que as fases sucessivas da ebulição do pensamento medieval seguiam a intenção secreta da inteligência imanente, um plano divino destinado a salvar o pensamento cristão puro do gigantesco sincretismo religioso-filosófico. Parece ter cabido a Abelardo a tarefa ingrata de preparar o prato especial destinado a Descartes, escoimado dos excessos de gordura e condimentos míticos, para que os elementos essenciais da evolução espiritual não se perdessem na transição para a era científica. E Descartes realmente alimentou-se bem com o prato de Abelardo, o suficiente para rejeitar o cozido tradicional dos jesuítas do Colégio de La Fleche. Não fosse isso e o esbelto espadachim francês teria se empanturrado com cozidos e estufado a barriga como Tomás de Aquino.

Rejeitando o fascínio da Causa, o espírito ocidental preferiu a tarefa secundária de analisar e pesquisar os efeitos. Essa atitude de humildade socrática levou o pensamento ocidental à descoberta do problema central do método. O entendimento humano estava preparado para os novos tempos, mas se não lhe pusessem os freios do método ele poderia disparar como Quixote pelos campos da Mancha, a combater moinhos de vento. O efeito e não a causa, o fenômeno e não a sua interpretação teológica, essa a grande opção que o pensamento ocidental teve de fazer. Já advertiam os antigos romanos, com seu feroz instinto prático, que podemos tomar a nuvem por Juno. Os cristãos substituíam a deusa Juno por Maria de Nazaré e continuaram a cometer o erro pagão de vê-la nas nuvens, na escuridão sugestiva das grutas, no nevoeiro das florestas e até mesmo em imagens quebradas arrastadas nas águas de um rio. Galileu teria de arriscar a pele com suas experiências na Torre de Pisa e Giordano Bruno morrer na fogueira inquisitorial como precursor herético de Espinosa e Leibniz. O século XVI foi a abertura do mundo antigo para as novas dimensões da Civilização que nascia, superando a bárbara concepção de Deus e do homem que se tornaram, na organização social e cultural, mais agressivas, deformadas e injustas que nos tempos selvagens. As figuras exponenciais que nem surgiram, como as que mencionamos, tiveram de sacrificar-se para que os ideais cristãos não desaparecessem da Terra para sempre, tragados nas chamas inquisitoriais, alimentadas muito mais pela arrogância de mentes embriagadas na volúpia da vaidade e do poder.

Apesar dessa embriaguez generalizada e terrivelmente contagiosa, geradora de crimes nefandos em nome de Deus e de Cristo, os objetivos secretos da inteligência imanente foram atingidos. Mas a estupidez humana é opaca e dura, não se deixa penetrar facilmente pela luz e resiste, encastelada nas fortificações feudais, a todas as tentativas de desalojá-las. Todos os que ainda hoje lutam pela modificação das estruturas sociais e culturais enfrentam as maiores dificuldades. Não podem restringir-se à estreiteza da mentalidade vulgar, que se acomoda nos costumes e nas vantagens do momento, nem endossar os processos da política de compromissos grupais ou de castas, nem mergulhar no comercialismo voraz e vampiresco do chamado poder econômico. Não obstante, a busca da verdade mudou de rumos e só é válida quando remonta dos efeitos às causas, libertando o homem do domínio dos mitos. Essa simples mudança de posição recompensa o martírio dos que morreram em nome da verdade, sem trair-se a si mesmos.

Em meados do século XIX o interesse pelo efeito desviou-se da área restrita dos fenômenos habituais, segundo a expressão de Richet, para as áreas desconhecidas e abandonadas dos efeitos inabituais. Pesquisadores norte-americanos seguiram os pioneiros da conquista da terra para tentar a conquista do espírito, observando e analisando os famosos fenômenos de Hydesville, com as irmãs Fox. Essa tentativa repercutiu na França, onde Denizard Rivail iniciou corajosamente a pesquisa científica desses fenômenos. A pesquisa invadia diretamente as zonas sombrias do domínio religioso, a selva escura de Dante, em que se haviam refugiado todos os mitos do passado. Era necessário penetrar nessa selva a fundo, vasculhar as suas furnas, espantar os mochos noturnos, desbastar os emaranhados de ramagens espinhentas que impediam a penetração de luz solar. O pedagogo, o médico, o cientista Denizard Rivail, à maneira dos cristãos da era apostólica, mudou o seu nome conhecido por um pseudônimo simbólico, de origem gaulesa: Allan Kardec. E até hoje o simples enunciar do seu nome causa arrepios às mentalidades retrógradas e evoca o mito desmoralizado do Diabo. Foi a última vítima das fogueiras inquisitoriais, queimando em efígie e queimadas as suas obras numa fogueira erguida em Barcelona. O último bispo inquisidor não conseguiu o cheiro, tão agradável aos santos inquisidores, da carne humana queimada em vida. Teve de contentar-se com o cheiro de papéis queimados, e esse cheiro serviu para incentivar a busca da verdade.

A pesquisa de Kardec ateve-se ao campo psicológico e psicofísico. Como todos os vanguardeiros, teve de criar os seus métodos de investigação, adequados ao objeto novo que tinha de enfrentar. Durante doze anos dedicou-se a essa pesquisa de maneira intensiva, chegando muitas vezes à exaustão. Ao mesmo tempo enfrentava os anátemas da Igreja, os ataques de todo o campo religioso da época, as críticas da leviandade mundana, as calúnias dos invejosos, as agressões violentas dos sistemáticos, a condenação das corporações científicas e as censuras filosóficas. A todas essas agressões e condenações respondeu com serena firmeza, apoiado em fatos, tentando esclarecer os adversários. Toda a sua obra é um exemplo de didatismo paciente na sustentação da verdade. Os doze volumes da Revista Espírita por ele regidos e publicados em fascículos mensais, durante doze anos, são o arquivo dessa guerra branca, em que os ataques dos adversários são registrados e analisados e o material de suas pesquisas apresentado ao público. Hoje, felizmente, graças ao trabalho de tradução do Engenheiro Júlio Abreu Filho e ao lançamento da coleção pelo Editor Frederico Giannini Júnior, já o nosso público pode conhecer em nossa língua esse espantoso acervo.

Kardec, reconheceu Richet – que não partilhava da sua filosofia –, fundamentava-se sempre na pesquisa. Submeteu os problemas espirituais à investigação científica, através de uma metodologia rigorosa e tão bem esquematizada que as ciências psíquicas posteriores, desde a antiga Parapsicologia alemã, passando pelas Sociedades inglesas e norte-americanas de investigações psíquicas, até à psicobiofísica de Schrenk-Notzing na Alemanha e a Parapsicologia atual, não conseguiram sair (embora sem saber) do seu esquema metodológico e das classificações por ele estabelecidas para os fenômenos. Por outro lado, as conclusões de todas essas ciências não conseguiram contrariar as de Kardec. Seu esquema metodológico estabelecia a mesma divisão de campos que elas tiveram de fazer: fenômenos subjetivos, anímicos e espiríticos; existência de um corpo espiritual das plantas, dos animais e dos homens; possibilidade de separação temporária do corpo espiritual para a hoje chamada projeção do seu eu à distância; natureza do corpo espiritual (perispírito) como semimaterial, dotado de energias físicas e espirituais; existência da memória profunda e possibilidade de sua emersão na consciência atual, com influências benéficas ou maléficas no comportamento humano; reencarnação e comunicabilidade dos espíritos (hoje pesquisas da reencarnação na Parapsicologia e fenômenos theta no grupo especial de pesquisas da Duke University e nas universidades européias e soviéticas). Quando Kardec tratou dos fenômenos anímicos (manifestações de dupla personalidade) e mostrou que a anomalia podia ser curada com a elucidação do caso, Sigmund Freud tinha apenas um ano de idade, e a catarse psicanalítica já era empregada pelo mestre francês em maior profundidade do que hoje, como lembrou o Dr. Ehrenwald. Hoje, na Universidade de Moscou, segundo divulgam os próprios russos, o Dr. Wladmir Raikov e sua equipe investigam o problema das chamadas reencarnações sugestivas, que afetam o comportamento normal de muitas pessoas. Até mesmo os casos de agêneres (pessoas mortas que reaparecem como vivas e se relacionam com os vivos) têm ocorrido e chegado ao conhecimento de alguns pesquisadores, mas são sempre interpretados como alucinações. O Dr. Hamendras Nat Barnejee, da Universidade de Jaipur na Índia, famoso pesquisador dos casos de reencarnação, que tem estado numerosas vezes na URSS, soube de curiosos fatos que não puderam ser divulgados. Por fim, é bom lembrar que o próprio Stalin, apesar de seu materialismo, teve experiências notáveis com o médium polonês Messing, mundialmente famoso.

Não é de admirar, portanto, que tenha havido em Moscou um simpósio científico sobre a obra de Allan Kardec, segundo divulgaram em 1974 várias agências telegráficas. Kardec era apresentado como um racionalista francês do século XIX que havia antecipado muitas pesquisas da atualidade sobre fenômenos paranormais.

Na realidade, todo esse interesse mundial pelo paranormal decorre da colocação racional do problema, em termos de pesquisa científica. Existindo o fenômeno e sendo possível a sua investigação, o que durante um século negaram, e ainda hoje tentam negar alguns opositores sistemáticos, não há motivo para que a Ciência se recuse a investigá-lo. O que impediu o desenvolvimento dessas pesquisas de maneira normal e seqüente foram as incríveis arruaças promovidas pelos que mais deviam interessar-se por elas, os que se dizem representantes de Deus na Terra. Por que essas arruaças, essas enxurradas de mentiras despejadas em forma de anátemas, bulas, folhetos, artigos e reportagens de jornais e revistas, conferências, programas de rádio e televisão, livros carregados de trapaças e ironias contra uma realidade que constitui a própria essência das religiões? Todos os truques foram empregados na luta contra a investigação de fatos que os homens sempre conheceram, desde a mais remota Antigüidade. É que os clérigos e os religiosos fanáticos ou tradicionais dão mais importância ao convencional do que ao verídico, às elaborações fantasiosas dos homens do que às manifestações de uma realidade evidente. Prezam mais a estrutura das igrejas, em que se acomodam, do que a estruturas da Natureza criada por Deus; preferem o reino passageiro do mundo ao Reino de Deus que pregam nos púlpitos e aceitam mais a exegese sectária do Evangelho do que relato simples e claro dos textos evangélicos, repletos de exemplos de fenômenos paranormais, muitas vezes produzidos e explicados, sem ambigüidades, pelo próprio Cristo.

O método científico de investigação fenomênica, rigorosamente controlado, com centenas e milhares de repetições dos fenômenos, não deixa dúvidas sobre a sua realidade e a sua significação. A única maneira de combater as provas científicas é cobri-las com a cortina de fumaça da mentira. Já agora isso não é possível, a não ser no âmbito restrito das seitas ignorantes. O método científico triunfou e a pesquisa do fenômeno paranormal levou o homem a descobrir a causa desses fenômenos intrigantes, que está no próprio homem, na sua natureza espiritual sustentada teoricamente pelas religiões. O mundo amadureceu para a verdade e as novas gerações rejeitam a ilusão piedosa de uma fé que se fundamenta apenas em afirmações dogmáticas, sustentadas pelo autoritarismo dos poderes supostamente divinos de instituições formalistas erigidas e mantidas pelos próprios homens. A virada violenta e necessária da causa para o efeito, nos rumos do pensamento humano, leva-nos hoje ao conceito existencial de Deus, arquivando para sempre as falaciosas concepções do passado religioso.


Deus e os Deuses

O Deus judeu, exclusivista e autoritário, definiu-se na Bíblia com esta afirmação: Eu sou aquele que é. Os homens já percebiam, então, que a multiplicidade dos deuses era contraditória em si mesma, militava contra a idéia de Deus. Se Iavé ou Jeová se apresentava como o Único, sua posição era lógica e respondia às exigências de coerência do novo pensamento que se desenvolvia em Israel e no mundo. Mas o exclusivismo de Iavé parecia demasiado arrogante. O poder esmagador de Júpiter, que através das legiões romanas ameaçava dominar o mundo inteiro, não deixava lugar para esse deusinho petulante de uma pequena província do Império. Caberia, talvez, a Zeus, senhor do Olimpo, que levara os gregos a um desenvolvimento cultural sem precedentes, impor-se como Deus único. Mas quando o Messias judeu, Jesus de Nazaré, adoçou a arrogância judia chamando Iavé de Pai, abriu-se a possibilidade de uma aceitação universal do monoteísmo hebraico. O desenvolvimento posterior do Cristianismo, facilmente infiltrado nas populações subjugadas do Império Romano, provou a eficácia da intervenção messiânica. Todos os deuses foram perdendo os seus adeptos para aquele Deus desconhecido com o qual o Apóstolo Paulo identificara Iavé em Atenas.

Kerchensteiner, em notável estudo, analisou em nossos dias a fisiologia do mito, mostrando as leis que regem o processo mitológico. Os deuses não foram inventados pelos homens, como querem as teorias simplórias de Taylor e Spencer, ainda hoje sustentadas até mesmo pelo chamado materialismo científico. Os mitos nascem do seio da Mãe-Terra, evocados pelo coração dos homens, e sobem aos céus escalando montanhas ou nos vapores d’água que se acumulam na atmosfera. Daí a facilidade com que se tomava a nuvem por Juno ou o relâmpago por Júpiter. Da Terra-Mãe surgem as pedras e os rios, as matas e os animais e, por fim, os homens. Mas os homens trazem a idéia de Deus no coração e possuem a capacidade mental de projetar-se nas coisas e nos seres. A dinâmica do animismo primitivo gera a floração dos deuses que protegem os povos. Mas os deuses particulares, das tribos e depois das nações, nada mais são do que a fragmentação ilusória da unidade primitiva e irredutível. Assim como, partindo das coisas isoladas – a terra, a água, os vegetais, os animais, etc. – os homens vão depois descobrindo a unidade da realidade indivisível, pois a realidade é uma só, formada de inumeráveis conjuntos, assim também a multiplicidade dos deuses tribais vai aos poucos se fundindo nas pequenas unidades do sistema solar e à unificação atual do Cosmo, maiores das mitologias nacionais. O homem finito não pode conceber o infinito como uno e absoluto senão através das experiências do real. A unificação da idéia de Deus precedeu à unificação copérnica da unidade do sistema solar e a unificação atual do Cosmo, como exigência primária do desenvolvimento da razão. Por isso os gregos anteciparam o monoteísmo no plano filosófico, pelo qual Sócrates teve de pagar o preço da taça de cicuta. Mas a unidade religiosa só foi possível na reforma do Judaísmo por Jesus de Nazaré, que os gregos apoiaram chamando-o de Cristo (um nome grego) e que teve de pagar um preço mais alto com a crucificação romana. Os homens partem das coisas mínimas para chegarem pouco a pouco às máximas. O mito é, ao mesmo tempo, a projeção da alma humana nas coisas e a absorção das coisas pelo poder anímico do homem. A mitologia não foi também a invenção gratuita dos deuses pela imaginação dos homens, nem a busca de proteção ante a insegurança da vida precária, mas a tentativa necessária de racionalização do mundo. Superando o sensível da teoria platônica, os homens converteram o mundo num organismo vivo e inteligível, através dos mitos. O Olimpo se assemelhava às cortes dos Soberanos terrenos, com a hierarquia humana de funções e poderes, não por imitação, mas porque somente assim os homens poderiam compreender o mistério do mundo. Não foi o medo, mas a curiosidade que gerou os deuses. A prova histórica disso está na teoria diltheiana do caldeirão medieval, onde, só naquela fase específica da teocracia medieval a Razão se fundia numa peça única, destinada à preparação do Renascimento como Idade da Razão.

A embriaguez racional, como acontece aos indivíduos na passagem da mitologia infantil para o alvorecer racional da puberdade e da adolescência, levou os homens à rebeldia dos primeiros tempos de liberdade, geradora do ateísmo e do materialismo. O desenvolvimento das Ciências segue os rumos da crise da adolescência, no esquema do famoso estudo de Maurice Debesse. Os homens do Renascimento, do Mundo Moderno e até mesmo do Mundo Contemporâneo portaram-se como adolescentes no chamado conflito de gerações. Já agora, porém, nas vésperas da Era Cósmica, os achados do Renascimento precisam ser revisados, para que a problemática humana seja respondida em termos de razão; mesmo porque é na razão que temos a imagem de Deus no homem, não em sua forma corpórea, que o assemelha aos símios. A concepção antropomórfica de Deus foi uma traquinagem da Humanidade adolescente. Essa traquinagem se justifica em seu tempo, como simples ensaio religioso para uma tentativa posterior de colocação da idéia de Deus em termos racionais. Kardec, em seu livro O Céu e o Inferno, comparando a mitologia greco-romana com a mitologia cristã, mostrou as incongruências tipicamente adolescentes da reformulação teológica da idéia de prêmio e castigo após a morte. O Céu cristão aparece ingênuo e fantasioso como um sonho de meninotes e o Inferno cristão impiedoso e injusto como uma descrição de terrores infantis. Tão mais impiedoso e desarrazoado é esse inferno do que o pagão, que chegamos a rir das graves proposições teológicas formuladas por teólogos e clérigos eminentes.

O poder temporal da Igreja, que submeteu ao seu arbítrio as cortes européias, estendendo-se depois a todas as áreas mundiais da conversão, impediu a análise dessas criações monstruosas e incentivou o desenvolvimento do ateísmo e do materialismo. O panteísmo de Espinosa foi a única reação madura aos absurdos teológicos, colocando a concepção monoteísta em termos realmente racionais. Mas a posição panteísta incide no erro de confundir a Criação com o Criador, o que diminuiu a eficácia da proposição espinosiana. O campo continuou livre para o materialismo.

Espinosa teve o mérito de desfazer o engano da concepção antropomórfica da Bíblia e substituir o símbolo da criação alegórica do homem numa proposição filosófica de integração cósmica da criatura humana. A orgulhosa pretensão de separatividade e privilégio, que ainda hoje é pregada nos seminários de várias igrejas cristãs, foi esmagada pela sua inteligência. O homem, simples modo ou afecção da substância terrena, nas muitas manifestações do poder divino, brota da natureza como todas as coisas e a ela volta com a morte. Mas nem por isso o seu panteísmo caiu no materialismo. A Natureza naturata representa a Criação, é natureza sensível. Mas por baixo do sensível existe o inteligível, que é a Natureza naturans, o próprio Deus, fonte geradora de toda a realidade. Deus é imanente no mundo e todas as coisas e todos os seres nascem dele, como as fontes e os vegetais. A exposição matemática de Espinosa em A Ética faz desse pequeno judeu excomungado o restaurador da grandeza moral e espiritual do judaísmo. Os rabinos esbravejaram nas sinagogas, mas ele arrancou da sua fé judaica independente uma contribuição heróica para a concepção existencial de Deus que apareceria mais tarde na obra de Kardec.

Na Antigüidade encontramos algumas posições que podem ser consideradas precursoras da posição espinosiana. Encontramos na China o conceito do Tao, que gerou o Taoísmo, em que o Céu é o próprio Deus e ao mesmo tempo o caminho da redenção; na Pérsia arcaica a proposição dinâmica de Zoroastro, que toma o fogo como a única imagem possível de Deus; em Pitágoras, na Grécia arcaica, a visão cósmica de um Universo integrado em que os reinos da Natureza permutam incessantemente as suas energias, inclusive o humano; e, ainda, entre os gregos a concepção isoloísta da Terra como um ser vivo e gerador de vida. A Música das Esferas, girando no Infinito, podia ser captada pelos ouvidos sensíveis e dava a essa concepção o valor estético de uma criação musical. Nenhuma dessas concepções elevadas, entretanto, conseguiu socializar-se e conquistar o povo. Foram clarões da inteligência humana que não comoveram o homem, o que Jesus de Nazaré conseguiu, transformando o mundo, não obstante as igrejas nascidas do seu pensamento o houvessem deturpado com incríveis enxertos do mais primário paganismo. O próprio Jesus foi transformado num mito em que há pinceladas fortes de Apolo e Osíris. Ritos simplórios das religiões pagãs, como as bênçãos de aspersão (de origem fálica) perderam a sua naturalidade ingênua e pura e se transformaram em ritos sofisticados e desprovidos de seu sentido genético. Igrejas pagãs foram transformadas pela força e embuste em templos cristãos, como a igreja rústica da deusa Lutécia, em Paris, sobre a qual foi erguida mais tarde a Catedral de Notre Dame, que guarda em seu porão os restos da igreja pagã.

Os herdeiros do Cristianismo primitivo sufocaram as práticas mediúnicas de que o Apóstolo Paulo dá notícias em sua I Epístola aos Coríntios, asfixiaram as manifestações do espírito (o pneuma grego), introduziram altares e imagens no culto cristão e negaram o princípio da reencarnação constante de vários trechos dos Evangelhos. Ao invés de desenvolverem a concepção cristã de Deus, restabeleceram a concepção mitológica de Iavé como Deus dos Exércitos e voltaram à violência bíblica que Jesus havia substituído pelo amor e a caridade, implantando as guerras de conquista em nome do Deus judaico antigo, chegando mesmo a adotar a imagem de um Deus iracundo e cruel, vingativo e ordenador de matanças e devastações do tipo bíblico da conquista de Canaã.

O Deus mitológico dos judeus absorveu em sua concepção, como Deus do Cristianismo deformado, os deuses da Antigüidade mais violentos, num processo de sincretismo religioso até então sem precedentes. Todas essas deturpações vingaram entre as populações incultas da Europa, a partir do século IV da Era Cristã, asfixiando a essência dos ensinos renovadores do Cristo e criando condições propícias para a revolta do ateísmo e do materialismo que explodiria na Era da Razão, após a Idade Média. A unicidade de Deus, que devia ampliar e elevar o conceito de Deus no mundo, transformou-se na multiplicidade dos deuses, no politeísmo dos altares carregados de imagens destinadas à adoração dos crentes interessados em milagres e no comércio de indulgências. A Reforma do século XVI, iniciada por Lutero, com objetivo de retorno ao Cristianismo puro, foi também desfigurada pela influência de inovadores violentos, como Calvino, apegado à violência bíblica.

Apesar de todas essas deformações, o Cristianismo, particularmente após a Reforma de Lutero e a publicação dos Evangelhos em línguas populares de várias nações, contribuiu poderosamente para modificar a selvageria dos homens; porque os princípios cristãos, vividos por clérigos humildes e humanos como Francisco de Assis e outros, conseguiram tocar os corações sensíveis em todo o mundo.Victor Hugo, em seu Prefácio de Cromwell, considerado como manifesto do romantismo, traçou em pinceladas ardentes a modificação profunda que o Cristianismo conseguiu, apesar de todos os percalços, promover no pensamento europeu, com reflexos mundiais. O conceito de Deus como o Pai era tão poderoso, correspondia de tal maneira aos anseios de populações cansadas de guerras e violências, que conseguiu superar os malefícios, embora em parte, das adulterações ocorridas em dois mil anos e ainda hoje em desenvolvimento. Essa constitui uma prova altamente significativa, na dura experiência religiosa da Terra, da importância do conceito de Deus para a evolução planetária. Por isso, apesar de tudo, podemos ainda esperar que o restabelecimento progressivo, lento e difícil, da pureza dos ensinos de Jesus, juntamente com o avanço cultural e científico do nosso tempo, que leva a Ciência à necessária conversão, prepare nos próximos séculos condições mais favoráveis à espiritualização racional da Terra. A razão conturbada por tantos absurdos deverá restabelecer-se em seus fundamentos espirituais, pois quem diz razão não se refere à matéria, mas ao espírito. Apesar das confusões materialistas a respeito de cérebro e mente, já se começa a compreender essa coisa tão simples e clara: que a razão é função do espírito e, como assinalou Rhine, que o pensamento é uma energia extrafísica. Enquadrando-se nessa nova perspectiva e conceito existencial de Deus, é possível que a guerra nuclear desapareça com o advento das novas gerações, libertas dos prejuízos do passado e do presente. É sempre melhor pensar no melhor.


O Deus dos Místicos

Os místicos povoam a Terra. Estão em toda parte com suas mãos postas e olhos lânguidos, voz macia na busca do Céu e tonitruante como os trovões de Iavé na condenação dos pescadores e nas ameaças do Inferno. São uma espécie dentro da espécie, quase uma antiespécie, unânimes na repulsa à condição humana. Adoram um Deus feito à sua imagem e semelhança, um anti-Deus que vem das páginas mais desumanas da Bíblia, do Corão, das escrituras sagradas do Egito, da Babilônia, da Índia e das entranhas de fogo de Moloch. Eles e seu Deus, ou seus deuses irascíveis e impotentes, criaram e alimentam o fogo das geenas para queimar o lixo da Terra, a que se ligam pelo cordão umbilical da hipocrisia. São capazes de tudo, menos de se atreverem a escalar as montanhas para roubar, como Prometeu, o fogo do Céu e com ele incendiar a Terra. Preferem o fogo rasteiro das geenas de Jerusalém. Todas as deturpações da Verdade, todas as distorções da natureza humana, todas as mentiras sagradas são obra dessa turba de loucos mansos ou do palavreado absurdo e dos sacrifícios cruéis de criaturas inocentes e puras.

Este quadro dantesco pode parecer injusto, mas bastam as três cruzes levantadas sobre o Calvário para mostrar que não é. A mística é uma górgora insaciável, com sua cabeleira de serpentes ocultas no jardim das Hespérides. Detesta a razão, o bom-senso, o equilíbrio. Prefere o fanatismo, o contra-senso, as profecias escatológicas. Vive em delírio, mas nunca se arrisca na voragem da loucura legítima, que é prerrogativa das criaturas heróicas. Os místicos acenderam as fogueiras da Inquisição e promoveram as Cruzadas, com suas tropelias e matanças. Têm a paixão morna e mórbida dos sádicos e as mãos cheias de raios jupterianos, a boca esfogueante de anátemas e condenações sumárias. O conceito de Deus que semeia entre os homens é o de um tirano bárbaro. As delícias celestes que apresentam aos crédulos é a indolência dos sibaritas e, como proclamou Agostinho, a sua maior ventura é ver, das acomodações eternas do Céu, a tortura eterna dos ímpios nos caldeirões ferventes do Inferno. Não conhecem a virtude do meio termo, que Tomás de Aquino aprendeu com o pagão Aristóteles, como se o Cristo não a houvesse ensinado. Preferem os extremos, sem perceber que sua covardia inata não lhes permite jamais atingi-los, a não ser a mão do gato, através dos sectários imbecis e, portanto, irresponsáveis.

Existem várias espécies de Místicas, desde a que mal se desvencilhou da magia primitiva, ainda encharcada com a água lodosa dos pântanos selvagens, até a dos fariseus carregados de orgulho e hipocrisia e a dos chamados Grandes Místicos, voltados para as fulgurações platônicas, no anseio de subir ao Céu através das grandes inspirações ou fazer que o Céu baixe até eles, como na anedota de Maomé e a montanha. Mas entre essas espécies diversas de tipologia inclassificável perpassam algumas figuras estranhas de homens-fantasma que rastejam humildes na terra, trocando os esplendores celestes pela dedicação humilde aos espoliados e sofredores. Por mais que brilhe a sabedoria dos grandes visionários, são esses vultos de piedoso masoquismo os que ainda justificam de certa maneira a existência da Mística. Por isso mesmo são eles os mártires de um ideal de sublimação humana, desprezados e explorados pelos potentados das instituições místicas. E nem por isso escapam à ilusão mística da fuga, que em última instância não passa de uma traição à espécie humana, nas vias tortuosas da alienação ao sonho, da esquizofrenia dosada pelo medo às punições eternas. E existem ainda os místicos da matéria, que se alienam à realidade sensorial na convicção pretensiosa de poderem transformar o mundo num Éden sem maçãs e serpentes. Condenam a violência assassina dos místicos religiosos e entregam-se à violência das atividades terroristas, acreditando-se capazes de atemorizar a humanidade com seus atos de loucuras. Negam a Deus e ao mesmo tempo se empenham em combatê-lo, reconhecendo praticamente a sua existência, sem compreenderem a contradição do círculo vicioso de suas idéias.

Tudo isso nos mostra que a Mística, em todas as formas de misticismo, mesmo as mais prestigiadas nos meios culturais, não passa de um estado patológico a que tanto pode se entregar um religioso como um ateu e materialista. Esse estado se define pela idéia fixa da insubordinação ao real. Por isso, Padovan e Marcel, Amadou e Abagnano, e quantos se enfileiram na mesma linha de pensamento, enganam-se a si mesmos ao proclamar a excelência cultural da Mística, atribuindo-lhe um papel superior ao da Filosofia. Acreditam na sabedoria infusa que desce do Céu sobre algumas cabeças privilegiadas, esquecidos de que Descartes, para fundar o método científico, teve de apresentar-se como homem simplesmente homem, ironizando com finura e cautela os homens mais do que homens. Foi necessário um aviador arrojado e pioneiro, como Saint-Exupéry, descobrir com seus vôos à Terra dos Homens com desertos, mares, montanhas e florestas, em que a humanidade luta sem cessar pela própria sobrevivência, para termos uma idéia aproximada da condição humana real e da batalha sem tréguas pela conquista real do saber. Não foram os gurus indianos ou os monges tibetanos, nem as patas do cavalo de Aníbal ou os comissários soviéticos que arrancaram a Terra da servidão teológica e ensaios incipientes do renascentismo para lançá-la na era tecnológica e no limiar da era cósmica. Foram os homens integrados no processo existencial, vivendo a vida e assimilando a experiência vital do mundo, alheios aos delírios dos místicos e à dogmática eclesiástica, à exegese mística dos textos antigos, foram esses homens que prepararam, no mundo inteiro, as novas condições da cultura terrena. Os verdadeiros sábios não saíram dos arquivos de pergaminhos e da convivência com as traças dos mosteiros, mas da luta com a terra e os bichos, do fazer e do pesquisar da inteligência em contato permanente e pertinaz com a realidade dos reinos da Natureza. É fazendo que se aprende, e foi através do fazer contínuo que o homem conseguiu atingir as entranhas da matéria e nelas descobrir o espírito como elemento natural e não sobrenatural. A vitória do saber existencial sobre a cultura mística foi mais longe do que se esperava, reformulando ao mesmo tempo a concepção da matéria e a concepção do espírito e integrando ambos na dialética da evolução.

Pelo prejuízo do passado na formulação arrogante de pré-juízos e pré-conceitos arbitrários, que saltavam do palavreado dos doutores místicos, ainda hoje se confunde a nova posição espiritual do homem com a posição mística de um passado recente. Precisamos compreender que o tempo dos místicos já se escoou, ironicamente, na realidade invencível das ampulhetas antigas. O Espiritismo não descende dos místicos. Sua linhagem se define nas gerações de cientistas e pesquisadores. Kardec não negou a validade do sentimento religioso, mas revelou a falácia do sobrenatural, mostrando que a existência humana transcorre no seio da Natureza, onde Deus se manifesta em termos fenomênicos, na fenomenologia real de suas leis criadoras. A inteligência imanente chama constantemente a nossa atenção, a atenção da inteligência humana, para a realidade das suas criações científicas. Ciência e consciência se encontram e se conjugam no plano do real, cujas múltiplas dimensões se desvendam aos nossos olhos numa gigantesca ampliação do mundo e da vida. E é do mundo e da vida que se recorta o conceito de existência, colocando o homem na posição de criador de si mesmo. De nada valem as longas preces dos fariseus nos templos ou nas esquinas das ruas, se os homens não se integrarem na realidade existencial, abrindo-se na convivência e no companheirismo, para o encontro em termos de razão e realidade. O Decálogo judaico, tão louvado como essência da moral cristã, pertence à época das civilizações agrárias e pastoris de um superado mundo teocrático. Para ajustá-lo ao presente, os teólogos e clérigos tiveram de cortar-lhe as prescrições mosaicas referentes aos costumes antiqüíssimos da Israel arcaica. Essas prescrições simplórias fariam rir aos crentes mais ingênuos de hoje. Isso não quer dizer que não haja no Decálogo uma orientação moral válida, mas nos limites do horizonte agrário e pastoril das civilizações da época. As condições atuais de vida e as conquistas culturais realizadas, a visão nova do mundo que hoje desfrutamos exigem uma nova ética, para a qual os Evangelhos, expurgados de suas implicações mitológicas – derivadas da cultura do tempo em que foram escritos –, poderão contribuir com mais eficácia, em virtude da visão universalista de Jesus, voltada para os tempos futuros.

Nada justifica a fusão que as igrejas cristãs fizeram do testamento judeu com o testamento cristão. Jesus, como reformador do Judaísmo, corrigiu os excessos místicos da Israel arcaica e apontou novos rumos à compreensão humana do humano. A condenação do formalismo judaico, do conceito errôneo e hipócrita de pureza, do racismo comum às civilizações fechadas e isoladas, bem como a superação dos absurdos preconceitos sexuais, como se vê no episódio da mulher adúltera, o perdão do roubo de zaqueu sob a condição de reparação do mal cometido, a violação do Sábado na sinagoga para atender um doente, a afirmação de que as prostitutas chegariam ao Reino dos Céus antes dos crentes vaidosos de sua pureza convencional são elementos indicadores de uma ética mais humana e ampla que deveria surgir no futuro. O próprio Apóstolo Paulo, tão fortemente marcado pelos preconceitos judeus do tempo, chegou a considerar que as Escrituras antigas estavam superadas pela reforma cristã. Não obstante, as igrejas cristãs até hoje vivem apegadas aos textos antigos, que consideram como a palavra de Deus.

A mística judaica projetou-se em cheio na mística cristã medieval, contrariando os ensinos e os exemplos de Jesus, que preferiu viver com o povo a isolar-se nos templos para cultivar a vaidade e a pureza mentirosa dos clérigos. Em Jerusalém e em toda a Palestina ele era conhecido como filho do carpinteiro José e sua esposa Maria de Nazaré. Mas a fantasia natural dos homens formados numa cultura mitológica, onde a realidade era o mito e não o real, o transformou no mito de um Messias nascido de uma virgem, segundo sistema mitológico em voga, como mostra Saint-Yves em seu livro As Virgens Mães. Além disso, o menino nascido em Nazaré, nas condições normais dos filhos de famílias pobres da época, passou a ser considerado como natural de Belém, na linhagem de David, para enquadrar-se nas exigências proféticas, como Renan no século passado e Charles Guignebert em nosso século demonstraram de maneira incontestável. A superstição do sobrenatural e o conceito negativo de sexo chegaram a modificar a data do recenseamento determinado por César Augusto, para arranjar uma justificativa supostamente histórica para o nascimento mitológico em Belém. Que interesse teriam os romanos, que faziam recenseamento para saber onde cobrar os impostos, em deslocar famílias judias de suas cidades para atender a um capricho de genealogia dos judeus? A mentalidade mitológica era alegórica, apegada aos símbolos, aos mitos. Essas deturpações não foram certamente intencionais, mas forçadas pela necessidade imaginária de enquadrar Jesus nas profecias judaicas. Não obstante esse esforço dos evangelistas, de que Paulo não participou, os judeus ortodoxos, que conheciam bem a história real de Jesus, rejeitaram o Messias. Paulo jamais se referiu ao nascimento virginal de Jesus em Belém. Isso nada significava para ele, que se interessava pelos ensinos do Mestre e não pelo ajustamento de sua figura às predições bíblicas. Apesar de sua formação judaica, e dos fundos resíduos do moralismo judeu que aparece em suas epístolas, era um homem de cultura universalista e soube superar esses pormenores ingênuos.

Não podemos querer, em nossos dias, sustentar essas ficções do passado mítico de Israel e alimentar ainda o misticismo de um rabinato falido, que negociou com os romanos a sua sobrevivência e entregou à condenação o rabino popular, reformador da religião arcaica, ao poder romano. Os cristãos que aceitam essa situação imoral, criada pelas ambições humanas do tempo, são cúmplices retardatários dos rabinos de há dois mil anos. Aceitam de mão beijada, em nome das tradições igrejeiras posteriores, a deformação da figura de Jesus em mito, sem se lembrarem de que ele se sacrificou para combater os mitos e a hipocrisia da época. Nessa inconsciência mística, temerosos do pecado, na verdade pecam de maneira irremediável contra o objetivo principal da missão do Mestre, que era modificar a concepção de Deus entre os homens. O conceito cristão de Deus não se compadece com esse estranho apego às tradições judaicas. É evidente que, nessas condições, o materialismo teria de se avantajar em nosso tempo.


A Loucura de Existir

O conceito de existência impôs-se à Filosofia Contemporânea pela necessidade de se distinguir o simples ato de viver, comum a todos os seres vivos, do ato complexo e profundo de um viver ascensional. Andar, mover-se de um lado para outro, buscar alimentos, evitar perigos, entregar-se às funções instintivas de conservação e reprodução da espécie todos os seres vivos fazem naturalmente. Mas escalar uma montanha exige intenção, pensamento, vontade ativa, guiada por objetivos definidos, um esforço que implica todas as possibilidades vitais do homem postas a serviços da sua subjetividade total: do saber, do sentir, do querer, do amar, do aspirar e do fazer. Todos esses dispositivos interiores do ser humano, que são as molas do seu existir, e outros facilmente perceptíveis numa análise mais minuciosa, constituem a sua subjetividade. Por isso a existência é subjetiva, está em nosso íntimo, pertence ao que podemos chamar de psiquismo e não ao soma, ao corpo material. Há no homem dois seres que se conjugam na sua facticidade, ou seja, na sua organização, com a qual ele surge feito na existência e não por fazer. Há o ser do corpo e o ser da existência. No ser do corpo acumulam-se os elementos vegetativos da vida e no ser da existência projetam-se os impulsos de transcendência. A ligação dos dois seres se faz por um sistema de ação e reação. O corpo sofre a ação do meio sobre ele e capta o meio através da percepção, reagindo imediatamente através do fazer. Perceber e fazer constituem assim o fundamento dinâmico de viver, que interliga os dois seres do homem e, numa conseqüência dialética, liga o homem ao mundo.

Se essa ligação com o mundo se processa em ternos de acomodação, o homem passa simplesmente a viver no mundo. Mas se ela se verifica em ternos de projeção, o homem existe no mundo. A existência é um ato de afirmação do homem diante das duas realidades que lhe são dadas ao nascer: a sua facticidade e a facticidade do mundo. Essa afirmação do homem diante de si mesmo e do mundo implica a sua decisão de aceitar o desafio do mundo para conquistá-lo, dominá-lo e superá-lo. A síntese final de todo esse processo é a dialética da evolução, que caracteriza o homem como um projecto, um ser lançado na existência como uma flecha em direção a um alvo, que é a transcendência. Por isso o homem nasce, vive e morre. Esse passar pela vida no mundo é simplesmente o trajeto que todos têm de percorrer. É também uma facticidade, algo que já está feito, que o homem recebe como um itinerário que ele tem de seguir, sem outra opção a não ser a fuga, que lhe oferece várias opções à sua liberdade relativa: a morte antecipada, a inadaptação esquizofrênica, a loucura, o delírio místico, a alienação de sua subjetividade à ilusão material e assim por diante. Em todas essas opções, porém, o homem seguirá o itinerário como um ser que se projeta do nascimento à morte por determinação das leis naturais. Por isso, Sartre entendeu que o homem é uma frustração, pois não consegue atingir a transcendência, uma vez que acaba na morte. A alienação mental de Sartre à visão materialista do mundo teria de levá-lo a essa frustração de si mesmo. Heidegger e Jaspers discordam dessa posição, o primeiro vendo na morte o completar do homem como ser, e o segundo mostrando que a transcendência começa no plano horizontal da existência, desde o nascimento, para depois se projetar no plano vertical da busca de Deus. Mas essa busca não pode ser acomodatícia, o homem se abandonando nas mãos de mestres e guias, de instituições sectárias e formalistas, acomodando-se na responsabilidade alheia e considerando-se privilegiado e salvo pelo sangue de Cristo ou pelos sacramentos formais desta ou daquela igreja ou ainda pelas instruções de livros sagrados ou de sabedoria oculta, reservada aos supostos escolhidos de Deus. A busca de Deus é a busca da Verdade, a descoberta por cada um da essência do real, a superação do ilusório. Essa a razão porque o misticismo, rústico ou refinado, inferior ou superior, não é mais que um meio de fuga, de deserção do homem na existência. Fundado no conceito do sobrenatural, o misticismo nos afasta do natural e nos lança no desfiladeiro do orgulho, da pretensa superioridade, geralmente revestida de uma leve camada de verniz de humildade convencional que não passa de fingimento, hipocrisia. Acostumado aos arranjos das conveniências terrenas, o místico transfere insensivelmente a sua busca de proteção e companheirismo aos planos do espírito e se entrega à ilusão de um protecionismo exclusivista que acabará fatalmente em frustração e revolta. Quantos místicos passaram da alienação espiritual à alienação materialista em virtude de decepções sofridas em sua leviana ilusão de intimidade interesseira com Deus. Cada ser humano é dotado de potencialidades divinas e precisa confiar nessas potencialidades para transformá-las em ato, em realidades atuantes. Esse é o trabalho de cada um, intransferível, de responsabilidade pessoal. A fé em si mesmo é o primeiro passo no caminho ascensional da fé em Deus.

Para os que se acomodam na estrutura social que encontrou feita, apoiando-se nas próprias injustiças do mundo, entregue à rotina, a atitude existencial é simples loucura. Quando Jesus atingiu a idade que devia iniciar a sua missão na Terra, seus parentes e amigos o consideram tomado de loucura. Sua mãe e seus irmãos foram buscá-lo em pleno trabalho e tentaram levá-lo de volta para casa. Muitos ainda hoje o consideraram como um jovem alucinado que pretendeu apresentar-se ao mundo como encarnação de Deus. Jamais ele cometeu esse engano. Dizia-se ao mesmo tempo filho de Deus e filho do Homem e explicava que todos poderiam fazer o que ele fazia e até muito mais. Os que não podiam negar a evidência dos seus poderes e a grandeza do seu saber o transformaram em mito, chegando ao absurdo de reconhecer na sua pessoa o próprio Deus encarnado. E quase dois mil anos depois Benét Sanglé publicava em Paris o seu famoso livro La Folie de Jesus (A Loucura de Jesus), tentando demonstrar que o Messias cristão sofria de loucura hereditária. Essa estranha forma de loucura, que se traduzia em atos de amor, lições e exemplos da mais alta sabedoria, dividiu a História Universal em duas fases e transformou o homem e o mundo. Nunca a existência brilhou tão poderosamente na Terra como na loucura de Jesus, que se tornou o arquétipo do futuro existente da Filosofia atual. Sua crucificação entre dois ladrões, o bom e o mau, selou em sangue e luz sua existência, que se passou entre os humilhados e entre eles se findou. A elaboração mítica desse sacrifício dramatizou em estilo grego a sua morte, que os mitólogos consideram como paródia da morte de Osíris. A comparação mais certa seria com Sócrates, que também existiu e morreu entre humilhados, recusando-se a fugir à condenação dos homens acomodados. O mau ladrão precisava estar ali, ao seu lado, porque ele não rejeitava os maus, procurava compreendê-los e despertá-los. A existência de Jesus, ainda hoje negada por alguns espíritos sistemáticos, que alegam a falta de provas históricas, provou-se por si mesma, pela existência. Nenhum mito poderia ter existido como ele existiu. (Note-se a razão do grifo, distinguindo o conceito filosófico de existência de existir comum). O testemunho dos apóstolos e discípulos, que morreram por ele após a sua morte, é mais importante que documentos históricos. O testemunho de Paulo, que não o conheceu mas perseguiu os seus seguidores para depois se integrar no pensamento cristão, vale mais que qualquer referência de historiador antigo, sempre voltado para figuras exponenciais do tempo. E hoje as pesquisas universitárias não deixam mais a menor dúvida quanto à existência real da figura de Jesus. O próprio Sanglé, para provar a loucura hereditária de Jesus, teve de mergulhar nessas pesquisas, examinando a linhagem de Jesus, sem o que a hipótese da hereditariedade seria vã. Temos ainda a prova dos evangelistas, homens de formação mitológica, que não puderam evitar pintá-lo à maneira do tempo e da cultura em que viviam. Para esses homens o colorido do mito era mais válido que o real. Não podiam fugir a esse condicionamento mental. Vemos isso claramente no Evangelho de João, o último evangelista e o derradeiro apóstolo a morrer. João começa o seu Evangelho com o mito do Verbo, de origem egípcia, desenvolvido pelas escolas gregas de Alexandria. Vivendo então em Éfeso, por longos anos, João impregnou-se das idéias filosóficas da era helenística e foi o precursor de Agostinho e Tomás de Aquino na tentativa de explicar o Cristianismo pelo pensamento de Platão e de Aristóteles. O que ressalta no evangelho de João, mistura de realidade e mito, são as descrições minuciosas de episódios da vida de Jesus, como a da sua discussão com os fariseus num dos pátios do Templo, em que Jesus chama os fariseus de filhos do Diabo. São episódios vivos, de uma realidade flagrante, em termos de relatos clássicos realistas (o naturalismo literário da época), que destoam das expressões grandiosas e obscuras da Filosofia Alexandrina.

Esse curioso contraste nos mostra a dificuldade de uma transição do plano dos mitos, do idealismo helênico, da especulação filosófica ou teológica para o plano existencial. A herança das civilizações agrárias, cujas raízes se afundam nas selvas primitivas, pesa ainda esmagadoramente no psiquismo humano. A aceitação do método científico pelo homem atual, apesar de todo o prestígio da Ciência e dos avanços tecnológicos dos últimos anos, encontra barreiras muitas vezes intransponíveis na maioria das pessoas, mesmo entre as que militam no campo de estudos e pesquisas. Essa situação criou sérias dificuldades para o esclarecimento racional de problemas religiosos e espirituais. Já assinalamos o prejuízo causado por Kant com sua delimitação arbitrária do campo científico. Até hoje a autoridade kantiana prevalecia sem contestação possível, e ainda prevalece em muitos espíritos sistemáticos. A Ciência tem os seus limites no sensível platônico, na realidade dialética dos contrastes. Passando desses limites ela não pode mais funcionar, pois não dispõe dos recursos sensoriais para investigação. Essa posição, ao contrário dos próprios objetivos da crítica de Kant, reforçou as heranças místicas e, conseqüentemente, a posição religiosa formalista, apegada a evidentes resíduos mágicos irracionais. A luta contra a razão, apoiada nesses resíduos e na idéia do sobrenatural inverificável e incontrolável, fortaleceu-se também com essa tese. Por outro lado, a recusa da Ciência em ampliar os quadros de suas pesquisas no terreno aparentemente fugidio e escorregadio dos fenômenos paranormais, abandonando o terreno às interpretações religiosas e à ganância dos charlatães, forçou muitas inteligências insatisfeitas a aceitar a dogmática das igrejas e procurar enriquecê-las com estudos e princípios pseudocientíficos. O problema da existência de Deus, já de si bastante complexo, revestiu-se de novos aparatos culturais sofisticados, que exaltavam o saber infuso dos homens mais do que homens da ironia cartesiana. Temos hoje uma vasta literatura cristã na mesma linha de sincretismo da literatura medieval. Essa literatura satisfaz os espíritos de tendência mística que repelem a aridez dos tratados científicos e esperam encontrar nela os esclarecimentos que a Ciência se mostrou incapaz de lhe proporcionar.

O que sofreram cientistas como Crookes, Richet, Lodge, Zöllner, Gibier, Crawford e tantos outros, por se aventurarem e dar prosseguimento à pesquisa científica além dos limites marcados por Kant, mostra e prova o apego dos homens, mesmo quando cientistas, ao formalismo cultural anticientífico.

Como advertiu Kardec, numa posição tipicamente existencial, “a Natureza é uma só e a Ciência tem o dever de investigá-la até onde as possibilidades humanas o permitirem.” Os fenômenos sobrenaturais não podem existir fora da natureza. Se são fenômenos, pertencem à Natureza e devem oferecer condições favoráveis à investigação científica. Levantou-se a falsa acusação de que esses fenômenos eram puramente ocasionais, impossíveis de serem repetidos segundo as exigências da Ciência. Os fatos, como assinalou Lombroso, são fatos e podem ser examinados e investigados. A questão, afirmou Kardec, é puramente metodológica. O método científico tem de ser adequado ao tipo de objeto a que se aplica. As discussões a respeito se prolongaram, até que a própria investigação científica do nosso tempo rompeu naturalmente os limites arbitrários. A função da Ciência é esclarecer mistérios, torná-los inteligíveis. Felizmente a Física, que Rhine chamou de Ditadora das Ciências, foi a primeira a invadir o domínio secreto dos mitos, ampliando ao infinito as dimensões estreitas da realidade física. O atrevimento dos físicos, tomados da loucura existencial, derrubou as muralhas do preconceito científico. Não há mais razão para qualquer retração da Ciência diante dos mistérios que a desafiam. A segurança dos métodos e dos instrumentos atuais de pesquisas garantem a validade dos resultados.


A Paraexistência

Embora conheçamos as limitações da nossa condição tridimensional e saibamos que as dimensões da realidade ultrapassam de muito as nossas restritas possibilidades de percepção, queremos viver tranqüilos em nosso pequeno mundo sensorial. Queremos, e isto é justo, ter segurança, ter a certeza de que nossa existência específica não será perturbada por invasões estranhas. Nossos objetivos existenciais estão definidos em nossa subjetividade própria e temos a consciência de que precisamos realizá-los. O instinto de conservação e o impulso vital são os esteios permanentes da nossa vontade natural de viver enquanto possível. Mas, apesar disso, nossa existência, desde que o mundo é mundo, tem sido invadida por uma existência circundante, uma espécie de paraexistência que nos obriga a reconhecer que temos vizinhanças incômodas. Verificamos isso nas próprias condições das cidades. Vivemos em São Paulo, por exemplo, numa área central que chamamos a cidade (the city), mas ao redor desse miolo expandem-se os bairros, as zonas suburbanas e a zona rural. Temos assim a cidade e a paracidade. O exemplo é tridimensional, mas é desse plano que temos de partir para a boa compreensão do problema.

Nas dimensões cósmicas a situação é a mesma. Estamos na Terra e queremos passar nela a nossa atual existência. Mas ao nosso redor há a zona lunar e as zonas das órbitas planetárias, e sabemos que além delas temos ainda a imensidade da Galáxia a que estamos atrelados, com milhões de mundos e de sóis inimagináveis. Nossas sondas espaciais e nossos astronautas, neste fim de século, andam pesquisando essas extensões siderais em que, num meio fluídico, aparentemente vazio, os mundos estão suspensos e circulam em órbitas precisas. Quase sabemos de tudo isso, mas temos uma visão geral abstrata, que não nos perturba, antes nos embala em sonhos e esperanças.

Radiações solares, estelares e lunares nos envolvem, incidem sobre nós de maneira inevitável, e isso não nos atemoriza, pois ocorre de todos os tempos. Pasteur, em sua loucura existencial, descobriu uma faixa perigosíssima da paraexistência que nos cerca no mesmo plano tridimensional em que vivemos. Ninguém quis acreditar naquele absurdo de pequeninos animais invisíveis que podiam invadir o nosso corpo e nos levar ao sofrimento e à morte. Mas hoje sabemos que existem bactérias microbianas e vírus que não deixam em paz o sistema defensivo secreto do nosso organismo. Toleramos essa realidade incrível e tratamos de pesquisá-la para melhor nos defendermos. Os físicos descobriram a paraexistência de um mundo de vibrações terrenas e cósmicas que nos atingem e podem destruir-nos facilmente. Não há como refutar esse absurdo e o suportamos confiando em nossa estranha segurança milenar. Nossas cidades são cercadas e pontilhadas de áreas tradicionais em que, segundo dizemos, os mortos repousam. Pretendemos retê-los ali, enterrados, entregues ao mundo dos vermes que brotam do próprio corpo apodrecido e surgem de suas moradas subterrâneas. Sabemos que esses cemitérios também nos esperam e que, mais hoje, mais amanhã, estaremos mortos e enterrados ou mortos e incinerados no forno dos crematórios. E nem por isso deixamos de viver, querer e fazer, enquanto isso for possível, às vezes até o extremo limite, à última hora e o último segundo da nossa existência.

Não somos inconscientes, temos plena consciência de tudo isso e, entretanto, vivemos como bois de corte no curral ou galinhas no galinheiro, disputando migalhas entre nós, lutando sem cessar por coisas mínimas, como se a nossa existência não pudesse acabar agora mesmo. Por outro lado, achamos a nossa situação absurda perfeitamente racional e normal e rimos dos que falam que temem a morte. Entretanto, desde todos os tempos, desde as selvas até às civilizações, sabemos que criaturas mortas invadem a nossa zona existencial, mostrando-se vivas, falando, dando sinais inteligentes de sua presença, servindo-se de médiuns como de intérpretes e até mesmo tornando-se visíveis e palpáveis como se ainda estivessem de posse do seu corpo já destruído. Isso assusta quando ocorre, mas se demora a ocorrer de novo logo vamos nos esquecendo do estranho fato e nos contentamos com explicações alucinatórias bem montadas pelos especialistas em religião ou ciência.

Esse levar a vida como ela é, esse aceitar da vida e esse apegar-se a ela com unhas e dentes devia parecer-nos estranho, mas não parece. É o normal, como se diz. Heidegger lembrou que nos livramos levianamente da morte através de um truque de linguagem, empregando a partícula reflexiva se. Dizemos morre-se referindo-nos aos outros, o reflexivo não nos atinge, não nos envolve. Temos a nossa vida e a nossa morte está distante, talvez nem chegue. Exorcizamos a morte com jogos de palavras e trapaças do raciocínio. Ela desaparece da nossa mente e voltamos alegremente a viver, e mesmo que penosamente insistimos na vida. Bastaria um pouco de reflexão sobre tudo isso para compreendermos que somos instrumentos de uma orquestra, não músicos nem muito menos maestros-regentes. A vida, o mundo, as coisas, os vivos e os mortos não nos pedem licença para existir, existem por si mesmo ou par la force des choses, ou talvez, por uma determinação misteriosa de estranhas circunstâncias. Pode ser que Deus exista, pode ser que não. Se existir, é ele o responsável por tudo. Se não, tudo pode ocorrer por simples acaso. Esta acomodação é característica do vivente, não do existente. O homem que tem consciência da sua existência, o existente, esse não se conforma com levar a vida, pois quer existir e precisa existir. Para ele, Deus é a fonte da vida, a inteligência das coisas e dos seres, o poder inteligente que tem consciência de sua Criação e dirige toda ela em seus mínimos detalhes, preparando os efeitos necessários para que ela atinja a sua finalidade prevista. Veja-se a displicência de um filósofo existencial, como Sartre, quando trata dessas questões fundamentais. A sua lucidez e o seu critério filosófico desaparecem quando ele se afasta das questões puramente existenciais. Para explicar o ser foi obrigado a lançar mão de um princípio metafísico: o em-si da Filosofia clássica de Hegel, e o transformou numa coisa oblonga e viscosa, que existe em si mesmo, sem consciência de nada, como um pinto no ovo, e que de repente sai da casca e se projeta na existência. Com essa piada, que até nos faz ouvir o pio do pinto ao sair da casca, ele liquida o assunto e passa a tratar do ser na existência, ou seja, do homem no mundo. Isso nos mostra que há graus de existentes, pois há existentes que se comportam como simples criaturas que vivem, quando tratam dos mais graves problemas existenciais.

Leibniz, pelo contrário, se apega ao conceito da mônada e com ele fundamenta o ser. Kardec pesquisa durante quinze anos, exaustivamente, doze deles na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, e chega à conclusão de que existe uma criação dos seres através de um processo dialético assombroso, inteligente e consciente, teleológico, objetivando fins definidos, e que esse processo, por tudo isso, só pode ter sido criado e posto em prática por uma Inteligência Cósmica. E acaba revelando-nos, através de pesquisas rigorosas, que ao redor da nossa existência no mundo existe o que hoje podemos chamar de uma paraexistência de seres desprovidos de corpo material, mas dotados de um corpo espiritual. Esses seres, como os do mundo das bactérias ou como o das radiações invisíveis, exercem influências maléficas e benéficas sobre nós. Os cientistas atuais investigam o problema no campo parapsicológico, chegando às mesmas conclusões, e os cientistas soviéticos, hoje fundamente empenhados, descobrem o corpo bioplásmico, que ao mesmo tempo explica a existência de seres corporais fora do plano material conhecido e a possibilidade de existência humana diferenciada nas dimensões da antimatéria, onde os físicos constataram a existência de elementos químicos do nosso mundo em direção e sistema ao inverso do nosso. A paraexistência espiritual se define em termos de existência antimaterial, no exato momento em que Rhine, Pratt, Soal, Carington e outros, nas Universidades americanas, européias e asiáticas, provam e comprovam a sobrevivência do homem após a morte física. Como contestar tudo isso? Através de argumentos falaciosos e trapaças teológicas e filosóficas, como fizeram com Kardec? Isso não é mais possível, está fora de qualquer viabilidade. Rhine afirma que o pensamento não é físico, não se submete às leis físicas conhecidas. Conseqüentemente, existe no homem um conteúdo extrafísico e a mente, que não é física, rege esse conteúdo. Carington, na Universidade de Cambridge, Inglaterra, formula uma teoria da mente extrafísica, constituída de psicons, que seriam uma espécie de átomos do plano mental. Vasiliev, soviético, pretende provar que a teoria de Rhine e Carington é falsa e dedica-se a uma série de pesquisas rigorosas, chegando declaradamente à conclusão de que não encontrara provas em contrário. O que mais esperam os defensores da hipótese vazia do Acaso e os pregoeiros de uma sobrevivência nebulosa, em que a alma aparece como assombração e não como gente, como ser que volta à forma limbosa, segundo Sartre? De que recursos dispõe a cultura atual para provar que Deus não existe?

Se a nossa existência é subjetividade pura, como querem os filósofos existenciais, não é evidente que só existimos no inteligível e não no sensível, como queria Platão? Seria possível, filosoficamente, refutar os dados da Ciência? Podem os teólogos continuar sustentando as suas deduções ilógicas em face das provas múltiplas e progressivas das induções científicas?

As igrejas insistem nos seus dogmas revelados, na autenticidade da palavra de Deus escrita pelos homens, na validade dos fundamentos divinos de sua instituição, mas os templos se esvaziam e o poder institucional declina. A paraexistência substitui as instâncias do mundo sobrenatural do passado. O terrorismo diabólico desaparece nas provas diárias. O mito do Diabo serviu e serve apenas de instrumento para os espíritos maldosos, esses paraexistentes que enxameiam ao nosso redor na Terra e querem submeter-nos pelo medo aos seus caprichos, na busca de sensações que não podem mais obter, mas que conseguem nas relações mediúnicas, embora de forma indireta. Para uma pessoa dotada de mediana cultura atualizada, em nosso tempo, as carradas de ilusões religiosas do passado não podem mais subsistir. Seu destino é o arquivo dos museus que guardam os resíduos de tempos mortos. Para um materialista esclarecido quanto aos problemas atuais da matéria, sua constituição e sua natureza, as funções e suas possibilidades, a sustentação de uma concepção materialista do Universo é simples suicídio intelectual. O dualismo espírito-matéria é apenas circunstancial e funcional. A matéria é energia sedimentada para servir aos desígnios do espírito, como a argila é terra molhada para servir aos desígnios do oleiro. Por trás de cada realidade funcional existe uma inteligência criadora. Como negar, por trás da realidade funcional do Universo, a existência da Inteligência Criadora a que tradicionalmente chamamos Deus?

A mente, que não é física, age por vias não físicas sobre a matéria. Essa é uma das conclusões decisivas da pesquisa parapsicológica do laboratório da Duke University. Rhine a proclamou como conquista definitiva da Ciência em nossos dias. Os seus opositores não conseguiram até agora nenhuma esperança de prova em contrário. A matéria radiante, ou quarto estado da matéria, provado por Crookes, é o plasma físico que os soviéticos hoje consideram como a matéria do corpo bioplásmico. Quem quiser vangloriar-se do espírito forte e dotado de cultura superior, não pode mais usar as armas quebradas do materialismo, pois parecerá simplesmente atrasado e desatualizado. Estamos em pleno psychic boom, segundo assinalou o último suplemento de ciências da Enciclopédia Britânica. Essa explosão psíquica assinala a abertura de uma nova cultura, em que o homem se liberta da hipnose da matéria para mergulhar na realidade substancial. Entre o existente e o paraexistente multiplicam-se os interexistentes, médiuns de aguda sensibilidade que vivem praticamente num intermúndio (como os deuses gregos antigos) relacionando-se ao mesmo tempo com os homens e os espíritos e servindo de intermediários entre eles. Os sentidos humanos rompem as malhas estreitas da rede sensorial orgânica para captar a realidade extra-sensorial. A paraexistência se revela interpenetrada na existência. Os mistérios do passado se esclarecem através do acelerado desenvolvimento científico e tecnológico dos nossos dias. O Céu, o Purgatório e o Inferno estão aqui mesmo, no nosso planeta.


A Ação de Deus

A ação providencial de Deus na vida humana, segundo o conceito de Deus comum às igrejas cristãs – e a quase todas as demais igrejas –, decorre dos tempos mitológicos. Fez-se muito alarde da originalidade do providencialismo judeu e Dilthey o inclui entre os três elementos fundamentais da consciência moderna, fundidos no caldeirão medieval. Mas a verdade é que ele existiu em todas as religiões antigas. O conceito antropomórfico de Deus dominou o mundo desde todos os tempos, pois o homem, superadas as fases primárias de sua evolução nas selvas, com as concepções míticas ligadas aos reinos naturais, passando progressivamente do totemismo à antropolatria, só conseguia imaginar Deus à sua imagem e semelhança. Por isso os deuses sumerianos, babilônicos, egípcios e persas, indianos e gregos estiveram sempre muito ligados às atividades humanas de seus adoradores. Só na Alta Filosofia Grega o conceito de Deus se distanciou do homem e tornou-se indiferente à realidade existencial, como se vê em Platão, Aristóteles e Pitágoras. Na concepção bramânica os homens nascem da própria anatomia humana de Brama, determinando as castas de um sistema social impermeável. E em todas as religiões antigas os homens prestavam homenagens aos deuses precisamente para obterem suas graças e providências na solução de problemas individuais ou sociais. Os deuses mitológicos chegavam a participar dos trabalhos e das guerras humanas, interferindo na vida íntima dos seus adoradores e até mesmo conquistando as mulheres belas, pelas quais se apaixonavam. Pitágoras era considerado filho de Apolo e não de seu pai Mnésicles. Revelando suas profundas raízes mitológicas, Iavé ordenou a saída do clã de Abraão, Isaac e Jacó da cidade de Ur, na Mesopotâmia, e conduziu-o ao Egito, para depois, através das guerras implacáveis do relato bíblico, levá-lo à conquista de Canaã. Os romanos obedeciam às ordens de Júpiter e sua Corte, submetendo-se ainda aos manes ou deuses familiares, que interferiam em todas as suas atividades. As procissões piedosas das religiões cristãs têm sua origem nas procissões dos deuses-lares de Roma, carregados em andores pelas ruas para que não se esquecessem de auxiliá-los em seus negócios, disputas e empreendimentos. Iavé não fez mais do que seguir o exemplo condenável dos deuses anteriores, quando mexericava nas tendas do deserto a ponto de se tornar alcoviteiro, como ao defender o direito de Moisés de arranjar mais uma esposa, além das que já possuía.

Não é necessário gastarmos muito tempo e papel com essas questões que figuram amplamente na Bíblia e nas demais escrituras sagradas das religiões antigas. Basta-nos assinalá-las como dado importante que revela o engano universal de considerar-se o providencialismo como originalidade absoluta judeu-cristã. O mesmo se dá com a idéia de criação do mundo a partir do nada. Na verdade, a Bíblia não explicita o fato suposto de que Deus criou o mundo do nada, sendo mesmo contraditória em seus livros no tocante a esse ato de magia. O conceito do nada considerado por Kant como conceito vazio, desprovido de objetos, foi longamente debatido pelos filósofos gregos e adquiriu vários sentidos contrários à idéia específica do vazio absoluto. A idéia de que o nada é o não-ser (aquilo que não é) exige a existência de um ser do não-ser, que supriria o vazio, desfazendo o nada. A Ciência atual, amparada pelas pesquisas da Astronáutica, não encontrou o nada em parte alguma. Assim, a idéia do nada se tornou absurda, filosófica e cientificamente. Coube a Filon, de Alexandria, filósofo judeu, dar a definição mais simples e clara do ato de criar: Deus criou o que não existia. Criar, nesse caso, seria tirar do nada alguma coisa. Mas esse nada não será absoluto, pois sua relação com o criador existe deste e da coisa que se designou como sendo nada em relação ao que foi criado. Por exemplo: o escultor tira uma estátua do nada, sem dispor de modelo ou idéia preconcebida, mas o nada, no caso, é apenas simbólico, pois ele a tirou da sua inspiração e do material de que se serviu. O próprio Filon chama Deus, como Criador, de Demiurgo, que era para Platão o Deus subalterno ao qual Deus proporcionava a matéria para criação de um mundo. É evidente que a idéia de criar do nada não representa nenhuma originalidade específica dos judeus ou dos cristãos. Abagnano diz mesmo que ela não consta da Bíblia.

Essas questões precisam ser expostas para vermos que o problema da existência de Deus foi envolvido em muitas trapaças do pensamento, em conseqüência dos desvios místicos e das exigências dogmáticas. Para provar a existência de Deus não se precisava inventar originalidades inexistentes no pensamento judeu-cristão. A grande originalidade do Cristianismo não foi a palavra nada, mas o sentido e a força de universalidade dada à palavra Pai por Jesus.

Platão, Plotino e os neoplatônicos foram mais precisos quando propuseram a tese de que Deus criou por emanação de si mesmo. Essa emanação podia ser do pensamento, aglutinando-a à matéria dispersa para estruturá-la em átomos e mônadas; como podia ser um processo de tipo ectoplásmico em que a própria matéria seria criada por Deus em si mesmo e expandida no pré-cosmo (o inefável de Pitágoras) para criar não apenas a Terra mas o Cosmo. De qualquer maneira, porém, não se poderia negar uma realidade anterior, que se constituiria do espaço cósmico e da existência de Deus. E essa incógnita não pode ser resolvida.

Mas tínhamos de tratar de tudo isso, embora de forma sumária, para tentarmos uma solução do problema da ação de Deus. Esse problema está hoje mais próximo de nós, graças ao conceito existencial de Deus. Remontando do efeito à causa, já vimos que não se pode negar a ação de uma Inteligência imanente na realidade existencial. Ninguém admitirá que uma flor desabrocha sem motivo, que uma pedra cai sem causa. Da mesma maneira, não podemos admitir que um Universo apareça tirado da cartola de um mágico. Não ficaria bem atribuirmos a Deus o papel de prestidigitador. Há, pois, uma causa e disso estão seguras a Ciência, a Filosofia e a Religião. Ao menos nessa questão elas estão de acordo. Já vimos que a idéia de Deus como Acaso é contraditória, pois teríamos um acaso inteligente; que a idéia de Deus como um homem gigantesco é simplesmente grotesca e que a idéia de Deus como o número 1 a desencadear a Década é bela e poética, mas tão inviável como as anteriores. A única admissível é a de uma Consciência Cósmica, que não sabemos como surgiu ou se sempre existiu, mas que responde pela estruturação da realidade com que nos defrontamos no mistério do Infinito. Temos pelo menos a certeza do efeito, no qual nos integramos como sua parcela insignificante, mas pensante e inquiridora.

Deus, pela sua transcendência, é o Criador, mas pela sua imanência se integra na Criação. Existente Absoluto, está presente em todas as coisas e em todos os seres. No homem a sua presença não está apenas na ação das leis naturais, mas também e principalmente na consciência humana, que implica toda a sua estrutura ôntica, todo o seu ser. Foi o que Jesus explicou aos judeus, quando disse: Não está nas vossas escrituras que vós sois deuses? Porque toda criatura humana é um deus em potencial. O corpo material está para o homem como o Universo está para Deus. O homem cria o seu próprio corpo e isso não só através das leis genéticas, mas também pela sua mente. Na Parapsicologia define-se a ação da mente sobre o corpo como fenômeno psicapa, de ação da mente sobre a matéria. Cada embrião humano traz em si mesmo o plano de seu corpo, como a semente de uma planta traz o plano da árvore em seu interior. Mas se, no vegetal e no animal, esse plano se desenvolve por si mesmo, através das leis naturais, no homem o problema é mais complexo e o espírito colabora no desenvolvimento do plano. A mente, que não é física, atua sobre a formação do corpo de acordo com o esquema a desenvolver. A integração espírito-corpo se processa através de todo o período de gestação. A mente age como sonâmbula, sua ação é praticamente catalítica, mais de presença do que propriamente de ação. Ela sabe o que será o seu corpo e o estrutura lentamente, sem pressa, na medida do tempo que lhe é concedido. As leis do espírito controlam essa atividade sonambúlica. Duas linhas de hereditariedade estão presentes no embrião: a hereditariedade genética e a hereditariedade psíquica. A primeira vem dos genes paterno e materno, a segunda vem do próprio espírito, do ser espiritual que se reencarna, das experiências, acertos e erros do passado. A facticidade nasce com a criança, não lhe é dada arbitrariamente, nem ao sabor das influências do meio. No seu desenvolvimento embrionário, a criança já estava enquadrada nas condições mesológicas que iria encontrar. Tudo havia sido previsto e determinado. Essa a ação de Deus, através das inteligências que o servem. E a presença de Deus se faz sentir na estrutura consciencial da criança. Os princípios fundamentais da consciência, os vetores da atividade psíquica, abrangendo todas as instâncias do psiquismo, ali já se encontram, amadurecendo para a manifestação nas condições biofisiológicas das primeiras idades. Por isso diz Kardec: A criança nasce com a roupagem da inocência. Por trás dessa roupagem encontra-se a personalidade adulta que irá se definindo aos poucos, no ritmo do desenvolvimento orgânico. A teoria materialista da tábula rasa dos empiristas ingleses, que considera a mente infantil como uma página em branco, já foi superada pelas pesquisas psicológicas atuais. As pesquisas hipnóticas de regressão da memória, quando levadas além dos limites da vida intra-uterina e do berço, revelam a ancestralidade do espírito reencarnante. Foi o que mostraram as pesquisas de Albert De Rochas, em Paris, nos fins do século passado, e o que hoje revelam as experiências do mesmo tipo do Prof. Wladimir Raikov em Moscou, não obstante os disfarces exigidos pelo figurino político-ideológico. O fenômeno é o mesmo, os métodos são os mesmos. Muito além das instâncias psicanalíticas de Freud, Kardec revelou (quando Freud tinha apenas um ano de idade) que no inconsciente do médico vienense havia um profundo acervo do passado desconhecido.

Esse quadro esquemático, baseado em dados atuais das pesquisas psicológicas e parapsicológicas (Jung, Ehrenwald, Montessori, Kerchensteiner, René Hubert, Frederich Myers e outros) nos introduz no problema da ação de Deus no homem. As consciências humanas são reproduções microscópicas da Consciência Suprema. E funcionam no homem como bússola e tribunal. A bússola indica os rumos a seguir na existência. O tribunal alerta, corrige os desvios ou adverte o ser a respeito, julga-o aqui mesmo, na Terra, e quando necessário também após a morte condena-o ou concede-lhe as recompensas merecidas. No seu livro O Céu e o Inferno Kardec oferece um quadro grandioso das punições e recompensas da consciência, com exemplos colhidos ao vivo em suas pesquisas. Whately Carington, da Universidade de Cambridge (Inglaterra) em suas pesquisas parapsicológicas, fez verificações semelhantes em nossos dias e provou que a mente humana não desaparece na morte. Não se trata, pois de hipóteses, de teorias audaciosas ou de suposições místicas, muito menos de afirmações teológicas. Trata-se de fatos, resultantes de investigações científicas susceptíveis de tantas repetições quantas forem necessárias à sua verificação.

O homem é o seu próprio juiz, no aquém e no além. Ninguém lhe pede contas do que fez, mas ele mesmo se defronta com a imagem do que foi e do que é. Essa a infalibilidade da Justiça Divina. O Tribunal de Deus está instalado na consciência de cada um de nós e funciona com a regularidade absoluta das leis naturais. Não somos julgados por nenhum tribunal sobrenatural, mas pela nossa própria consciência. Daí a fatuidade dos julgamentos religiosos, das indulgências e sacramentos. Deus, o Existente, partilha conosco as provas existenciais. E é dentro de nós, em nossa consciência, em nosso íntimo – sem que tenhamos a mínima possibilidade de fuga ou desculpas mentirosas – que somos julgados. Mas a Justiça de Deus, se é rigorosamente precisa, é também revestida de misericórdia. As atenuantes justas são levadas em conta e as oportunidades de regeneração e reparação dos erros e crimes jamais nos serão negadas. Deus não nos castiga ou reprova. Entrega-nos a nós mesmos, sob a garantia infalível do tribunal consciencial. Deus não nos criou para perdição, mas para o desenvolvimento das nossas possibilidades divinas. O simbólico pagamento das dívidas do passado não é mais do que a reparação necessária dos nossos erros, por mais graves que sejam, para que possamos continuar na administração da nossa herança divina.


Deus Social

As estruturas sociais da Terra parecem suficientes para negar tudo o que dissemos sobre Deus e a consciência humana. Basta a seqüência de guerras e atrocidades que assolaram o planeta em todos os tempos para mostrar essas estruturas, em crise permanente através dos milênios, que jamais se ajustaram ao que costumamos chamar os desígnios de Deus. Como decorrência do livre-arbítrio do homem, indispensável à formação da sua responsabilidade e do seu senso moral, o poder social organizou-se na linha dos interesses imediatistas dos homens, que apesar da fragilidade humana e da efemeridade da vida, da morte sempre à espreita, só se lembra da sobrevivência quando a vida material lhe escapa das mãos. Em todos os tempos as novas gerações se instalam no chão do planeta como herdeiras incontestáveis dos privilégios sustentados pelas anteriores. As linhagens do sangue desaparecem na voragem dos túmulos suntuosos, mas o exemplo subsiste e novas linhagens se formam com outros fundamentos. Do caciquismo ingênuo das tribos às dinastias da nobreza, do dinheiro e da técnica as posições sociais se conservam substancialmente as mesmas. As civilizações teocráticas provam historicamente que a idéia de Deus no homem foi posta a serviço das ambições mundanas. As instituições religiosas utilizam seus ritos, sacramentos e bênçãos para atingir os soberanos em nome de Deus. Foi por isso que Jesus respondeu aos fariseus, com a moeda romana entre os dedos: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não se trata de esperteza política, para escapar ao dilema, como até hoje se interpreta esse episódio. A grandeza espiritual de Jesus e a sua inteira abnegação à causa humana não comportariam jamais essa interpretação entre povos mais adiantados. Jesus apenas mostrava que eram inúteis os sacrifícios de uma revolta insensata numa estrutura social dominada por César, com suas legiões brutais. Era preferível pagar o tributo enquanto ele semeava as idéias novas de redenção humana pelo esclarecimento das consciências, e despertar nas criaturas os sentimentos inatos de amor e justiça que traziam em si mesmas.

As leis da evolução dirigem o desenvolvimento social, como as leis biológicas dirigem o desenvolvimento do corpo humano. Tentar o aceleramento dessas leis por meios artificiais é aumentar e exacerbar os conflitos sociais sob o ônus de novas injustiças e brutalidades. O necessário é preparar os homens para situações novas que devem nascer de suas próprias consciências. Os atos de violência, como assinalou Frederic Wertham, são contagiosos e se propagam no organismo social como câncer no organismo humano. O homem não dispõe apenas de liberdade para agir, mas também de consciência para orientar a ação num sentido criador e não destruidor. Cada luta na Palestina, naquele momento, contra o poder de César resultava unicamente em centenas de crucificações ao longo das estradas. A semeadura de Jesus redundaria na sua própria crucificação, mas as sementes chegariam à Roma e abateriam a sua arrogância.

Iavé, o deus judaico, estava submetido a Júpiter, o deus romano. As classes dominantes de Israel haviam negociado a submissão com o invasor. A Águia Romana pousara sobre o templo de Jerusalém, com a aquiescência do Sumo Sacerdote. O Messias não vinha fazer o milagre da expulsão dos romanos, mas da transformação do mundo. As condições históricas locais, portanto, concretas, resultam de encadeamentos de causas ao longo do tempo e são processos temporais terrenos pertencentes à jurisdição humana. A transformação do mundo, que depende de fatores conscienciais, é um processo abstrato que depende de intervenções espirituais. A questão do pagamento do tributo era um negócio de César. A missão de Jesus era uma delegação de Deus. Essa divisão jurisdicional explica por que motivo as grandes revoluções que modificam os sistemas sociais, apesar de assentadas na estrutura sócio-econômica das nações, dependem do chamado momento psicológico para sua eclosão eficaz. Há que amadurecer no psiquismo dos povos o processo transformador, e esse amadurecimento decorre de intrincados fatores nem sempre perceptíveis, pela sutileza de seus componentes. A Revolução Cristã não devia ser cruenta, e só o foi pelo desequilíbrio dos homens nas fases de transição.

Deus, como Existente, no seu constante ascender do imanente para transcendente, participa com os homens de todo o processo social. É um Deus Social, de ação temporal humana no plano humano. Kardec aceitou a interpretação religiosa do episódio da moeda romana, mas converteu-o numa lição de aplicação geral. Foi o que fez com numerosas passagens evangélicas, evitando que a transição para nova compreensão dos textos fosse demasiado rápida. Usou o bom-senso da dosagem cautelosa da revisão exegética. O mesmo havia feito Jesus no tocante a problemas de ordem circunstancial. Os espíritos esclarecidos procedem como professores experientes nas relações com o povo, mormente em questões de fé, evitando perturbações desnecessárias. Tudo vem a seu tempo no processo evolutivo e só os homens inquietos, desprovidos da calma necessária para enfrentar as dificuldades de uma renovação em plano social, usam de precipitação nesses casos.

Deus não está ausente nas horas difíceis das grandes transformações sociais. Pelo contrário, sua presença se faz sentir de maneira mais intensa nessas horas, orientando através se suas leis os processos renovadores, de maneira a que os excessos sejam contidos por meios naturais. Na parábola do joio e do trigo, Jesus esclareceu com admirável simplicidade a questão principal. Convém deixar o trigo amadurecer, para que não seja arrancado juntamente com o joio. De cada fase da evolução a experiência acumulada contém elementos valiosos que não devem ser destruídos. Sistemas econômicos e culturais renovam-se na sucessão das gerações. Dewey lembrou que a educação existe por causa da morte, pois se não morrêssemos não precisaríamos ensinar às novas gerações o que aprendemos. Mas lembrou também que cada geração reelabora as experiências da anterior. Ernst Cassirer mostrou que as civilizações extintas renascem no seio das posteriores graças ao acervo das experiências e conquistas válidas que deixou gravadas em suas ruínas. Existe uma imortalidade material do pensamento, que se grava nas pedras e até mesmo na argila, assegurando a continuidade, através dos milênios, do desenvolvimento seqüente da cultura. E em todas as civilizações, em todas as culturas, encontramos a idéia de Deus marcando os passos humanos. Deus acompanha o homem, passo a passo, na roda incessante das gerações e das civilizações em torno do globo planetário.

Episódios curiosos da História revelam a intervenção de Deus nas atividades humanas mais diversas, ora através de inspirações, ora através de agentes especiais. Sócrates surge do meio dos sofistas gregos, que revolucionavam a Filosofia, graças à influência do seu daimon, o espírito que o aconselha constantemente. E é no Templo de Delfos que vai encontrar um dos princípios fundamentais da sua moral: Conhece-te a ti mesmo. Joana D’Arc, jovem camponesa, empunha armas, comanda exércitos, coroa o Rei e expulsa os ingleses da França por ordem das suas Vozes Ocultas que só ela ouvia. Lincoln assina a lei de extinção da escravidão negra na América por ordem dos espíritos que se comunicavam em suas sessões mediúnicas na Casa Branca. Lindenberg atravessa o Atlântico num vôo solitário, instaurando as rotas aéreas, auxiliado e estimulado por companheiros invisíveis. Os sonhos premonitórios e os fenômenos de aparições, determinando reviravoltas nos processos históricos, estão presentes nos anais das Sociedades de Pesquisas Psíquicas.

Mais significativas, pela quantidade incalculável e a eficácia imediata, são as intuições populares, os pressentimentos, as premonições ocorridas nos momentos de penetração em terras desconhecidas, para sua integração na civilização, ou de fundação de novos núcleos populares e criação de cidades, ou de devassa dos mares para a abertura de uma nova era, como na era da expansão marítima, quando o Infante D. Henrique se transforma no criador da Escola de Sagres e Colombo vence todos os obstáculos, em terra e no mar, para realizar o desígnio oculto que brota da consciência subliminar impelindo-o na arrojada aventura. No mundo inteiro dos povoados mais distantes e humildes até as grandes capitais, homens, mulheres e crianças participam de visões, ouvem vozes secretas, sentem impulsos que não sabem explicar e realizam pequenos feitos que, em seu imenso conjunto, revelam um desígnio secreto que comanda a ação humana na ampliação da Terra e no enriquecimento material, cultural e espiritual dos povos. É o comando de Deus, ora diretamente por sua ação endógena na consciência humana ou sua exógena através de seus instrumentos paraexistentes, dos oráculos e pitonisas ou dos médiuns modernos, desenvolvendo, ampliando e enriquecendo as sociedades humanas. Os cientistas procuraram, até agora, atribuir todo esse vasto e múltiplo testemunho da presença de Deus na experiência social à ação puramente humana. Mas nesta hora em que o próprio espaço sideral começa a ser devassado pelas sondas espaciais e os foguetes espaciais tripulados, e em que mais do que nunca a harmonia e a grandeza da Criação se desvenda assustadoramente aos olhos humanos, é impossível insistir na pretensa supremacia do homem, esse bicho da terra tão pequeno, na expressão de Camões.

O homem, que aparece no mundo como um náufrago nu e desmemoriado, segundo a concepção existencialista, que não sabe de onde vem nem para onde vai, cuja inteligência não lhe permite muitas vezes nem mesmo reconhecer a sua própria natureza, não tem mais a menor possibilidade de sustentar o seu orgulho fátuo na rejeição à existência de Deus. Torna-se ridícula a tentativa dos astronautas soviéticos de continuar negando Deus por não o terem encontrado em seus vôos mecânicos em torno da Terra, um grão de areia no infinito. No século XVIII os cirurgiões alegavam com ênfase estúpida que não haviam jamais encontrado a alma humana na ponta de seus bisturis primitivos. Hoje astronautas que mal iniciam a aventura cósmica no âmbito apenas do nosso Sistema Solar, repetem o atrevimento daqueles cirurgiões. Não obstante, a idéia de Deus se torna cada vez mais evidente e necessária, para que se possa explicar, pelo menos de maneira rudimentar, o mistério da realidade universal.

Deus, o Existente, é um Ser social. Toda a existência de Deus, como subjetividade, semelhante à nossa, revela-se na natureza naturans da concepção espinosiana. É o número Kantiano que se projeta nos fenômenos normais e paranormais. Acessível à investigação científica, esse número, essência e alma do fenômeno, é a própria Alma de Deus que tantos negam por não poder vê-la, como negam a alma humana que constitui o próprio ser do homem. É possível a uma criatura de inteligência mediana e de mediana cultura querer que a visão sensorial humana, mais limitada que a de muitos animais, possa captar em seu minúsculo campo visual a Alma de Deus? Além do orgulho e da colocação falsa do problema pelas religiões, suas pretensas teologias e suas místicas sectárias e dogmáticas, existe hoje o impedimento ideológico dos materialistas que, contraditoriamente se dizem humanistas, reduzindo o homem a nada em suas elucubrações sofísticas.

É também suposta prova de superioridade intelectual dizer-se materialista livre-pensador, homem liberto das ilusões metafísicas. Tudo isso podia produzir efeito ilusório no passado, mas não hoje. A Metafísica trata precisamente do que está além da Física. No entanto, a própria Física moderna entrou no plano da transcendência vertical de Jaspers, obrigada pelas exigências inexoráveis do desenvolvimento científico. Onde e como se confirma a superioridade intelectual de um intelecto que, fugindo às crendices do passado, da mesma maneira que um pobre tabaréu foge do fogo-fátuo julgando-o assombração, recusa-se a tomar consciência das novas dimensões do conhecimento científico?

Até nisso, nesse temor pedante, confirma-se a sociabilidade de Deus, um ser social que se impõe ao meio cultural dos nossos dias pela sua participação em todas as atividades humanas. Deus, Ser Absoluto, é o arquétipo do homem. Como este, é subjetividade pura que escapa às percepções sensoriais, mas projeta a sua realidade extrafísica no sensível, nas éctases da sua possibilidade de manifestação. Quando dizemos, conscientemente ou por hábito: Se Deus quiser, estamos reconhecendo, conscientemente ou por hábito, que Deus convive conosco em nossa éctase existencial. Querer negar essa realidade evidente é repetir os argumentos dos anticopérnicos, que viam o Sol rodar em torno da Terra mas não viam nem podiam ver a Terra girar em torno do Sol. Não vemos Deus, nunca o vimos, e os que pensaram que o viram e falaram com ele não podem provar que isso não foi alucinação. Mas a presença de Deus no mundo é bem visível e palpável. Queremos algo mais positivo do que a realidade em que vivemos e a que pertencemos, tão dura e opaca aos nossos sentidos, e não obstante fluídica e transparente como os véus de Ísis?


Autogênese de Deus

Pode parecer absurdo querermos tratar de uma possível origem de Deus. A mente perquiridora do homem não se conforma com o mistério. Se a Ciência não dispõe de recursos para a investigação nesse plano, e se a Teologia só fez aumentar o mistério através de sistematizações sectárias, só resta a cogitação filosófica para oferecer à inquietação humana o consolo de uma proposição racional. As primeiras indagações gregas a respeito de Deus mostraram que a origem da dicotomia Natural e Sobrenatural derivou de uma confusa concepção da realidade universal, que considerava a Terra como separada do espaço cósmico. Os astros são classificados como seres divinos, constituindo o mundo celeste ou sobrenatural; dessa maneira, a Natureza pertencia à Terra, desprovida de brilho próprio e iluminada pelos astros. A distinção permaneceu até os nossos dias, embora com diversas alterações do pensamento primitivo, que não afetaram a essência do problema. Os deuses pairavam no Infinito, sobre a natureza essencialmente terrena. A idéia de um Deus Criador surgiu pela primeira vez, em termos filosóficos, com Anaxágoras, que o considerou como ordenador do mundo, criador da ordem natural. Anaxágoras chamou esse Deus pelo nome de Intelecto, reconhecendo nele a Inteligência organizadora da realidade. Com Platão surgiria mais tarde o conceito do Demiurgo, ou seja, do construtor do mundo. Isso implicava a existência de um poder superior a Deus, pois o construtor trabalhava a matéria que lhe era dada. Aristóteles figurou Deus como O Primeiro Motor Imóvel que punha em movimento todos os demais motores da dinâmica universal. Sua vocação prática, e portanto científica, comprovada por suas pesquisas naturais, dava o primeiro passo contra a idéia do sobrenatural. Com os estóicos surgiu o panteísmo que contaminaria também o neoplatonismo. Deus era o mundo, o mundo era Deus. Natural e Sobrenatural fundiam-se confusamente e Tales de Mileto afirmava que o mundo estava cheio de deuses. A intuição grega traçava, nos quadros de sua cultura nascente, o esquema do futuro. A concepção de Deus seguiria esse esquema nos milênios seguintes, oscilando entre as alternativas gregas, adaptando Platão e Aristóteles ao pensamento judeu-cristão e, por conveniência político-teológica do poder romano, restabelecendo a supremacia do sobrenatural. Caberia a Espinosa definir com precisão matemática, sob a dupla ameaça de judeus e cristãos indignados, o infuso panteísmo da era helenística. O império cairia sob a invasão bárbara e a Igreja se ergueria como poder supremo, com o prestígio do sobrenatural, amparada nas ordenações do Messias crucificado, para que as cabeças coroadas da Europa se curvassem reverentes à unção divina dos clérigos. A concepção do Deus Único triunfaria a ferro, fogo e sangue. A proposição grega de Crísipo, entrosando o homem no esquema dos poderes terrenos, seria esquecida por um milênio. A teocracia massiva das antigas civilizações orientais transferia-se para as terras ensolaradas do Mediterrâneo. E os Evangelhos se tornariam livros proibidos para o povo, que só poderia ouvir a sua leitura em latim, a língua misteriosa do império morto. Todo um milênio de servidão fermentaria entre as púrpuras herdadas do Templo de Jerusalém. Os filósofos gregos, mortos e vivos, seriam submetidos à servidão. E a própria Filosofia, deusa-coruja, bateria suas asas noturnas sobre os dois cadáveres: o do Império e o do Cristianismo.

Ninguém se atreveria a pedir que a razão explicasse de onde surgira o Deus Criador, pois sua origem era vedada ao conhecimento humano. A razão grega se apagara à distância, como fogo simbólico de uma olimpíada pagã, e o seu renascimento na Europa só aconteceria, como o da Fênix, quando as cinzas da inquisição lhe pudessem proporcionar os elementos necessários ao renascimento da liberdade. Quem se atreveria a indagar onde e como Deus nascera? O mistério insondável não poderia ser tocado por mãos profanas de servos sem direitos, mesmo que filósofos. De que valiam os filósofos, ante a sabedoria dos teólogos? O Livro da Sabedoria não viera da Grécia, mas de Israel. Era a Bíblia hebraica a que se acrescentavam os Evangelhos, a ela subordinados. Quem contrariasse esse código do direito divino só devia esperar a sentença piedosa do Santo Ofício, inspirada por Deus Todo Poderoso. Por sua própria origem, essa sentença não era um castigo, mas o prêmio da Salvação para a vida eterna, livrando o infeliz da eterna condenação.

Com o Renascimento a liberdade ateniense de pensar e perquirir restabeleceu-se na Terra. As multidões ignaras da descendência bárbara podiam então redescobrir o gosto da liberdade, enquanto os homens de pensamento restabeleciam os direitos da estranha serva dos teólogos, a Filosofia, que voltaria a investigar os mistérios proibidos. O avanço da Ciência anunciava tempos novos. Mas a herança do Milênio pesava sobre as consciências, a ameaça do sobrenatural continuava pairando sobre a cabeça dos atrevidos. As multidões acarneiradas no imenso rebanho não dispunham de luz nem de experiência para romper as muralhas das cidades fortificadas. Não obstante, homens de pensamento surgiam por toda parte e o clima cultural se restabelecia na Europa sacudida por idéias libertárias. Descartes atirava no cesto toda a sabedoria duvidosa que lhe haviam dado no Colégio Jesuíta de La Fleche, Kant examinava os problemas da razão, Bacon lembrava que a Ciência só podia vencer obedecendo a Deus e Voltaire perguntava, com um sorriso irônico, pela origem e natureza de Deus. O dogma da queda dos anjos era substituído pela tese da queda do homem na sociedade. Lutero clamava pela volta a Cristo. Deus reassumia no pensamento humano a posição de Causa e Newton atormentado transformava a maçã do Éden no verdadeiro fruto da Sabedoria. O Sic et Non de Abelardo podia ser lido novamente e A Nova Heloísa mostrava como devia ser a nova família numa sociedade organizada pelo Contrato Social, na visão pré-revolucionária de Rousseau.

Nesse quadro mental apenas esboçado estabelecia-se o armistício entre os homens e Deus. A distinção entre a Divindade e Deus, motivo de especiosas condenações de tribunais sagrados, desaparecia no conceito cristão do Deus-Pai, embora chamuscado de fogo e manchado de sangue. Figuras divinas como a de Francisco de Assis haviam abrandado a ferocidade dos guardiões da Fé. Tornava-se possível o retorno aos problemas fundamentais da origem e natureza de Deus. Mas crescia a maré do materialismo e do ateísmo no pensamento moderno. A reação de impiedade brotava da terra, como os cogumelos da heresia no tempo de Tertuliano, contra as piedosas mordaças dos guardiões e a generosa concessão da morte mais rápida pelo garrote-vil inventado na Espanha. Os ventos do mediterrâneo sopravam mais suaves nas praias romanas e o céu da Itália parecia tocado por um azul mais puro. Muitos ainda temiam tocar no nome sagrado, mas vozes corajosas indagavam cada vez mais pelo grande mistério. Os deuses mitológicos tinham sua origem e linhagem conhecidas no simbólico fabulário das crenças mortas. Pensadores livres davam ao Deus Único a miserável origem do medo gerado pela ignorância nas selvas. O dogma do absoluto, sem princípio nem fim, contrariava os princípios invioláveis da Lógica, herança aristotélica absorvida pela Fé. Reinvestido na sua dignidade de Causa Primeira e Absoluta, que produzira por meios sobrenaturais o efeito natural do mundo, o conceito de Deus não podia ficar flutuando nas nuvens das suposições. Era necessário dar-lhe uma segurança racional, que pelo menos aquietasse os espíritos inquietos. Os teólogos não se atreviam a sair do campo do mistério, da impossibilidade humana de devassar o sagrado, enquanto os atrevidos profanadores de revelações arcaicas zombavam das contradições, dos ilogismos grosseiros e das fantasias do passado imaginário. Nem mesmo a teoria neoplatônica da emanação satisfazia os inquiridores dotados de novas técnicas e novos conhecimentos. Prometeus equipados de aparelhagem científica antecipavam a invasão do Cosmos, procurando devassar os bastidores de Deus. Onde escondia ele a sua origem, a sua certidão de nascimento? Para acalmar a sede lógica dessas feras voadoras só havia uma possibilidade, a que os místicos jamais recorreriam. Os céticos racionalistas não vacilaram em tirá-la da caixa de segredos com as garras do Diabo. E até hoje, em plena Era Cósmica, no tempo antimatéria, não se consegue outra brecha, nem mesmo nas mais audaciosas equações matemáticas, para se roubar uma fagulha do Céu e com ela acender a lamparina da razão.

Tentaremos expô-la de maneira simples. O Deus-Intelecto de Anaxágoras, o Bem de Platão, o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles, por mais que se sustente sozinho no Inefável de Pitágoras, não tem o direito de aturdir a sua própria Criação com a recusa a qualquer origem. A razão humana, para aceitar a Divindade tem de enquadrá-la nos seus limites. Esse enquadramento se faz com auxílio da concepção budista do eterno existente. Há algo que sempre existiu, que não foi criado. Esse Universo pré-existente, para Buda, é a realidade concreta. Nunca houve o Fiat, esse truque judaico. Em termos da razão acidental podemos eliminar a contradição oriental e supor a existência da matéria incriada, espécie de névoa na boca irreal do abismo inexistente. O abismo seria vazio sem nome, o nada inimaginável mas necessário. Essa névoa de matéria primária amadureceria no vazio produzindo lentamente massas de matérias secundárias, das quais nasceriam os primeiros reflexos de futuras energias. Através dos milênios essas energias, em concentrações ocasionais, produziriam um sistema de ações e reações que acabaria gerando uma estrutura inteligente, mais tarde uma consciência: Deus. Como se vê, fica em suspenso um grave dilema: aceitamos o acaso inteligente ou admitimos a existência anterior a Deus, que na verdade é o Deus Criador. Caímos no solipsismo platônico do Demiurgo, que ora aparece como o Criador Absoluto, ora como simples construtor da realidade, servindo-se da matéria prima posta à sua disposição pelo Demiurgo anterior. Mas não nos assustemos com isso, nem consideremos perdido o nosso tempo. Nada melhor que um exemplo para verificarmos ao vivo a impossibilidade de sondarmos, ao menos no atual estágio de nossa evolução cultural, o mistério da origem de Deus. Outros dilemas podem ser observados nesse silogismo complexo que simplificamos ao máximo para torná-lo mais acessível ao leitor. A suposta teoria da autogênese de Deus, do Deus que se autogerou, que nasceu em si mesmo e não tinha o que fazer na solidão absoluta, dá-nos a possibilidade de avaliar a impossibilidade do nosso entendimento e com isso nos lembra a conveniência da humildade. A negação científica de Deus não é menos incongruente, implicando contradições insolúveis. No plano teológico a afirmação da revolta dos Anjos e da existência do Diabo (Lúcifer, o mais sábio) estabelecendo-se em forma antropológica a dialética do bem e do mal, é um verdadeiro redemoinho de contradições que só a crença ingênua das massas pode aceitar. O mesmo se dá com o problema das penas eternas na Justiça Divina e assim por diante. Vemos assim que a razão humana é impotente para enfrentar os problemas inerentes à Causa, pois o seu plano de aplicação é dos efeitos.

Nem por isso devemos descrer do valor da nossa razão, pois já vimos que ela pode remontar dos efeitos às causas, e até mesmo provar a existência da Causa Suprema. Além disso, como Frederich Myers demonstrou sobejamente em A Personalidade Humana (The Human Personality), dispomos da razão imediata, na consciência supraliminar, que se aplica à vida terrena, mas também da razão futura, na consciência subliminar, destinada a sondar as situações vindouras em nosso processo evolutivo. Só compreenderemos plenamente a Causa quando houvermos atingido os estágios superiores do desenvolvimento espiritual, realizando a síntese consciencial estética a que se refere René Hubert em seus estudos sobre a Moral.

O problema da gênese da consciência, estudado por Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, é por ele colocado em termos de um dinamismo-psíquico-inconsciente que desenvolve na evolução geral, mostrando a intencionalidade da Causa na seqüência dos efeitos, na mesma linha da evolução criadora de Bergson. O homem, como sustentou Oliver Lodge, é um processo em desenvolvimento. Nossas potencialidades internas são muito maiores do que podemos pensar. A impotência atual da razão humana será suprida gradativamente pelo acréscimo de potência que a atualização progressiva da consciência subliminar proporciona à consciência supraliminar. O conceito existencial do homem nos leva a uma visão mais ampla e mais segura da realidade de nós mesmos e do mundo. Sua aplicação ao problema de Deus descortina aos nossos olhos um panorama coerente e grandioso do futuro humano. Deus existe como uma realidade existencial inegável que se comprova na cogitação filosófica, nas deduções lógicas e nas induções científicas, bem como na experiência vital e psicológica da existência humana.


O Mito do Diabo

A mística é também um processo dialético, embora os místicos em geral recusem-se a admiti-lo. O sentimento místico é um impulso de integração do ser naquilo que é. Não importa se aquilo que é se revela como Bem ou Mal. O emprego da palavra mística por Dionísio o Areopagita, no século V, restringiu o sentido do termo às relações do homem com Deus. Dionísio se inspirava no filósofo neoplatônico Proclo. Os cristãos absorviam a seiva do pensamento grego e davam à sua terminologia aplicação própria. Era uma forma evidente de apropriação, justificada pela intenção. O que importa na Mística, portanto, é o seu sentido de unidade do ser relativo com o Ser Absoluto. Este pode se definir como Deus, o Diabo, um Ideal, um Sonho, uma Utopia e assim por diante. Mas toda forma de mística se desenvolve na contradição. A mais alta forma tinha de ser forçosamente uma contradição absurda. Porque nada se pode opor ao Absoluto. O processo de racionalização inconsciente levou a imaginação mística a elaborar na figura do Diabo o contrário de Deus. A dialética do Bem e do Mal, que vinha das experiências do homem primitivo em seus contatos com os elementos naturais, aprimorou-se nas civilizações e definiu-se nas religiões em duas formas de idealização antropomórfica – a de Deus e a do Diabo. Eram os símbolos da salvação e da perdição, os arquétipos positivos e negativos atraindo almas com igual poder. Embora teologicamente o Diabo apareça como um filho rebelado contra o pai, na prática e na vivência das religiões o filho se iguala ao pai em poder e liberdade. Toda a História Medieval não passa de um relato trágico da luta entre Deus e o Diabo. O mesmo ocorre com as fases medievais do Oriente, que dão a impressão de haverem cedido o seu modelo ao Ocidente.

O absurdo dessa dialética está na impossibilidade de se opor um Absoluto a outro, pois o Absoluto é o Todo e se outro Todo se lhe opusesse não teríamos dois Todos, mas apenas duas metades. Essa a razão fundamental por que Deus é o Ser e o Diabo é apenas um Mito. Deus se define filosoficamente como o Ser Absoluto, como Substância que a si mesma se basta, que de nada depende. O Diabo se define como uma sombra invertida de Deus no espelho côncavo da imaginação humana, uma espécie de figura grotesca e incoerente do não-ser. Por isso Kardec o apresenta como produto específico da imaginação terrena, incapaz de figurar com a mesma força de nitidez e colorido a Deus e ao Céu. Apegada à Terra, impregnada pelo magnetismo dos planos inferiores, torturada pela visão e a experiência das provações terrenas, a imaginação humana só conseguiu figurar Deus e o Céu de maneira imprecisa, ao mesmo tempo em que carregava a pintura do Diabo e do Inferno. Por isso também o Padre Teilhard de Chardin opôs-se em suas obras de renovação teológica a aceitar o dogma da condenação eterna do Diabo e reservou-lhe um lugar nos confins do Pleroma, o suposto corpo místico de Deus. Ali o filho ingrato permanecerá, sem ser lançado nas trevas exteriores, até que a misericórdia de Deus se manifeste em seu benefício. Como? Certamente com a solução apresentada por Giovanni Papini, em seu livro Il Diavolo, ou seja, com a reintegração do Diabo no Pleroma de maneira plena.

A mística do Diabo sempre teve o seu culto e os seus templos, o seu sacerdócio e as suas corporações devotas. Mas tudo isso nunca passou nem pode passar de simples imitação grotesca do culto legítimo a Deus. Porque os seres humanos, criados por Deus, não podem distorcer, senão artificialmente, de maneira efêmera, o seu impulso de integração naquilo que é para aquilo que não é nem pode ser. Ao insistir na direção do mal, o homem se condena a si mesmo e a si mesmo se tortura, violentando suas potencialidades divinas e sofrendo na consciência a pressão das reações da sua própria natureza ôntica. É essa pressão que leva os criminosos, por mais transviados, à conversão e à regeneração, muitas vezes no declínio da vida. O enfraquecimento das forças vitais abranda a vontade rebelde e faz curvar a cerviz dos mais terríveis celerados.

Certas pessoas pensam haver descoberto a pólvora quando ouvem dizer que o Diabo não passa de um mito, e perguntam animadas: Então Deus também não seria um mito contrário? Não, simplesmente porque o contrário, aquilo que se opõe ao que é, não é Deus, mas o Diabo. Não há contrários a Deus, pois tudo quanto existe, pelo simples fato de existir já está subordinado a Ele. Na dialética mística há também a subcontradição do anseio de integração com o anseio de liberdade. As criaturas que não cedem à atração diabólica têm sempre o pendor de ceder ao desejo de fugir a Deus, principalmente em conseqüência da introjeção que sofreram da imagem tirânica de Deus em seus inconscientes, por força das crenças religiosas. O mito do Diabo tem o poder fascinante que provém das forças telúricas. Essa fascinação é alimentada pelas energias do ser do corpo, energias de sustentação da vida vegetativa. A luta sem tréguas entre o espírito e o corpo, tão conhecida na dolorosa história da Mística, e sempre interpretada como ação violenta do Diabo sobre a frágil carne humana, nada mais são do que eclosões de energias vitais reprimidas pelas práticas ascéticas. É bem conhecida a mórbida tendência dos místicos para o erotismo. Nem as antigas flagelações, nem os recursos simplórios da ocultação do corpo aos olhos de fauno do Diabo, ainda hoje em prática, conseguem livrar os místicos de terríveis tentações. O desmoralizado mito de Satanás não é o culpado de eclosões sexuais. Culpados são os trânsfugas da existência, os lúbricos sonhadores de sensações celestiais, que pretendem sufocar os impulsos naturais do corpo, acreditando que com isso agradarão a Deus, que estabeleceu as leis genéticas no corpo humano para que a vida não se extinga no planeta.

O corpo humano é, existe porque é, porque goza do direito de ser no plano ontológico. Sua função não é apenas viver, mas principalmente servir ao espírito que através dele se projeta na existência. Se o espírito se recusa a existir, preferindo a fuga e a traição à vida, entregando-se à ilusão necrófila da santificação forçada, torna-se o Diabo de si mesmo, o tentador que o leva ao desespero, à humilhação e à marginalização existencial. O complexo místico-erótico devastou os conventos e mosteiros medievais, semeou loucura e simulação de santidade macerada nos caminhos da vida, enfeitando morbidamente suas margens com as flores roxas de olheiras fundas e olhos lânguidos em rostos pálidos de candidatas ao coro celestial das Dez Mil Virgens. E quantos monges martirizados pelas garras noturnas do Diabo estrangularam-se a si mesmos na busca de uma santificação artificial? Enquanto isso, os párocos seculares, menos ambiciosos no tocante à glória eterna, mais sensatos e práticos, na convivência natural dos homens, ajeitavam-se longe dos cilícios e tocavam suas vidas em paz com Deus e com o Diabo. Souberam tirar ilações pragmáticas da lição de Jesus: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, sem lograr a um nem a outro, equilibrando a balança da vida.

Nos fenômenos do misticismo popular encontramos episódios da alta roda social, como de Rasputin, na Corte Czarista, onde o terrível monge se infiltrou graças aos seus dons terapêuticos; e episódios sertanejos como o de Antônio Conselheiro, no Brasil, que só falava com as mulheres dando-lhes as costas, mesmo às velhas, para evitar o perigo das tentações. No alto clero o poder absoluto dos altos cargos, revestidos de autoridade divina, em meio à pompa e à fulguração dos palácios, o Diabo não causava transtornos e os escândalos eram abafados na maciez discreta das tapeçarias. Nas zonas interioranas, nas paróquias rurais os vigários modestos se faziam queridos da população e não raro constituíam famílias numerosas, que em nada os desabonava. Tinham o privilégio de dar vida aos filhos e mesmo os batizarem, limpando-os com as mãos paternas do pecado original. Homens sensatos e bons, ignoravam santamente as prescrições antinaturais da profissão piedosa e não se entregavam à ambição mística, preservando-se do erotismo doentio. Entraram no Céu, como Jesus falou das prostitutas, antes dos fariseus hipócritas.

Encaramos todos esses aspectos do mundo religioso numa perspectiva puramente histórica, sem nenhuma intenção condenadora ou agressiva. Os fatos nascem de circunstâncias decorrentes de condições sociais e culturais universais, a que os homens são naturalmente sujeitos em qualquer país e em qualquer instituição religiosa. Por isso mesmo não podem ser escamoteados numa tentativa de esclarecimento de realidades inegáveis e quase sempre tratadas em tom polêmico. Temos de analisar enganos e erros de interpretação, desvios do entendimento humano determinado por exigências institucionais inadequadas à verdadeira condição humana. Ainda hoje, nesta fase de abertura para uma Nova Era de maior conhecimento, jovens de ambos os sexos são submetidos à pressão de velhos e estúpidos preconceitos, de rançosas e doentias superstições. Há pouco um nosso colega de magistério universitário contava-nos o que se passara com uma irmã que resolvera entregar-se, adolescente ainda, à sua vocação religiosa. Foi obrigada a usar instrumentos especiais que lhe impedissem o desenvolvimento natural dos seios e a tomar banho sem se despir, para evitar a cobiça do Diabo que podia levá-la ao Inferno. Indignado, o irmão professor deu um escândalo na família e arrancou a jovem da condenação ao inferno do complexo místico-erótico que já a deformava física e espiritualmente. De toda essa mórbida situação resultou em nossos dias o desenvolvimento da Psicologia Libertina, em que psicólogos e psiquiatras aconselham jovens perturbados por desvios sexuais a se entregarem aos seus desvios e casais desajustados a resolverem seus problemas com a terapêutica do adultério. Do extremismo sumeriano, em que as práticas sexuais se realizavam nos altares, diante dos sacerdotes, e da prostituição sagrada nos templos de deuses mitológicos, até a condenação brutal do sexo nas chamadas religiões positivas, voltamos à posição negativa da entrega à libertinagem através de prescrições médicas, sob a saturação pornográfica dos meios de comunicação de massa. A perversão diabólica do homem é considerada como libertação das forças vitais da humanidade para sua volta do Éden. O Paraíso Perdido está sendo reconquistado pelas publicações pornográficas de grande vendagem em todo o mundo. A prática secreta do nudismo torna-se pública e teólogos americanos, em entrevista à imprensa, rádio e televisão, justificam a volta ao primitivismo ingênuo da selva com o mito de Adão e Eva, declarando que a nudez é um estado de graça. Ao mesmo tempo a orla do Pacífico, nos Estados Unidos, se torna o domínio das Igrejas do Diabo. O culto diabólico excita a baderna sexual em todo o mundo, como reação geral à asfixia milenar de um moralismo malicioso e hipócrita, que condenava o instinto da reprodução como pecado e impureza. O contraste monstruoso teria de provocar, além das explosões atômicas genocidas, a explosão pornográfica, a perversão sexual e o adultério, ambos terapêuticos.

Todo esse mural de Da Vinci sobre o Juízo Final foi pintado a sangue nas telas de pele humana do III Reich, entre as gritarias histéricas das ameaças de Hitler, um pintor de paredes que quase estrangulou a Civilização. Sob as suas trágicas botas de histrião o mundo tremia, implorando a clemência de Deus. A resposta do Céu veio nas asas de aviões especiais da grande democracia de Truman: duas bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima. E isso era apenas um sinal, um toque de dupla explosão na carne humana, para lembrar que o problema é dos homens. Porque não foi Deus quem promoveu a guerra, mas os homens com sua desfiguração de Deus, sempre em favor de seus interesses mesquinhos e de sua incomensurável ambição de riqueza e poder. O ponto central da tragédia humana está no conceito absurdo, formulado pela Inteligência mundial, de um Deus ilógico e sem grandeza. De nada valerão as assembléias mundiais de sábios e chefes de nações, as reuniões de cúpula das grandes potências, a assinatura de tratados sem substância moral, os gigantescos arsenais de armas atômicas, os pactos da traição. A mística religiosa e a mística ideológica se confundem na deformação e na negação da idéia de Deus. Enquanto não se fizer dessa idéia um conceito preciso e claro, o mundo continuará na loucura em que o vemos. Não se trata de uma suposição mística, mas de uma lâmina de navalha no pescoço dos homens. Sem Deus ou com um deus falso, o que dá na mesma, o mundo arrebentará. Porque o conceito de Deus é o pivô da estridência ou da harmonia, da barbárie ou da Civilização, da mentira ou da verdade. Esse conceito rege o comportamento humano individual e coletivo. Quando uma nação o põe em dúvida ou o joga pela janela, tem de se apegar a conceitos sociais que transformam a própria sociedade numa deusa da desconfiança e do medo. Elabora então um falso conceito que acaba implantando o Estado-Leviatã com todas as suas conseqüências. Deus é a unidade, mas o social é o múltiplo infinitamente fragmentado. Alguém ou alguma coisa deve substituir a regência de Deus no controle social. Esse alguém é um homem, um pequeno tirano cercado de asseclas amedrontados, e essa alguma coisa é uma ideologia, tão minuciosa e exigente para atender à pulverização social, que perde o senso humano e se transforma em computador. O conceito medieval de Deus, que se adaptava à estrutura feudal, serviu para a burguesia, que modelou o seu sistema sobre o antigo, puxando as brasas para sua sardinha. As ideologias de Direita e Esquerda consideram o Deus dos burgueses como paternalista e reacionário. Hitler e Mussolini se colocaram no lugar de Deus e o mundo se afundou na loucura. Hiroíto apenas aferiu, pois já era deus de nascença. E truman julgou-se um novo Júpiter com as mãos carregadas de raios para fulminar as cidades e povos. Israel ressurgiu das cinzas num deserto coberto de ruínas, guiado por Moisés sob a proteção de Iavé. O Deus dos Exércitos restabeleceu o seu pequeno império com a petulância e a arrogância de um dominador do mundo, equipando-se com a técnica moderna de um 007. Os árabes se apegaram a Maomé e transformaram as antigas espadas em bazucas, metralhadoras, bombas e ogivas atômicas. As Américas caíram de joelhos ante o Dólar, um deus tilitante, e suas nações entraram em delírio.

O Brasil é um país abençoado por Deus, livre dos principais flagelos que devastam os outros. Mas a Nação Brasileira não tem um conceito claro de Deus. Nos seus oito e meio milhões de quilômetros quadrados de território, sem um só vulcão em toda essa amplitude, sem terremotos nem furacões, a idéia de Deus é um flatus, uma palavra sem conceito. Derrubada a Monarquia, e com ela o Catolicismo medievalesco herdado de Portugal, o Positivismo dos republicanos lutou em vão para impor a Deusa Humanidade de Augusto Comte, que não tinha consistência para substituir o velho Padre Eterno de barbaças grisalhas, tão semelhante ao Imperador deposto e exilado. Ambos, de braços dados, voltaram para a Europa. Os holandeses, que nos podiam ter trazido um substitutivo mais definido, tiveram também de retornar com seu Deus às suas terras. E o tráfico negreiro nos trouxe a sarabanda dos deuses primitivos da África, com Alá de contrabando nos porões dos navios negreiros. Os deuses indígenas, demasiado particulares, não tiveram condições de impor-se, contentando-se com a regência das tribos dizimadas e uma estreita faixa de terra no Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro, à semelhança das faixas atuais delimitadas para os restos das antigas tribos. Em fins do século passado a contribuição de Kardec infiltrou-se entre nós, mas o Espiritismo brasileiro não foi além de uma mistura particular de resíduos católicos e alguns princípios kardecianos mal assimilados. Podemos repetir com Machado de Assis: a confusão era geral. Alguns expoentes culturais lutaram para elevar o conhecimento espírita, mostrando os seus aspectos científicos e filosóficos. Mas o clero católico se empenhou em combater a nova heresia, usando a sua arma mais poderosa: o conceito do Diabo. Esse conceito vazio, como diria Kant, correspondia ao mundo de superstições dominantes e era facilmente assimilado pelo povo. O conteúdo supersticioso enchia o vazio racional do conceito e lhe dava um aspecto sólido. Corremos o risco de substituir Deus pelo Diabo. O desenvolvimento cultural nos trouxe os ácidos corrosivos do intelectualismo pedante, do ceticismo leviano e do materialismo sem esperança. Hoje corremos o risco de trocar tudo pelo simples gosto de viver, não raro numa vida inteiramente sem gosto. Daí a razão deste ensaio, escrito ao correr das teclas, sem outra pretensão do que a de ajudar os que lêem e pensam a despertarem para a necessidade de um esforço comum que consiga restabelecer o novo conceito de Deus em termos existenciais. Só dessa maneira poderemos substituir o borboletear das opiniões pelo conhecimento da existência de Deus e pela convicção da Verdade que hoje nos falta. A razão de todas as nossas crises é apenas essa: a falta de Deus, definido como o Intelecto da teoria de Anaxágoras. Sem essa volta às origens do pensamento grego, na concepção do Deus-Pai do Cristianismo (e é bom lembrar que Cristo é uma palavra grega), estaremos sujeitos a entrar na Era Cósmica como um balão de luzes multicores soprado pelo vento das circunstâncias e dos interesses imediatistas. Nossa convicção não passará de uma mecha de fogo-fátuo.

FIM